3 de Outubro
O meu anfitrião sai às seis da manhã. SEIS DA MANHÃ! Faz tanto barulho que desperto e já não consigo dormir muito mais. Às oito estou acordado mas deixo-me estar por ali, lendo um pouco, arrumando coisas. Quando saio, penso que não me posso esquecer de nada, porque só terei acesso ao meu material para o final da tarde. Bastou apenas chegar à baixa da cidade para dar por falta de tudo o que me é essencial… o netbook com todas as informações que tinha preparado sobre a cidade e o Kindle. Portanto, são 9 horas e nas próximas oito horas não tenho muito para fazer para além de esperar. A cidade não tem muitos pontos de interesse, o que torna díficil encontrar um que seja sem saber onde se encontram. Um pequeno paliativo: na base de dados do GPS existem duas ou três “atracções” na cidade, Então em vez de andar para trás e para a frente sem qualquer objectivo, já posso andar para a frente com alguma intenção, pelo menos para já. Encontro a estátua de Skandjberg e as fotografia dos desaparecidos de 1999. Passo pelo monumento “Newborn”, um conjunto de letras de dois metros de altura formando a palavra que na altura se referia ao nascimento deste novo país, ponto de encontro muito em voga por essa altura; o primeiro-ministro e o presidente encetaram o costume de escrevinhar qualquer coisa no monumento, que depressa ficou coberto de passagens caligráficas.
Não existe nenhum gabinete de turismo em Pristina, nem nenhum local onde se possa comprar um guiaziato ou um mapa que seja. Em desespero de causa, entro num hotel de 5 estrelas e pergunto se sabem onde posso arranjar um mapa. O rapaz da recepção, com toda a simpatia do mundo, saca de uma fotocópia de pouca qualidade da área restrita do centro e oferece-ma, com ar de quem acabou de resolver o problema deste visitante. O cemitério judeu? Nunca ouviu falar. O monumento aos mártires? Também não. Mas ali, algures, no final daquela rua, há um museu com “coisas antigas”.
Ainda pouco passa das 10 horas e já esgotei tudo que por essa altura imaginava conseguir fazer sozinho. Estou cansado. Depois de todos aqueles meses de chinelos os meus pés não estão habituados às pesadas botas. E nisto dá-se um pequeno milagre. Numa banca de livros na rua vejo mapas! De Pristina há apenas um, que compro, aceitando conformado a roubalheira de 5 Eur por uma mapa de má qualidade. Sento-me num banco à sombra a estudar… consigo encontrar algums pontos de interesse que estavam na minha lista, mas não mais do que dois ou três. Mas sentir-me orientado levanta-me o moral. Passo para o GPS os pontos que identifico e já nem cansaço sinto.
O ponto mais afastado que identifico é o Monumento dos Mártires, que vou encontrar mais tarde tal e qual como estava descito no guiazito que li: decrépito e esquecido, com algumas campas de combatentes do KLO nas redondezas. Mas para lá chegar passo pelo que esperava ser uma catedral ortodoxa, porque é assim que está marcada na planta da cidade. Só que a catedral está em construção, o que não deixa de ter interesse. Já tinha visto uma ou duas igrejas no processo de construção e até uma cujo processo (e o local) foi abandonado a meio. Mas nunca tinha visto uma coisa assim, mais grandiosa… uma catedral.
Depois iniciei uma subida, já com o calor do meio do dia a apertar. Nestes dias de Kosovo fiquei surpreendido com a amplitude térmica, que mandou os termómetros dos 8 graus nocturnos para os 28 graus da hora de almoço. Toda aquela subida é dominada pelo enorme campus universitário e edíficios relacionados, como a rádio académica, lojas de fotocópias… livrarias é que nem vê-las. No Kosovo não se lê. Nem em Pristina nem em Prizren. As únicas “livrarias” que encontrei, de tal só tinham o nome, sendo na realidade papelarias e lojas de bijuteria com toques dos nossos estabelecimentos chineses.
O monumento é um complexo de betão, circular, sombrio. Está coberto de graffities e a miudagem tomou conta dele. A vista sobre a cidade é interessante. Do lado oposto aquele por que me aproximei encontro os túmulos de alguns guerrilheiros do KLO, Organização de Libertação do Kosovo. Quase todas as campas têm flores frescas.
Por esta altura do dia já estou cansado, mas ainda faltam 3 ou 4 horas para poder regressar a casa. Caminho de regresso ao centro, com muita calma. Depois, acabo por encontrar o tal museu “com coisas antigas”. Está encerrado, porque se está a preparar um evento para o serão, mas as menininas da organização convidam-me a entrar de qualquer forma para dar uma vista de olhos. Só depois de lá estar é que percebo que se trata de uma exposição de arqueologia,. Valeu para queimar mais uns minutos do enorme lote que tenho disponível, mas não recomendaria a não ser que o leitor tenha interesse específico na matéria.
Passo de novo junto às fotos dos desaparecidos, que carregam uma carga emocional bastante intensa. Algumas, certamente as primeiras a serem colocadas, estão tão desbotadas pelo exposição ao sol, que mal dá para entender que se tratam de imagens humanas. Algumas das imagens são colectivas, colecções de fotos alinhadas, mas outras foram deixadas no local individualmente. Há rosas artificiais penduradas junto a algumas das folhas. Na sua simplicidade, este local acabou por ser dos mais marcantes da passagem por Pristina. Ficará na memória.
No pico da tarde a avenida Madre Teresa está pejada de gente. Talvez seja o eixo principal da vida na cidade, o local de passagem obrigatória, o sítio onde as esplanadas mais na berra se encontram. Depois de descansar durante alguns minutos num banco, preparo-me para subir a encosta que me separa de casa. Curiosamente não me custa tanto como no dia anterior… claro que o carrego ser bem menor tem influência, mas também a ausência de incerteza no caminho a trilhar ajuda. Apesar de todos os esforços para passar tempo, quando chego lá acima ainda faltam quase três horas. Bem… no mapa mostra um parque ali por cima, e é para lá que me dirigo. Mas ao chegar ao topo do bairro, surpresa! Um cemitério! Que maravilhosa forma de acabar o dia! Mesmo sem a beleza dos cemitérios da Europa Central, dá para entreter e encontrar alguns detalhes deliciosos. Ainda guardo a esperança de dar com o cemitério judeu, mas afinal não, não está por ali. É mesmo num outro local da cidade. Terminado o giro por entre as campas, saio para a estrada e encontro o meu velho amigo kosovar, o senhorio do Roberto. Grande conversata, sorriso para lá, sorriso para cá, e ele segue ao volante do seu VW Golf imaculado, enquanto eu me interno na floresta. Depois de passar por um recinto onde alguns rapazes jogam à bola e dois pequenos grupos de mulheres descansam na relva, vou-me gradualmente isolando no bosque silencioso. Ajeito-me junto à base de uma árvore, deito-me, depois de tirar as botas pesadas e as meias. Mesmo sem nada para fazer, consigo sentir-me bem durante duas horas, apreciando a tranquilidade envolvente, descansando o corpo dorido, quase adormecendo.
Já completamente revigorado, levanto-me para ir para casa. Está na hora. Mas ainda tinha guardado um grande susto para o fim do dia: o GPS, esse companheiro vital de viagem, não se deixa ligar. “System Files Missing”. Uh uh! Não soa nada bem. Mas para já não há nada a fazer. O Roberto ainda não tinha chegado e sento-me quietinho, à porta. Quando finalmente aparece, peço-lhe para usar a Internet no computador dele (por alguma razão não consigo ligar com o meu) e o resto da noite não tem grande história: ele, de qualquer modo, já tinha o seu programa, e eu fico todo o serão a trabalhar no problema do GPS, que, depois de muitos avanços e recuos, é resolvido por fim. A única consequência foi a perda dos pontos que fui marcando nestes primeiros dias de viagem. Nada de importante. Mas para atingir o conforto da resolução do problema tive que sofrer muito, com a cadelita irrequieta do Roberto a não colaborar, com as suas corridinhas pela casa e os pedidos de atenção constantes.