Trago comigo memórias vagas de Natais de uma outra era. Em meados dos anos 60 os homens ainda usavam chapéus na rua, as prendas custavam a comprar e quem as recebia não as esquecia nunca. Lá em casa existia uma familia e o pudim instantâneo de caramelo era a iguaria que se podia ter . Depois veio toda uma vida. A infância ficou para trás, mas o Natal continuava a ser aquele dia desejado, esperado, ansiado. Chegaram os primeiros ordenados e com eles as prendas foram perdendo significado. Finalmente foi a própria ocasião que se despiu do pouco que ainda tinha. Nos últimos anos apareceu mascarada de obrigação rotineira. Oh tempo, como passas célere. Num dia que parece ontem era toda aquela expectactiva, a alegria imensa… e agora, nada.
Foi com estes pensamentos a ensombrar-me a alma que hesitei por um instante quando vi a oportunidade de viajar até Cuba por menos de 500 Eur… um preço com uma condição: que o voo de regresso se fizesse precisamente no dia de Natal. Triste por não ter nada para me agarrar a Portugal naquele dia, mas empolgado com a possibilidade de fazer uma viagem que noutro contexto estaria financeiramente fora de alcance, fiz a reserva.
Quando chegámos ao país onde passaria o primeiro Natal afastado de tudo o que foi a minha vida de décadas, não fazia ideia de como seria a Consoada. Nem sabia como comemoravam os cubanos a ocasião e, de resto, passar aquela época festiva num clima tropical em vez de o fazer na Lapónia, parecia-me estranho.
A coisa acabou por ficar decidida assim: numa viagem em que as despesas foram reduzidas e espremidas até quase nada (35 Euros gastos em duas semanas) resolvemos fazer a nossa extravagância de Natal com um cocktail na esplanada do Hotel Nacional. As bebidas não eram especialmente caras mas para o viajante de pé descalço a ocasião apresentou-se um luxo extraordinário, reservado a dias mesmo muitos especiais…. como a véspera de Natal.
Este hotel é um dos locais que me tocou mais em Havana. Pelo seu passado mudo, mais imaginado do que contado, pelas estórias sussuradas naqueles cantos, que falavam de gangsters e estrelas de cinema, de amores e desamores por ali vividos. Entra-se e sente-se logo que já aconteceu muita coisa entre aquelas paredes. É fácil partirmos numa viagem pelo tempo, esquecer o nosso século XXI e recuar aos anos 50, à euforia que se seguiu à Segunda Guerra Mundial.
Por essa altura apareceu ali um tipo chamado Lucky Luciano. Era um dos mais prestigiados comandantes da verdadeira mafia nos EUA e quis organizar no hotel um congresso para os seus pares. Compareceram todos os nomes grandes dessa época de ouro do gangsterismo, num momento gravado em cinema por Francis Ford Copolla em O Padrinho II. Depois do jantar, decididos os nomes a eliminar e os que seriam promovidos, os convivas deleitaram-se com o concerto de serão, que seria de Frank Sinatra que então estava no auge da carreira,
Mas na véspera de Natal de 2014 não encontrei por lá Vito Genovese. Em contrapartida fiz muita força e pareceu-me avistar outros fantasmas, bem mais simpáticos, daquele estabelecimento: John Wayne que conversava com Errol Flynn, Winston Churchill que, tirando espessas bafuradas do seu puro piscava o olho a Marlene Dietrich. E Ava Gardner, jantando com Johny Weismuller, naquela noite dispensado do seu papel de Tarzan. Vi também Gary Cooper e Marlon Brando, passando por detrás de um Hemingway que rabiscava compulsivamente um bloco de notas manchado de vinho tinto.
Dei por mim na esplanada exterior, com vista para o mar das Caraíbas. Pedimos um Daikiri e uma Piña Colada. Lá em baixo, no Malecon, iam passando carros. Poucos, que os havanezes preparavam já os jantares de família. O pôr-do-sol aproximava-se e com ele uma tempestade que se ia formando num horizonte. Ia arrefecendo. E por um momento, quando de um lado e de outro só se viam passar os velhos “americanos” que ainda circulam às centenas, pensei que estava numa outra época. Olhei para o cocktail à minha frente. Era a bebida de sempre da personagem central de O Nosso Homem em Havana. Podia visualizar Mr. Wormold partilhando um copo daquilo com o seu inseparável amigo, Dr. Hasselbacher. Ou mesmo o Ernest, o tal Hemingway, que consumia, também ele, Daikiris a toda a hora. Só os hóspedes em redor eram diferentes, como se não pertencessem ali, com os seus calcões e ténis e blusas sem mangas… extra-terrestres sem o chapéu da ordem, senhoras sem saias travadas, homens sem a suada camisa de manga curta fechada a gravata. Um mundo estranho este, onde se passa um Natal em Havana.
Bela Cuba!! Faz quase um ano que lá estive… não foi uma viagem perfeita, tive alguns problemas, mas mesmo assim… aquela aguinha e aquele mar!! Voltava agora!!