Um dos dias mais encantadores de toda esta viagem, bem plena de grandes dias. Depois da noite passada na louca San Carlos, foi preciso acordar ainda de noite para apanhar o primeiro barco para El Castillo. O atraso da véspera custou um dia, uma noite que devia ter sido logo passada nessa aldeia perdida junto à margem do rio San Juan, mas que afinal foi diferente, numa pensão barata com sujeitas suspeitas aqui em frente à fronteira fluvial de San Carlos.
Não estamos na Ásia mas o cenário traz-me a uma das cenas de Apocalypse Now… a partida rumo ao delta do Mekong… o barco que sai com o nascer do sol. E foi assim, tomar o lugar na embarcação comprida, filas de quatro bancos, dois de cada lado, quase cheia de pessoas interessantes, diferentes.
O dia começa a clarear pouco depois da largada. É um longo percurso até El Castillo, mas cada minuto é aproveitado em deleite. Ainda havia esperança de se avistar crocodilos, mas não aconteceu. Paciência. Valeu por tudo o resto. Pelas pequenas aldeias estabelecidas à beira água, onde alguns passageiros iam sendo largados ou recolhidos, pelo verde envolvente e pelo som da selva, feito de milhares de cânticos, de insectos e aves.
A meio do caminho, uma paragem especial. Há, no meio de nada, uma espécie de estação de táxis fluviais. Quatro ou cinco embarcações menores aguardam clientes, que esperam chegar no barco em que sigo. Provavelmente serão pessoas que querem chegar a comunidades ainda mais remotas, cuja única ligação ao mundo exterior é a rede de afluentes do longo rio San Juan.
Algum tempo depois chegamos a Los Sábalos, uma aldeia de maiores dimensões localizada na união entre o rio e um dos seus afluentes. Há festa, como que uma feira. O barco acosta, saem passageiros, outros formam uma fila para embarcar. Os que não vêm observam a cena, lá de cima. Tenho curiosidade de ver o que há para além daquele muro, mas a verdadeia Los Sábalos mantém-se escondida. Dois militares fazem funções de polícia da aldeia, um deles tem uma AK-47 às costas. Ali mesmo junto ao barco uma iguana de um verde loucamente brilhante passeia-se vagarosamente.
Mais uma vez tenho a sensação de que estou na acção do filme Apocalypse Now, naquela sequência de locais surreais por onde passa o capitão Willard e o pessoal do seu barco. Aqui em Los Sábalos existe acomodação turística, mais tarde conhecerei um casal de… canadianos, creio… que ficaram por aqui um par de noites e que gostaram da experiência.
De Los Sábalos a El Castillo é um saltinho. Logo avisto, ao virar de mais uma curva do rio, o castelo que deu o nome à aldeia. Porquê aquele castelo ali? Quem o construiu foram os espanhóis, fartos das incursões dos piratas e corsários, especialmente ingleses, que vindos do Atlântico entravam na foz do San Juan e o subiam até atingir o imenso lago Nicarágua, a partir do qual chegaram a saquear a opulenta Granada, que chegou a ser a cidade mais rica da América.
Mais tarde os ingleses chegaram a conquistar temporariamente o castelo, numa operação liderada, imagine-se, por um tal tenente Nelson, que se viria a tornar um dos heróis maiores da história britânica depois da sua vitória naval na batalha de Trafalgar.
Chegámos ao ancoradouro e como vêm mais dois estrangeiros tenho pressa em chegar ao local onde desejo ficar. Quem sabe só haja um quarto disponível… e é mesmo ali que quero passar a noite que vamos ficar na aldeia. Segui as indicações que o meu amigo João Leitão me tinha dado – ele que tinha aqui passado no ano anterior e a quem devo a fabulosa sugestão de entrar na Nicarágua por esta rota – e logo encontro o Hotel Tropical.
Parece que o preço aumentou. O João Leitão tinha pago USD 20 mas a mim o jovem proprietário pede-me USD 25 e nada de baixar, por mais que tentasse regatear. Por fim troucou-se o pequeno-almoço pelos tais USD 5 extra e fechou-se o negócio. O quarto tem água quente, diz ele. Por esta altura já estou apaixonado pelo local. É como o João me tinha dito, com um terraço mesmo sobre os rápidos que ali fazem a água do rio San Juan acelerar rumo ao seu encontro com o Atlântico. Agora só penso em largar as coisas e me pôr na rua, a explorar a aldeia.
É um mundo novo. Depois de Los Chiles é o primeiro sabor à verdadeira América Central como a imaginava. Uma comunidade de pessoas de cor diferente, com muito sangue índio. Calma, sem crime. Tranquila e pacífica. Onde a cada passo há algo novo para observar, para viver. As casas de El Castillo são coloridas, feitas de madeira pintada de tons brilhantes. Adoro as cadeiras de balouço que se encontram em quase todos os alpendres, sabe-se lá desde quando e que estórias terão para contar.
Ali não há carros. Nem motas. Tudo o que é transporte se faz pelo rio. As crianças andam livremente pelas ruas. Vão à mercearia, vêm da escola, jogam basebol. Talvez tempo de mais em El Castillo desse comigo em louco, mas vai ser apenas um dia inteiro, e é preciso aproveitar cada segundo. Na realidade, ao fim de algumas horas está tudo visto e percorrido.
Vamos ao cemitério, meio esquecido, usado como atalho por pessoas que vivem em habitações mais afastadas e que se deslocam à aldeia. Visitamos o castelo, que alberga um pequeno museu e uma biblioteca que quando entramos se revela cheia de criançada. Dali de cima vê-se toda a localidade e observa-se o rio que corre defronte. O ponto ideal para travar o passo a frotas piratas. O investimento terá valido a pena, porque com a construção da fortaleza pararam as incursões.
De regresso lá abaixo. Vou à pensão, peço uma faca emprestada e preparo o meio ananás que tinha trazido na mochila. No meio do rio, junto aos rápidos, dois homens pescam, numa canoa, lançando uma ampla rede às águas. Ficamos por ali a descansar um pouco, a gozar o ambiente e o sossego, antes de sair para nova exploração.
Na aldeia, todas as casas são dignas de serem fotografadas, construídas sobretudo de madeira, quase todas assentes sobre pilares, pintadas de cores vivas que com o tempo vão perdendo o brilho.
Dá a clara ideia que o turismo deslumbrou a comunidade, casa sim casa não há uma actividade dirigida aos visitantes, só que não há assim tantos estrangeiros como isso. As pessoas não parecem especialmente perturbadas com a escassez dos clientes. Afinal, existia uma vida antes da chegada dos forasteiros, e enquanto não aparece um cliente as coisas decorrem como antigamente.
A tranquilidade é imensa. O calor tropical faz as gotas de suor descerem pela testa. As aves fazem-se ouvir. São os sons da selva. Caminhamos até onde não se pode prosseguir mais. Mesmo antes há um posto do exército onde jovens ociosos se encontram. Um lava roupa, os outros não fazem absolutamente nada, estão ali à espera da sua hora de pegar ao serviço que por ali se resume à permanência no terreiro frente ao pequeno cais.
Impedidos de prosseguir vimos um par de cães que circundam animadamente uma família que se aproxima. Todos entram numa embarcação de rio, esbelta como uma longa piroga, e vão, correnteza abaixo, os animais arquejando de satisfação. Obviamente gostam de passear de barco.
Depois internamo-nos pelas ruas mais afastadas da água. Há um campo de bola, miúdos que andam por ali. As casas são agora mais pobres. É natural. Os mais abastados na melhor posição, junto ao rio, à acessibilidade. Mais pobres mas não menos pitorescas. A ocupação humana é mais genuína. Lá para baixo o mundo de El Castillo foi moldado para os turistas. Aqui estão as pessoas reais.
Prosseguimos pelas vias interiores da aldeia e cada casa é uma redescoberta. As tais cadeiras de balouço oferecem um toque nostálgico às plataformas de entrada, as bananeiras e outras plantas tropicais formam pequenos jardins, a pequenada passa a correr, velhotas conversam à porta da mercearia.
Vamos dar à rua principal e desta vez exploramos para o lado oposto, de novo até não se poder ir mais. As flores por aqui são magníficas, diferentes, enormes, coloridas. Vejo lojinhas de vendas genéricas, um barbeiro que também tira fotocópias, e mais oferta de serviços de guias. Tascas convidativas e restaurantes mais vocacionados para os “gringos” do lado da água, os seus terraços transformados em sala de refeições.
Encontramos o casal que veio connosco no barco da manhã e que nos recomenda um café lá bem no fundo da aldeia, por onde já tínhamos passado. Tentamos, mas há obras na casa do lado, os homens instalam uma nova placa de zinco à laia de telhado e o barulho não é convidativo a uma permanência. Regressaremos mais tarde, depois de uma visita ao hotel para repousar um pouco e, enfim, usufruir da opção descartada à chegada.
Bebo um batido da banana com baunilha numa mesa do piso térreo. No espaço superior mulheres riem-se estridentemente. Má vizinhança. Vejo que é gente que também veio no barco. Dois canadianos de aspecto suspeito e três mulheres que deverão ser nicaraguenses. Felizmente não pararão muito pelo hotel, ou se o fazem é quando não estamos.
Vamos explorar um pouco mais. O tempo será tão pouco para estar neste pedaço de paraíso! Considero mesmo ficar mais uma noite… mas não… o local é pequeno e sei que apesar de tudo parecer desejável agora, na hora da partida já estarei saciado.
Agora apanhamos um caminho mais remoto. Procuramos o recinto das borboletas, que encontramos em local remoto. São 3 USD para visitar e o local parece neglicenciado, por isso, não.
Acabamos por basicamente sair da aldeia, em direcção ao espaço rural envolvente, depois de passar pelo centro de saúde. E damos com a fábrica de chocolate de que nos tinhamos falado… lá dentro estão os amigos canadianos todos satisfeitos, numa tour guiada. Compro dois chocolatitos para saborear mais tarde.
Tentamos de novo o café recomendado e desta vez o local está sossegado. As bebidas não são das melhores e são caras, mas o “deck” é fabuloso e as espreguicadeiras são tão confortáveis que me mantenho por lá a ler durante um bom bocado. Regressaremos mais tarde, para encontrar os canadianos, que ali irão jantar.
Basicamente está tudo visto, agora resta repetir troços, passar de novo pelas mesmas casas, pelas mesmas ruas. O que não é mau. Podia ter passado alguns dias, caso tivesse imensos para gastar, andando ali para trás e para a frente.
De novo para o hotel. Peço algo para preparar um ananás que comprei. Entretanto a água quente não funciona e com isso foi negociado um pequeno-almoço simples para o dia seguinte.
O serão foi passado com os canadianos, no tranquilissimo restaurante do fabuloso “deck”. Os preços eram um pouco elevados por isso ficámo-nos por uma bebida enquanto eles jantavam, nós com os livros, eles com as iguarias, e depois então reunimo-nos para conversar um bocado.