Este dia foi de certa forma inesperado. Quer dizer, em termos de planeamento. Não fazia parte do programa até à YPT descobrir que existiria um problema na obtenção dos bilhetes de comboio: devido a toda a agitação provocada pelas grandiosas comemorações do 70º Aniversário da Revolução na China, as autoridades da Coreia do Norte determinaram que ao contrário do costume, os bilhetes para o comboio de Pyongyang só poderiam ser adquiridos mediante apresentação dos passaportes dos passageiros. Resultado: não foi possível fazer a viagem de seguida, desde Pequim, sendo necessário passar o dia inteiro na cidade fronteiriça de Dandong. Isso roubou-nos um dia inteiro na Coreia do Norte, mas no fim até resultou bem, foi um dia agradável.
Depois de uma noite mal passada no comboio, chegamos de manhã a Dandong. À nossa espera estava a Michelle, uma guia da YPT, chinesa, que nos levou de imediato para o hotel, localizado mesmo ao lado da estação.
Ficaríamos ali nessa noite, mas tinha-se conseguido arranjar um check in bem matutino, o que foi muito agradável pois pudemos relaxar um bocado e tomar um duche antes do início das actividades que a YPT tinha preparado para este dia.
Lá nos foi dada a chave do quarto, a mim e ao Bryan, o australiano com que partilharia não só este quarto como também o de Pyongyang, e seguimos até um piso bem elevado, de onde se tinha uma vista ampla sobre a cidade. Um hotel um bocado decadente mas, diga-se, bem barato. É verdade que não fui eu que paguei mas fui cuscar ao Booking.com e o quarto valia cerca de 20 Euros. Para esse valor, estava de facto muito bom.
Passada a hora e tal que nos foi dada para repousar e recarregar baterias, o encontro no lobby do hotel. Que estranho é para mim viajar assim, com tudo preparado e organizado, papinha toda feita, sem preocupações, simplesmente seguindo o rebanho. Até sabe bem. Pontualmente.
O autocarro avança a um sinal da Michelle. Sincronia perfeita. Vamos começar o dia de passeio com uma visita a um segmento da Muralha da China, aqui bem próximo de Dandong. As alterações de última hora no plano da tour trouxeram esta vantagem, de dar uma vista de olhos à famosa muralha. Nunca me entusiasmou, mas fiquei satisfeito pela oportunidade.
Depois de rolar um bom bocado, primeiro saindo da cidade, depois nos arredores, chegamos à Muralha. Apesar das minhas expectativas serem baixas, a visita conseguiu ainda ser decepcionante. Acredito que existirão momentos mágicos na Muralha. Troços com envolvência de cortar a respiração, com uma luz fabulosa e um clima incrível. Não ali e, creio, não na maioria dos locais acessíveis a um turista. Um magote de pessoas a trepar por uma estrutura de pedra que me parece altamente adulterada, reconstruída, com pouca relação com a obra original, um pouco assim como o castelo de São Jorge e outros existentes no nosso país.
Lá fomos, trepando, com muito calor. Nisto o caudal de gentes detém-se. É passada a palavra que mais acima alguém teve um ataque cardíaco e é preciso dar espaço para a evacuação. Sento-me nas escadas de pedra, aguardo pacientemente. A subida prossegue, até ao ponto mais alto do segmento. Nem vou ao topo da torre, para espanto do voluntário que coordena o fluxo de pessoas. Não haverá nada para ver que não veja aqui debaixo. Sigo.
Agora a descida é uma assassina para os meus pobres e velhos joelhos. Por milagre no dia seguinte não surgirão mazelas. Against all odds. Ao fim da descida começa a melhor parte.
Há um trilho, por vezes complicado, que contorna a massa rochosa que na vertical se ergue do rio que ali faz fronteira com a Coreia do Norte. Passei do banal para o maravilhoso num ápice. Do outro lado do curso de água vê-se um posto de vigilância dos coreanos. Há arame farpado aqui e ali.
Vêem-se alguns pequenos barcos encostados junto à margem. A progressão é difícil. Em determinado momento é necessário passar agachado por uma abertura longa na rocha. Descer troços quase a pique, apoiado em cordas e grampos ali fixados. Agora há muito menos pessoas. Um grupo de asiáticos e duas pessoas da nossa tour. A multidão foi-se, saiu do percurso quando a muralha acabou.
Cada um fez o passeio ao seu ritmo. O ponto de encontro estava determinado e cheguei bastante antes. Sentei-me com um alemão a beber algo fresco. No seu telemóvel (como ele era residente na China tinha dados) vimos o desfile grandioso que tinha lugar em Pequim. Estava um dia de céu azul e muito calor. Tinha suado bastante.
O grupo reuniu-se e regressámos ao autocarro. A fome ia chegando a e ida para o restaurante foi bem-vinda. Quando vim para esta viagem esperava dificuldades com a comida mas afinal não. As escolhas da organização foram quase sempre excelentes e comi muito bem. Nesta primeira grande refeição em grupo fomos para um restaurante onde grandes mesas circulares estavam cobertas de petiscos. O tampo da mesa rodava e podíamos experimentar as diferentes iguarias, presentes para todos os gostos. Até o meu. Cerveja com abundância. Uma maravilha.
Descobri que um casal de chineses que fazia parte do nosso grupo tinha visitado Faro há um par de anos. Tinham estado a 50 m de minha casa, feito compras no mercado onde costumo ir aos domingos de manhã. Estado na Etiópia ao mesmo tempo que eu. O mundo é mesmo pequeno.
De barriga cheia fomos até ao cais fluvial. Um pequeno passeio de barco, o cartaz turístico por excelência. A atmosfera na cidade estava fantástica, com muita gente a passear, um ambiente de festa incrível. No meio do rio, que é bastante largo, avistava-se um ou outro nadador mais corajoso, que ali davam vigorosas braçadas.
A embarcação aproxima-se um pouco da margem oposta. Podemos vez norte-coreanos nas suas andanças. Lavando roupa nas águas do rio, pescando. Depois temos uma perspectiva da ponte antiga, ao lado da nova. Foi destruída durante a Guerra da Coreia e deixada assim, como memorial e monumento.
Regressamos ao cais. Agora vamos nós caminhar na tal ponte. É preciso pagar bilhete. Mas isso é algo de que a YPT tratará. De novo, viajar em tour. Tudo simplificado. É até bizarro.
Gostei deste passeio. Soprava uma brisa fresca que oferecia um bem-vindo contraste ao calor que se fazia sentir neste dia. Havia tanta gente a passear no tabuleiro! Mas sem aquele sentir de multidão. Havia espaço e ao mesmo tempo calor humano. Tanta gente para observar. Noivos que tiravam fotografias, amigos que conversavam enquanto caminhavam, homens solitários que se sentavam olhando o infinito. Namorados. Jovens e velhos. Excursões. Gente de todo o género. Uma cornucópia de pessoas.
Chegando à ponta, o regresso. Tirei muitas fotografias. Momento alto, memória doce desta viagem. Das minhas viagens. Agora observei melhor o monumento da entrada. Bélico, glorioso. Socialista com o toque específico asiático. Poderia ser no Laos. No Vietname.
Íamos agora encontrar um outro grupo da YPT, pessoal que vinha para uma viagem ainda mais curta. Basicamente um dia na Coreia do Norte. Era preciso fazer-lhes o briefing, a mesa convesa que tínhamos recebido na véspera. O local escolhido era um supermercado com um restaurante e bar, ali próximo. Gostei imenso. A cerveja era enorme, fresca e gostosa. Especialmente depois de um dia a suar soube-me maravilhosamente.
No caminho até lá deu para observar ainda mais pessoas, desta vez espalhadas pelo passeio marítimo, ajardinado. Neste dia não se passou muito mais. O dia seguinte seia de viagem e era necessário descansar. Recolhemos ao hotel. Dormi bem, com os efeitos do jetlag já a desaparecer. Foi um bom dia. Se por um lado perder um dia inteiro na Coreia do Norte tinha sido aborrecido, o plano de contingência não poderia ter resultado melhor. Soube bem fazer um break naquilo que seria uma viagem de 24 horas de comboio e visitar uma outra cidade chinesa, para além de Pequim.