Um dia Lisa saiu de sua casa para um passeio com a sua cadela, Jala, um animal já entradote, com onze anos. Era, por coincidência ou talvez não, o seu aniversário. 20 anos. Saiu, e começou a andar. E foi prosseguindo, até parar, em Portugal.  A bem dizer, a caminhada conclui-se em Salamanca, onde apanhou uma boleia para o Alentejo. Mesmo assim, foram cinco meses e dois dias a palmilhar trilhos e asfalto. Três mil e quinhentos quilómetros. Regressou a Viena em Dezembro de 2013, de comboio. E acedeu em oferecer uma entrevista ao Cruzamundos. É a primeira de uma série dedicada a grandes viajantes que terá lugar nesta nova rubrica do nosso blog.

A entrevista foi originalmente publicada em inglês já que foi conduzida nesta língua, mas graças à generosidade da Joana Agudo, que se ofereceu para traduzir, está agora disponível na nossa língua.

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[p-entrevista]Esta foi a viagem mais arrojada e aventureira que fizeste na tua vida?[/p-entrevista][r-entrevista]Como nunca fiz muitas férias diferentes ou especialmente longínquas por causa de não ter dinheiro e antes eram só caminhadas curtas de não mais de 2 semanas na companhia de uma pessoa, eu diria: Sim, esta foi a mais longa, mais completa, mais aventureira ou arrojada coisa que alguma vez fiz…[/r-entrevista]

[p-entrevista]Uma rapariga e o seu cão atravessam a Europa. Queres dizer-nos quando e como esta ideia surgiu?[/p-entrevista] [r-entrevista]Podia dar mil razões de como cheguei aqui. Vou tentar manter isto curto (talvez resulte, haha).

A primeira ideia veio à minha cabeça, quando descobri as caminhadas de longa distância como a minha forma preferida de viajar. Foi mais uma coincidência porque eufui sempre uma pessoa muito dura e rápida, não fazia mais de 4/5 horas em corrida no bosque com a minha cadela ou o meu cavalo, sozinha ou com amigos. Mas….andar? Nem pensar! Devia ser uma seca….Não parece ser o começo ideal para uma aventura destas, não é? Ainda assim, ás vezes nada ajuda mais do que lembrar uma simples recomendação na vida: experimenta antes de julgares.

Quando tinha 17 ou 18 anos, uma grande amiga minha iniciou-me em caminhadas de 2 semanas com ela e a minha cadela pela Hungria. Ela queria mesmo partilhar a experiência de caminhar comigo, que tinha, por si própria, descoberto um ano antes com um grupo de jovens. A imaginação e a realidade das longas distâncias, quilómetros e quilómetros de natureza, campos, prados, bosques, tudo sem muita gente, a liberdade e o desafio, todas essas expectativas me deliciaram.

Nós estávamos a caminhar! À nossa maneira. Encontrávamos gente a quem comunicar a falta de água e comida, comprávamos coisas esquisitas em pequenas lojas Húngaras, falávamoscom estranhos. Procurámos lugares onde fazer campismo selvagem, fizemos fogo, aprendemos a pegar num mapa e num compasso ainda melhor do que antes e tivemos tempo para caminhar, para cantar, para estarmos sozinhas e pensarmos. Mas todos os dias eu ficava muito zangada. Cerca de duas horas por dia, a minha amiga não conseguia falar comigo. Á medida que caminhávamos, eu ficava resmungona, forçando o meu corpo a CONTINUAR. Para pensar e ANDAR e pensar e ANDAR e pensar e – ao quarto dia comecei a correr! Pensa e CORRE e pensa e CORRE.Tínhamos comprado alguma comida e as nossas mochilas estavam bastante pesadas, cerca de 18kg.Eu já não conseguia parar. Sentia tanta pressão em mim mesma e também a apatia que tinha perdidopara a depressão e para a raiva, para o medo e para o pensamento infinito sem voz reflectiva interna. Após 2 horas estava coberta de suor, os meus joelhos vacilavam, mal conseguia estar de pé mas ainda tentei correr de mochila ás costas uma subida que tinha á frente. Não consegui. A minha amiga ía ficando mais preocupada. Andei. Parei. Tossi e respirei. Desisti.

Ela passou por mim e perguntou: “estás bem?” e continuou a caminhar depois do meu murmúrio em que nada disse. Estava um dia completamente nublado e um pouco chuvoso. Não havia sol e nem sombra.

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Tinha de continuar para a apanhar. Um passo depois de outro.Os meus pés estavam pesados e fracos. Respirei fundo e senti toda a raiva, o medo e a esperança saírem de mim ao mesmo tempo. E naquele momento senti que apenas sobrava o vazio total, de repente havia um raio de sol a cegar-me os olhos e o sol quebrou por entre as nuvens, brilhando no topo da subida á nossa frente.Brilhando radiante, quente e claro e verdadeiro.

Foi isso. Tudo o que ouvia era a minha voz interior, de novo.Senti o coração bater.De ambas as formas.Real e emocionalmente.Estava liberta da depressão, do controlo do sistema educativo e económico que tinha sobre mim.Este momento foi suficiente para mudar a minha vida.E para dar-me o elemento chave da minha própria fonte de energia. O amor á vida. E a presença e importância dos que estão vivos.Todas as coisas que tinha conhecido e esquecido e deixado para trás. Nesta caminhada eu percebi, que sairia àquela porta para descobrir o mundo naquele momento, precisava mesmo de o fazer, porque era a forma mais efectiva de terapia para mim própria.

Após algum tempo o momento chegou, tive um sonho sobre Portugal, que nunca tinha pensado em visitar (sinceramente, nem tinha tido conhecimento de Portugal e nem de que existia. Nunca me tinha interessado pela Europa Ocidental e o meu mundo terminava em Espanha). Então de repente eu sabia onde queria ir. E deixei tudo o que podia, para encontrar a minha própria verdade sozinha.

(Originalmente planeei trazer o meu cavalo. Para poder levar TUDO comigo, entendes?E esta é a próxima tarefa. Estamos a começar a treinar de novo em 2014, para adoptarmos um estilo de vida verdadeiramente nómada e sustentável por uns tempos daqui a uns anos. Mas agora há outras aprendizagens a que me dedico em paralelo.)[/r-entrevista]

 

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[p-entrevista]Quanto tempo demorou desde o momento em que saíste de casa até ao ponto mais longe a que chegaste, o momento de retorno? Se conseguisses desenhar um gráfico com palavras, como representarias a carga de esforço, físico e psicológico, ao longo da viagem?[/p-entrevista][r-entrevista]Uau, que pergunta.

Primeiro o mais fácil: comecei no dia 1 de Maio de 2013 e parei de andar depois do acampamento internacional que o grupo de jovens ambientalistas tinha organizado em Salamanca a 2 de Outubro. Depois da 10ª Conferência Internacional para a Protecção da Natureza Selvagem na Europa e no Mundo (também em Salamanca), queria caminhar de novo até Portugal. Mas deram-se algumas coincidências demasiado estranhas. Finalmente apanhei boleia num carro com alguns amigos até ao sul e de repente fomos deixados numa quinta biológica no Alentejo.

A minha caminhada terminou espontaneamente e estou bastante satisfeita com isso. (Queria ter caminhado por mais 3 semanas, mas tinha coisas suficientes para fazer ali.) A vida continuou e voltei de comboio para a Àustria a 26 de Dezembro de 2013, após ter visitado o Atlântico Português na área de Lisboa. 8 meses depois de ter vindo embora.8 meses dos meus 20 anos de vida sozinha nesse mundo. Um bom começo. Para qualquer coisa!

O meu esforço físico estava dependente principalmente da saúde e do bem estar do meu corpo. Durante quase 2 meses tive uma inflamação no meu pé direito, porque o calçado que usei era demasiado largo na frente, ainda que eu tenha usado o mesmo tipo de calçado para actividades ao ar livre por mais de um ano. Mas a mochila pesada e a enorme distância fizeram toda a diferença. Experimentei várias coisas para perceber porque piorava. Ao fim de imenso tempo com os dedos dos pés e os calcanhares sangrentos, o que veio a seguir foi só mais dor na inflamação. Isto foi ainda na Suíça, onde uma mulher me levou a um sapateiro, mas desta vez tive mesmo sorte. O homem olhava para o sapato e para a forma como caminhava e ao tocar-me o pé dizia-me exactamente porque é que doía, como e porquê. Mudei para as botas que ele indicou e resultou bem o suficiente para que a inflamação não piorasse. Mas ainda permaneceu assim por intermináveis semanas e meses.

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E tempo foi a outra grande perspectiva, o porquê de me esforçar tanto, ao ponto da inflamação não melhorar tanto quanto eugostava, e também, por uma vez, ter-me forçado até atingir o limite das minhas capacidades. Estávamos a meio do verão, muita chuva, mas também 40 graus. Estava no Parque Nacional Les Cevennes no sul de França e tinha feito 35-40km e perto de 1500m em altura nesse dia, já não comia porque estava demasiado cansada. Sempre que descansava um pouco, tinha de ter cuidado para não cair, porque todo o meu corpo estava exausto e cansado.Não conseguia estar de pé, tinha de me mexer.Essa foi a última vez que me deixar irritar pelo calendário.Mas também gostei disso, devo dizer. De outra forma não tinha conseguido esforçar-me tanto.Mas apercebi-me, que conseguia dizer a mim mesma: “estás autorizada a ir ao teu próprio passo O TEMPO TODO”. Pelo menos. Da próxima vez não vou viajar com qualquer tipo de limite de tempo, como fiz para a conferência. Ficarei, onde for bom para ficar. Agora consigo permitir-me a ir ao meu próprio ritmo melhor do que alguma vez antes. E eu sei, eu adoro algum stress de vez em quando.

Psicologicamente foi muito movimento.De início percebi os diferentes passos que dei. Resolvendo problemas conscientes e inconscientes e buscando comportamentos do passado. No segundo mês notei onde estava exactamente. Perto dos 14/15 anos de idade.E trabalhei ainda mais para isso. Caminhando para o tempo presente, ali, depois do Parque Nacional Les Cevennes, senti-me ainda mais. Conhecia-me ainda mais.E houve uma descoberta que tive numa noite de silêncio completamente sozinha numa falésia, nunca vou esquecer-me.

Às vezes há mudanças, calmas e profundas, de fácil mas também de verdadeira consciência, que te fazem crescer para o resto da tua vida. Elas são apenas o início de alguma coisa.De alguma coisa que é descoberta pela nossa mente e coração presentes.Como que intermináveis fontes de vida. Mas estas descobertas são tão diversas como as pessoas. E precisam de acontecer uma e outra vez. Eu viajei através de mundos e mentes, por caminhos e corações, histórias que não eram a minha, subindo montes, para observar as ondas do Atlântico, que levam tanto quanto dão. A minha jornada ainda não está terminada, ainda que eu tenha “voltado”. Voltas por um tempo. Tu sabes e descobres, como apareceu e porque não foi a coisa certa para te agarrares. E começas de novo.Uma e outra vez. Veremos.

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