Olho distraidamente para a televisão e de repente noto que há algo diferente. Numa espécie de entrevista duas mulheres alouradas sentam-se frente a frente. Não é só o louro dos cabelos que me desperta… vejo pernas. E apercebo-me que há mais de dez dias que não vejo mais do corpo de uma mulher do que as mãos e a face.
Estou em Isfahan, antiga capital da Pérsia, uma de várias cidades que ao longo do tempo e ao sabor do capricho e visão estratégica de sucessivos monarcas foi o coração do grande império. Cheguei de manhã, bati à porta da família que generosamente me ofereceu hospitalidade. Instalei-me, foi-me logo oferecido um chá, fruta. Deliciei-me com a talhada de melancia deixada em cima da secretária que será a minha para os próximos dias. O dia lá fora estava convidativo, sentia aquele comichão de sair para explorar. Falei brevemente com a Claire, que não se chama Claire mas que aqui será assim tratada, simplesmente porque acho que tem cara de Claire. É a irmã do meu anfitrião, só que ele está ausente, por esta altura a viajar entre Lagos e Faro. Eu aqui e ele lá. A vida está cheia de surpresas. A família acedeu a receber-me na sua ausência. Fantástico.
Ela deu-me indicações sobre os transportes. Ficou chocada com a minha ideia de usar autocarros. Mas eu gostaria de pagar 0,12 Eur em vez dos 2,50 Eur que custaria um táxi. Lá me explicou, pedi-lhe para me escrever em Farsi o nome do destino do autocarro.
Simples, entrei, mostrei o bloco ao condutor que confirmou o destino. Lá ia eu direito ao coração histórico de Isfahan… só que os meus olhos deram com a indicação de um dos locais que tinha anotado para visitar na cidade: o Jardim das Flores. E, dizia o autor da recomendação, era vital ir num dia bonito. Como o de hoje, pensei eu, enquanto saltava da cadeira e saía apressadamente pela porta do autocarro.
Paguei os 150.000 Rials (cerca de 4 Eur) do bilhete e entrei. Fui logo submergido por um mundo maravilhoso. Este jardim é, não há outra forma de o dizer, o melhor e mais agradável que já visitei. Não é enorme. Tem uma ala central, cheia de canteiros de flores e pequenos lagos de mosaico azul. De um lado, entre recantos misteriosos, pequenas pontes e plataformas de pedra, encontramos o lago, cercado da mais fabulosa vegetação e onde não faltam os obrigatórios patos. Do lado contrário a aposta é na cor das flores, distribuídas e arranjadas por múltiplos canteiros. Tudo isto é pautado por espaços relvados, matagal planeado e altas árvores, que trazem a frescura desejada a uma cidade que assim vista nem parece ter sido fundada no deserto.
Maravilhei-me com os detalhes, com a trupe de jovens que ensaiavam os seus dotes de pintura, com a estufa de cactos, com os casais de namorados, com as miúdas que me perguntaram de onde vinha e me desejaram uma boa visita ao Irão. Tirei fotografias como não tinha ainda acontecido desde que cheguei ao país. O Jardim das Flores foi imensamente inspirador e recomenda-se de todo.
No final um pequeno susto. Não encontrei o meu maço de notas no bolso devido e lembrei-me que tinha estado sentado no chão à beira do lago a ler, numa posição ideal para o ter deixado cair. Voltei atrás, expliquei-me como pude ao porteiro que me deixou entrar para procurar o tesouro… afinal, depois de ver que não estava nada onde tinha abancado, descobri as notas noutro bolso. Uff! Vá, não ia à falência por causa daqueles 25 Eur, mas ainda era dinheiro.
O meu estômago relembrou-me que o pequeno-almoço tinha sido já há umas cinco horas. Devia ter aceitado o segundo pequeno-almoço que me ofereceram na casa. Vou a um quiosque e compro um bolo saboroso mas peganhento que me deixa as mãos igualmente peganhentas. Ainda bem que no Irão há casas de banho públicas gratuitas por todo o lado.
Vou caminhando e visito sucessivamente duas pontes históricas, a a Kajoo e a Joui. Depois interno-me na cidade, vou em direcção à Torre dos Pombos. Ainda são uns quilómetros, que percorro de olhos abertos, a ver como é o pulsar desta urbe. Gosto do que vejo. Há uma modernidade que não tem nada a ver com o imaginário da Pérsia mas que me deixa pela primeira vez à vontade no Irão. As pessoas não têm aquela auréola negativa que senti por onde passei, a auréola da opressão, voluntária ou involuntária, da repressão do riso e da alegria de viver. Aqui é diferente. As pessoas são, por assim dizer, “normais”. Aparentemente.
O tempo está bom, sinto-me a esticar os músculos da pernas pela primeira vez desde que cheguei ao Irão, travado à vez por anfitriões preguiçosos e cidades demasiado pequenas para andar bem. Hoje, ao final do dia, terei posto 22 km no corpinho. Vejo muita coisa pelo caminho. Detalhes, especialmente humanos. Mas não há espaço nestas crónicas para tais pormenores.
Vejo muitas casas de gelados e muita gente a apreciá-los. Lojas de fast food modernas. E gente também moderna. As ruas da cidade são diferentes de Teerão mas nem sei explicar bem porquê, porque tirando o núcleo histórico não há muito de especial em Isfahan. Simplesmente as ruas são mais agradáveis, sem a agressividade da capital, sem aquele ambiente de selva urbana.
Chego ao local onde deveria estar a Torre dos Pombos mas ou estou enganado ou não há torre. Toda a rotunda está em obras, tudo vedado e escavacado. Acho que são trabalhos do metro de Isfahan.
Dali iria para o bairro cristão, arménio, onde iria visitar a catedral de Vank. Não correu bem. A caminhada até que foi agradável, encontrei o local rapidamente mas… não pago para entrar na casa de Deus. Não sou religioso, mas esta é uma condição da minha crença pessoal e acho uma aberração que se cobre para se dar acesso a uma pessoa que pretende entrar num templo seja lá de que religião for. Quanto ao bairro, posso ter perdido o melhor, mas não vi nada de especial. Só casas normais, como nas outras ruas.
Vou caminhando em direcção ao rio, quer dizer, ao leito do rio, porque água não há. Já que estou ali vou ver uma terceira ponta histórica, a Ponte dos 33 Arcos. Tal como as outras não me impressiona. Talvez se houvesse mesmo água, mas não assim.
Ao abandono, talvez temporário, estão os barcos para alugar, que já terão visto muita felicidade, mas que agora são os mongos de plástico colorido deixados para ali, perto de uma ponte moderna.
Tenho mais uns quilómetros pela frente. A tarde está a acabar, o sol já vai baixo. Já que estou nesta zona quero ver as pontes iluminadas, especialmente a ponte Kajoo, recomendada pelo meu anfitrião. Anda por ali gente estranha. Por duas ou três vezes sou abordado por rapazes de aspecto duvidoso e comportamento estranho. Não sei qual será a cena, mas coisa boa não é. Venda de droga? Quando faço sinal que não percebo patavina e não falo farsi desinteressa-se. Com excepção de um par que caminha comigo umas dezenas de metros com uma conversinha parva. Deve ser falta de sexo, mas dá-me a ideia que uma grande parte desta malta de vinte e tal anos se comporta como adolescentes com problemas hormonais. Por outras palavras: são bastante tolos.
Depois de tirar algumas fotos à ponte já iluminada para a noite encontro uma paragem de autocarro e espero. Estão duas miúdas também à espera. Em cinco minutos devem ter ouvido umas quarenta buzinadelas e uns dez carros param como se fossem prostitutas em zona de ataque. Mas não me parecem ser. Posso estar enganado, mas inclino-me mais um caso de problemas na cabecinha dos varões iranianos. E não lhes faltam problemas na carola.
Já estava a ficar farto das atitudes asquerosas, e as miúdas também porque se foram embora a pé. O autocarro chegou pouco depois. Por uns cêntimos poupei uma caminhada de quase 4 km. E ainda por cima quando cheguei a casa começou a chover. Bom timing!
Jantei com a família. Reconfortante. Comida agradável, chazinho depois. Todos os mimos. Já no quarto a senhora veio-me trazer uma talhada de melancia. Esta gente engorda-me. Sinto-me bem.