O último dia em Santorini foi espantoso. Tinhamos decidido alugar um carro, e, depois do pequeno-almoço, o agora nosso amigo Yoanis (se é assim que se escreve o nome grego que corresponde a João) escoltou-nos a uma loja de alugueres conhecida. Só tinham carros de transmissão automática. Fora de questão. Passámos à opção B, uma loja chamada Damigos. Recomendada, para referência, este estabelecimento, na rua principal de Thira, a estrada por onde passa todo o tráfego. Simpatia e eficiência aliadas a um bom preço: 25 Eur para um carro por um dia.
E de repente, o mundo era nosso. Que diferente sensação! Uma coisa muito diferente do que estar a olhar em redor, ver aqueles pontinhos brancos a formar aldeias em redor, os cerros altos, tão perto e tão longe. Com o carro a cantiga era agora outra. Bastava olhar, desejar, e estava lá. Já na véspera o Yoanis nos tinha marcado num mapa as suas recomendações. Mas essas ficaram para depois. Para começar o dia, fomos até Kamari, onde tinhamos estado há dois dias. Mas o plano agora era outro: subir aquela estrada em zigzag, toda, até lá acima, de onde se vê o mundo. Mais simples do que calculei depois de ver, ao longe, o traçado em serpentina do asfalto. De resto, conduzir em Santorini é muito simples. Que ninguém hesite em alugar um carro, alienado pelos relatos, geralmente conduzidos por britânicos e americanos, de condução alucinante. As estradas não são boas, isso é verdade, mas fazem-se bem, e nunca senti qualquer problema no estilo ao volante dos outros condutores.
Lá em cima, uma pequena rotunda e nada mais. Que, por sinal, se encontra cheia de carros parqueados. O vento é colossal, parece que vai virar o nosso pequeno Hyunday Athos branco. É ali o acesso para a “Ancient Thirassia”, que o nosso amigo grego descartou como uma “touristic trap”. Nunca saberei se estava certo. À chegada ia cheio de pica para outros programas, e à partida já estava cansado, o vento incomodava, o calor apertava e a ideia de pagar um bilhete desencorajava ainda mais. Então o que fomos ali fazer? Ver as vistas? Podia ser, que dali se usufrui de uma perspectiva única. Trata-se de um dos vértices de Santorini, e em ambos os lados do cerro se encontram grandes aldeias desenvolvidas em torno de praias: Kamari e Perissa. Mas não, o que tinhamos em mente era ter um cheirinho dos percursos de caminhada gregos, e andar um par de quilómetros por aquele, que ligava as localidades mencionadas, num traçado violento, feito de ascensões e descidas acentuadas. Aquela hora vimos apenas uns caminhantes, que vinham no sentido oposto. Depois, mais um pequeno grupo, bizarro, de senhoras estrangeiras que tinham a aparência de quem passeava pelo mercado local, a caminho da praia. Chegámos por fim ao destino surpresa: bem escondida por detrás de umas rochas, uma pequena capela. Um segredo bem mantido, que nos deixa de queixo caído. As coisas que se encontram na serrania grega! Noutros momentos e noutros locais encontrarei mais destas igrejas, abrigadas longe da vista de todos, e penso que dias bem mais perigosos terão ditado estes subterfúgios. Dias de piratas sedentos de saque e sangue, tocando as costas em busca de comunidades isoladas, vítimas fáceis. Dias de invasores otomanos, desejosos de castigar o clero cristão.
No caminho de regresso mais pessoas andavam pelo trilho. Muitas mais. Daquele troço observam-se curiosas construções, sabe-se lá de que tempos e com que missões. E um local de enterro antigo, explicado através de um painel interpretativo. De novo no topo. Ainda está mais vento, mas isso não impede os turistas de continuar a chegar… já há carros parados pela estrada abaixo.
A próxima paragem seria a primeira igreja bizantina. Não em Santorini. Não em terras da actual Grécia. Mas em todo o Império! Decepção. A igreja é desinteressante, num anexo vivem pessoas e um cão à solta, feroz, muito feroz. Foi desta igreja que foram roubadas as peças de arte que, segundo os rumores, terão levado ao assassinato da mulher que foi encontrada na gruta que visitei há dois dias. Talvez por isso se vejam instaladas câmaras de vigilância. Um local bem desagradável, a evitar.
Depois deste triste interlúdio, uma excelente surpresa: Pyrgos. Sem qualquer indicação nem recomendação, senti uma vontade súbita de parar nesta aldeia, e um carro a deixar-me um lugar de estacionamento vago, mesmo à minha frente, foi o sinal derradeiro. Sem sabermos bem onde ir, começámos a subir em direcção ao que parecia ser o centro histórico, um morro que parecia ocupado por um castelo. Mas isto, mesmo ali, estamos a falar de uns cem metros a partir da estrada principal. E que cem metros esses! Quem diria, em Santorini, uma aldeia ainda tão genuína. É certo que com as suas lojas de souvenirs… mas sem practicamente nenhuns turistas para além de nós, a atmosfera era autêntica. As casas ao longo das vielas e becos não estavam tão bem conservadas que retirassem legitimidade ao cenário. Os pormenores para fotografar eram infinitos. Portas, janelas, chaminés e outras pequenas maravilhas. Ruas, esquinas, arcadas e outros milagres arquitectónicos. Um café bizarro, deslocado, com toques cosmopolitas de primeira linha de Thira. Igrejas. E lá em cima, muralha antiga e mais igrejas. De boca aberta, andava de um lado para o outro, atarantado pelas sucessivas surpresas. Descobri um portãozito aberto, que devia estar fechado: dava acesso ao terraço da igreja principal, e de lá pude tocar Pyrgos inteira com os dedos.
Na volta, ainda parei para um “gyros”, que em Pyrgos se compra por um valor muito mais realista que nos infernos turísticos da costa: 2,00 Eur, ali preparado na altura por mais um grego simpático e bem disposto.
De seguida, fomos até ao topo maior, ao alto do monte que se vê de onde quer que se esteja em Santorini. Aqui entre nós, para ser honesto, esperava mais do local. Não sei explicar… a vista não é tão deslumbrante como prometia, não há um miradouro, um local aprazível. É conduzir sempre até lá acima, há um grupo de casas, que tapa metade da vista, e mais nada. Um pouco abaixo, instalações militares e é tudo.
E depois foi cruzar os campos, conhecer uma outra Santorini, rural, longe do bulício dos visitantes, com apenas um ou outro carro de aluguer a cruzar-se conosco. O turismo é o centro de tudo na parte da ilha que até então tinhamos conhecido. Aqui há outras coisas, campos de vinha e outras culturas, campos baldios e pedreiras. A paisagem, nem sei porquê, faz-me lembrar a Toscânia. Não que alguma vez lá tivesse estado, mas da ideia que dela guardo a partir de filmes: campos dourados, de morfologia ondulada, cores quentes… e no meio, uma igreja, aliás, mais uma capela… pequena, singela. Ao lado, um monte mais elevado, ao qual trepei sem regatear fadigas, para ser recompensado, no seu topo, por uma das grandes visões que trouxe da Grécia: em redor, tudo o que descrevi anteriormente, mais pequenino, visto de mais longe, com a imensidão do mar acrescentada ao quadro.
Não muito longe ficava um dos principais locais arqueológicos da ilha, Akrotiri, aconselhado pelo John, como “the real thing”, por contraposição com a “old Thira” que, ainda segundo ele, não era mais do que umas pedras esparsas. Mas o mau augúrio do nosso amigo concretizou-se. Tinhamos ficado intrigados com a sua frase… “(…) se o encontrarem aberto”, que interpretámos como uma alusão às horas a que lá chegariamos. Mas não. Hora mais aceitável do que a hora que chegámos não há, e pelo ar da coisa, mais do que estar fechado para o dia, tinha estado fechado há semanas.
Parámos um pouco numa pequena praia mesmo junto ao sítio arqueológico, deserta. Um restaurante ainda fechado, aguardando a chegada da época alta, revelou-nos os seus segredos. Pude explorar os seus cantos, abertos de par em par, em terra de que a maldade está afastada, e em que as pessoas confiam nas pessoas. O dia estava a acabar. O sol já ia caindo mas acima de tudo estávamos estafados. Parámos ainda para explorar uma outra aldeia, que nos tinah sido recomendada, mas não apreciámos. O seu nome já se dissipou nas brumas da memória. Era suposto ser castiça mas não atingimos essa perspectiva.
Voltámos à Villa Popi, para um serão de internet, antes do John nos levar ao “ferry”. Depois dos serões consecutivos à conversa, já viamos o John como um amigo, e, estou certo, vice-versa. Neste dia da despedida mostrámos mutuamente fotografias e websites. Até que chegou a hora. Fomos aliás mais cedo para o porto, para uma derradeira cerveja, oferta do amigo grego. Estava uma noite mansa, sem aragem e a uma temperatura perfeita. Por fim o monstro metálico emergiu da escuridão e fez-se ao cais. Hora de partir. Pela frente tinhamos uma santa viagem, tal como tinha sido o “cruzeiro” de vinda. Diferente, sem a excitação da descoberta. Mas tão terna: foi chegar, escolher um bom cantinho para passar a noite e dormir que nem um anjo até ao nascer do sol, que nos apanhou a fazer a escala de Kos. Dali até Rhodes era um saltinho e mesmo assim ainda deu para mais um bom sono.