Para ouvir uma música georgiana enquanto lê esta página – óptimo para a criação de uma atmosfera reforçada – click no controle acima. Trata-se de um tema da banda Mgzavrebi, cujo video pode ser visto aqui.
O tempo pregou-nos uma partida que me ia amandando para um estado depressivo ligeiro: então não é que logo para abrir esta aventura caucasiana um tipo acorda e está um céu com cara de quem vai ficar assim para sempre, a enviando água cá para baixo, para os pobres dos georgianos, e, por arrastamento, para mim?
Se estivesse sozinho era certinho que me deixava submergir pelo ambiente cinzentão e não punha um pé fora de casa, mas o Clabbe, como bom sueco habituado a nível genético a dias destes arrastou-me para a rua e lá fomos, avenida abaixo, entre cargas de água. Até que chegou uma que não deu hipótese. Não sei se o dilúvio que fez de Noé marinheiro aconteceu de facto, mas o que vi neste dia nas ruas de Tibilissi não terá impressionado menos do que a queda das águas bíblicas. De repente, o céu abriu-se, e durante minutos caiu água como que se baldes gigantes estivessem a ser atirados por um exército de operários celestiais. As ruas, que vinham das zonas altas e desembocavam na avenida principal onde andávamos, tornaram-se rios , enquanto carros se transformavam em embarcações. E enquanto tudo isto durava, as gentes locais continuavam na sua vida, caminhando, talvez um pouco mais apressadamente, uns quantos equipados com guarda-chuva. Alguns andavam avenida abaixo como se soprasse apenas uma simples brisa. E então a carga de água abrandou, para se deter mais à frente. Se o dia tinha começado mal, dai em diante só iria melhorar, indo acabar com um céu azul homogéneo a estender-se até ao infinito.
Findo o temporal, continuámos a andar. Fomo-nos internando na parte antiga da cidade. Saímos do eixo principal, apanhando uma avenida para a esquerda… procurávamos o monumento às vítimas da guerra de 2008, que opôs a Geórgia à Rússia e que culminou na invasão de parte do país por parte do exército do grande vizinho. Foi uma guerra infame, mais ainda que a generalidade das guerras. Georgianos e russos são tradicionalmente povos amigos, e se o conflicto sucedeu foi apenas devido a manobras políticas de governantes ambiciosos que não hesitaram em arrastar os seus países para uma experiência traumática em prol de conveniências pessoais. Como é evidente, as teses sobre esta guerra são inúmeras, e cada uma traz uma nova perspectiva do assunto. Pessoalmente, assumo a carência de materiais para que possa alcançar conclusões mais ou menos sólidas. De Putin tudo se pode esperar, e nada do que diga concidirá nalgum parentesco com a verdade. A natureza maligna da sua pessoa está bem estampada no seu rosto. Quanto a Saakashvili, o jovem presidente georgiano, diz-se que era frequentado assíduo da casa dos Bush e amigo da família, e trata-se de um “ocidentalista” convicto, cujas mais elevadas aspirações política se baseiam na introdução do seu país no círculo ocidental. Aderir à NATO é um sonho para os georgianos, e talvez esta guerra tenha convenientemente incrementado este desejo no povo. Em diversos locais da cidade vi cartazes pró-NATO, que diziam que a entrada da Georgia nessa coligação defensiva era um objectivo nacional número um.
Com muita dificuldade, porque nos encontrávamos no lado errado da avenida e o trânsito era intenso (e o conceito de passagens de peões, inexistente), conseguimos chegar ao monumento, guardado vinte e quatro horas por dia por dois soldados em uniforme de cerimónia. Não devem ser alvo de muitas atenções, porque quando dobrámos a esquina estavam bem relaxados, em amena cavaqueira, espada baixa para descontrair os músculos… assim que avistaram estes turistas inesperados, voltaram à sua posição marcial, muito digna, e nela se mantiveram enquanto andámos por ali a fotografar.
Fomo-nos aproximando do rio. Queríamos encontrar a embaixada da Arménia, para tirar a limpo as condições de obtenção do visa na fronteira. Demos com ela no bairro baixo, já muito perto das águas do Mtkavari, uma área da cidade com muito comércio de rua e muitos detalhes urbanos de interesse fotográfico. O Clabbe de um lado da rua, eu, do outro. E as Nikon não parávam. A atitude das pessoas perante as câmaras era variável; umas, gostavam de ver por ali visitantes estrangeiros, sentiam-se honradas pelo nosso interesse, como as três senhoras fotografia de cima, que correram atrás de nós para nos chamar a tirar-lhes o retrato; outras, mais sisudas, mantinham-se reservadas, obviamente preferindo que nos afastássemos. Ah! Quanto ao visa arménio, sem novidade. Um funcionário com ares de quem é dono dos destinos de qualquer pessoa que pise nos terrenos da embaixada, mandou dizer, pela subalterna de serviço, que deveriamos tratar disso na fronteira, com uma subliminar mensagem do género “e agora ponham-se a andar e não nos chateiem mais”.
Explorámos o centro histórico de Tiblissi, a cidadela, se assim se pode dizer. As casas, pitorescas, com as suas extensões aéreas em madeira, e detalhes arquitectónicos a revelar influências que até agora me eram estranhas. Cada rua, uma nova surpresa. Mas não foram muitas, porque de facto o núcleo histórico é diminuto, surpreendente, numa cidade de 3 milhões de habitantes, que não se parece com tal. Quem ande por Tibilissi ou a observe de longe fica com a ideia que se trata de uma pequena capital, coisa para 1 milhão de pessoas, e afinal… toma lá… o mesmo que Lisboa e arredores.
A fome chegou e parámos numa barraquinha junto a um pequeno parque para trincar qualquer coisa. Portanto, duas latas de Fanta mais dois “kebabs”, qualquer coisa como dois Euros. Gosto! A Geórgia, e já agora a Arménia, são locais verdadeiramente baratos, se evitarmos os estabelecimentos vocacionados para os estrangeiros e para as elites locais. Coisa que com o Dan por perto não foi nunca possível. Mas então, estávamos nós a tratar de comprar o almoço, e dois gaiatos que também compravam ali as suas cervejolas deram uma ajudinha na comunicação. E conversa puxa conversa, “where are you from?” e tal, e sentámo-nos os quatro num banco de jardim ali à beira a tentar conversar. O inglês dos “putos” era muito fraquito mas com muitas perdas na comunicação lá fomos fazendo uns progressos. Eles estavam claramente “alegres”. Certamente aquela não era a primeira cerveja do dia. Eu e o Clabbe estávamos a pensar subir até ao castelo, sem saber bem como, e aquelas alminhas estavam decididas a fazer-nos de guia. Para eles seria juntar o útil ao agradável: fazer algo diferente, praticar inglês, conhecer “europeus” e, quem sabe, amealhar uns trocos. Nós estávamos entre cá e lá… era capaz de apimentar o dia, um pouco de interacção com os locais… mas por outro lado era complicado comunicar e os miúdos tendiam a ser chatinhos, talvez devido ao alcóol. Mas lá aceitámos.
Ainda antes de começarmos o passeio, houve tempo para uns momentos divertidos. O primeiro, com o ensinamento das palavras “más” em georgiano. Não recomendo tentarem em casa aquilo que verão no video abaixo. É a forma de soletrar o termo menos finório de “pénis”. E estávamos naquilo, acerca-se uma senhora idosa, meia louca, que cismou que o Clabbe era alemão, logo, “fascista”. E toca de insultar, sem grande algazarra. Fascista! Fascista! Fascista! Os “putos”, encabulados, a ver se aquilo acabava, e eu, que me pareço ligeiramente mais com um georgiano, de lado, quase a rebolar-me de riso (ver foto acima).
Enfim, lá nos decidimos movimentar. Os “putos” intercalavam entre o ar circunspecto de guias profissionais, que não eram, disparando explicação para aqui e para acolá, cada uma mais rota que a anterior, com aquilo que de facto eram, rindo e mandando calinadas, às vezes abusando um bocado, que isto da barba que já vai sendo branca, espera um pouco de respeito. Chegámos ao castelo. À entrada, uma equipa da TV nacional recolhia imagens e pelos vistos também queria recolher depoimentos. E foi assim que, sem nunca ter visto o resultado, entrei para a emissão da televisão georgiana com perguntas como “o que achas da Geórgia até agora”, “o que pensas visitar”… e coisas assim.
Dali, a vista sobre a cidade era espectacular. Em baixo, o rio corria, águas acastanhadas, cortadas aqui e acolá por uma das pontes. Um mar de telhados avermelhados podia ser observado quase na vertical do nosso ponto de observação. E da nossa torre de apartamentos, nem sinal, que a cidade se extendia por detrás de uma colina e seria por ali que deveriamos avistar a casa do Dan.
Do castelo, em vez de regressar calmamente à baixa da cidade, subimos ainda mais. Foi neste momento que os inesperados guias deram mesmo jeito, porque nos levaram por um trilho até à imponente estátua da “Mãe Georgia”, que, do alto, vela pela capital da sua nação. Passámos ainda junto a um moderno hotel e centro de congressos, cujos preços não quero nem imaginar, antes dos nossos novos amigos, a nosso pedido, terem mandado parar um táxi para nos trazer, a todos, para baixo. Eles ficaram logo ali, assim que se entrou nas portas da cidade. Mas antes de partirem, com os bolsos mais cheios do que antes, deram instruções ao condutor para nos levar a casa.
Acho que foi nesta noite que o Clabbe foi com o Dan, e mais umas amigas georgianas do nosso anfitrião, a um espectáculo de danças tradicionais georgianas no “hall” da cidade, moderno e de aspecto impecável. Eu, nada amigo dessas coisas de palco, fiquei por casa a relaxar, aguardando o telefonema deles. Assim que o telefone tocou, marchei avenida abaixo. Os três meninos apanharam boleia das duas meninas, que nos deixaram num restaurante onde eles se regalaram com uma especialidade georgiana, que eu bem passei… não gosto mesmo nada de massas que depois de cozinhadas continuam brancas. Depois, foi a noite… que como todas passadas na companhia do Dan (ou seja, todas em Tibilissi) envolvem muito alcóol, e, perdoem-me a expressão, putedo. De forma que, como sempre me sucede nestas ocasiões em que os copos se repetem, a memória esvai-se-me.
Fantástica aventura… um relato excelente!
Parabéns.
Um abraço,
Miguel