Jorge vive no farol Dona Maria Pia, às portas da cidade da Praia, ilha de Santiago, Cabo Verde, bem lá na extremidade da ponta Temerosa, lugar com nome literário, como que saído de um romance de mistério ou de um livro de Enid Blyton.
É mais um faroleiro, o último, até ver, de uma longa linhagem de que parece conhecer quase todos os nomes. O anterior, o velho Malaquias, para enganar o ócio que lhe aparecida nos longos dias sem tarefas evidentes, dedicou-se à arte da relojoaria, e ainda hoje por ali aparecem pessoas à sua procura. O antecessor, reformado, não quis deixar mal a clientela, e uma vez por semana aparece, para receber quem precisar de uma mãozinha habilidosa para a reparação de um relógio.
Jorge, esse, escolheu um outro ramo de actividade para reforçar um vencimento que se adivinha magro e para quebrar a monotonia dos dias sem fim a ver o mar: dedicou-se ao turismo, abrindo as portas do farol à sua guarda a quem quer que deseje subir até lá acima. Escolheu bem. Tem um jeito natural para receber, envolve quem por ali aparece com aquele falar cheio de simpatia e sem dar por isso já o estrangeiro o segue, farol adentro, condenado à gratificação esperada no final da visita, que ele anuncia desde logo, para que não haja mal-entendidos: é 1 Euro. Ou 100 Escudos.
Este negro muito negro tem avô guineense, o que não é uma surpresa para quem o olha. Mas nasceu em Cabo Verde e é deste país que ele se sente cidadão. Das suas origens não tem a melhor das impressões. Nem da terra nem do povo.
Vive lá em baixo, entre os dois edifícios de suporte ao farol, na companhia dos seus canitos. Podia trazer família, mas prefere deixá-la num local com mais condições, mesmo que isso signifique passar grande parte do tempo afastado dos seus. Além disso, assim como assim, para farol este não é dos mais remotos, como outros que se vêem para estas ilhas. A grande cidade, pelos padrões nacionais, está mesmo ali ao pé, ao alcance de uma caminhada que nem é muito longa. E de qualquer modo, logo ao fim do caminho já há hotéis e casas. É quase um farol urbano.
Exigências do ofício fizeram Jorge aprender línguas. Desenvencilha-se em inglês e francês, sem falar de português e espanhol. Conhece a história do farol, fala-nos da rainha que lhe deu nome, corria o ano de 1881. E, claro, sabe do mecanismo. De como no passado a luz era criada por gás, antes da introdução da electricidade. Mostra-nos o conjunto de baterias que em caso de corte mantém o farol activo noite dentro.
Vale a pena visitar este farol. É simples e barato. E como bónus há conversas sem fim a ter com o amigo Jorge. Isto é, se ele não tiver mais “clientes” a chegar.
Mais histórias do farol da Ponta Tenebrosa num artigo no SAPO.