Neste dia pisei terrenos desconhecidos. Se Mardin me era algo familiar, já Urfa seria uma novidade. E, no que toca a questões de segurança, uma icógnita. O bilhete de autocarro já estava comprado, de véspera, com a ajuda preciosa do amigo Erbil. Hoje seria necessário apenas acordar e seguir para a estação de autocarros, a uns 3 ou 4 km de distância.
Na realidade, ao contrário do que seria de esperar perante as condições principescas, dormi bastante mal. Acordei pelas cinco, custou-me a voltar a adormecer, mudei-me para o sofá… lá fora o céu começava a clarear. Dormi e acordei, já o sol ia alto. Eram oito e pouco. Ainda com tempo para uma última volta pelas ruas misteriosas de Mardin.
Domingo bem cedo. Parecia que toda a cidade se lavava. Das casas saíam caudais das águas de dezenas de duches, o chão público era esfregado, lojas sofriam a faxina semanal, até mesquistas se submetiam a esta obsessão dominical pela higiene.
A planície mesopotâmica continuava igual a si própria. A Síria, aqui mesmo defronte, a perder de vista. E pronto. Eram horas de regressar ao hotel, fechar a mochila e colocar as pernas ao caminho.
O dia estava bonito, como parecem ser todos por aqui. Céu azul, temperatura agradável. Especialmente porque o caminho para a Otogar se fazia sempre a descer. Sem problemas foi percorrida a parte da rua principal que seria preciso deixar para trás, depois foi a própria cidade que deixei pelas costas. Uma longa descida por uma estrada de asfalto novo. Uma carrinha pára e três mulheres e um homem – talvez ciganos – começam a recolher entusiasticamente sacos de plástico do chão. Uma benesse de um país eternamente coberto de lixo. Queriam-nos para recolher os pequenos frutos de uma árvore bem carregada que ali estava à beira de estrada. Os mesmos frutos que me tinham oferecido na véspera enquanto bebia chá.
Chegámos à estação. Sem novidade. O autocarro aparece à hora esperada e parte pontualmente. 10:30. A caminho de Urfa.
A estrada é monótona. Trazia na memória os percursos feitos entre localidades curdas há dois anos atrás, interessantes e cheios de elementos para observar. Mas os cerca de 150 km de Mardin até Urfa não foram mais do que duas horas e meia em auto-estrada, com uma paragem numa estação intermédia, por acaso bem apelativa e cheia de vida.
Urfa. Chegámos cedo de mais. Há que aguardar pelo Habil. Espero que venha. Há sempre esta certa ansiedade quando se chega a uma cidade nova e aguardamos o nosso anfitrião. Alguma malta não se preocupa, mas eu sinto um pouco a angústia. Apenas um pouco.
O Habil é espectacular. O seu inglês é muito limitado. Aliás, até há seis meses atrás era inexistente. Foi por essa altura que decidiu inscrever-se numa escola de inglês. O professor falou-lhe do Couchsurfing. Gostou da ideia, inscreveu-se, e até agora deu abrigo a uns vinte viajantes. E um após outro ajudaram-no a melhorar o seu inglês. É um homem cheio de energia, genuíno, bondoso, com quem não me é difícil sentir empatia desde o primeiro momento.
Leva-nos logo ao lado sagrado, provavelmente o elemento mais conhecido de Urfa. As suas águas límpidas estão repletas de carpas e, segundo a lenda, a sua formação tem origem miraculosa: tendo Ibrahim sido capturado e condenado à morte na fogueira, não puderam os seus captores concretizar a execução: o fogo que tinham preparado transformou-se em água, e os pedaços de madeira já em brasa fizeram-se peixes.
É Domingo e o ambiente é maravilhoso. Há milhares de pessoas por ali, maioritariamente curdos e árabes de outras localidades que aqui se deslocam no dia de descanso. Há também alguns refugiados sírios descansando nos relvados.
O lago é bonito e com a mesquita ali ao lado forma um quadro bucólico a que o meu imaginário liga mais com a Pérsia ou mesmo com a India. Algumas bancas vendem pratinhos com comida para oferecer aos peixes sagrados. Pode-se então pedir um desejo. Clássico.
Em redor do recinto existe um parque, restaurantes descontraídos, uma fonte em repuxo que oferece fotografias maravilhosas.
A entrada em Urfa tinha assustado. Tantos edifícios, bairros residenciais, um mar de torres de habitação. Afinal de contas são quase um milhão de habitantes. Mas agora, naquele recinto maravilhoso abençoava o instinto que me levou a escolher Urfa como segundo ponto a visitar aqui no Curdistão turco e a reservar-lhe três dias.
Metemo-nos no carro e andámos umas centenas de metros. O Habil trouxe-nos ao museu, moderníssimo, aberto há um par de meses. O bilhete custou apenas 5 TL. 1,40 Eur. Mas valia muito, muito mais. A colecção é excelente. Afinal de contas estamos às portas da Mesopotâmia. Foi bem agradável. Uma visita inesperada (por minha decisão nunca teria visitado o museu) em boa companhia.
De novo no carro vamos à escola de inglês do Habil. Conversamos um pouco com o professor, levamo-lo a casa e acabamos no nosso lar para os próximos dois dias. Um apartamento agradável num bairro residencial a cerca de 4 km do centro. O nosso amigo vai correr um pouco. Tempo de escrever o diário. O dia seguinte promete ser longo. Parece haver tanto para ver em Urfa! E com o conselho sábio do Habil as coisas parecem prometedoras.
Regressa. Vamos comprar pão, acabado de sair do forno, e mais alguns ingredientes necessários para o serão. Logo está na cozinha a preparar uma refeição para nós, que apresenta num tabuleiro: uma série de pequenos pratos, petiscos, no estilo em que os espanhóis chamam “tapas” e aqui se denomina de “mezes”. Um jantar delicioso, de enfartar, terminado com chá, rakia e mais comida. Uma excelente forma de encerrar um dia em grande.