A estória passa-se em Lushnje, uma pequena cidade de trinta mil habitantes no coração da Albânia. É um local sem atractivos, uma urbe cinzenta, feia e pobre. Como de resto o são quase todas naquele que será provavelmente o país mais pobre da Europa, um legado da governação esquizofrénica de Enver Hoxha, o homem que emergiu no pós-guerra como o líder comunista que comandaria os destinos da Albânia por mais de quarenta anos.
Em Lushnje fiquei com um jovem norte-americano que fazia voluntariado por ali para o Peace Corps. Naquele fim-de-semana um outro americano viria visitá-lo, de forma que éramos três para jantar no serão de Sexta-feira. Começámos com uma pizza, seguimos para um bar onde bebemos qualquer coisa antes de sermos delicadamente postos na rua porque éramos os únicos clientes e, sendo assim, a rapaziada queria fechar a casa.
E agora? Olhámos para Kip, o anfitrião, um gesto natural de quem está de passagem, ou pelo menos, numa passagem ainda mais efémera do que um voluntário americano em Lushnje. E diz ele… “- Só se formos ao cafézito lá do bairro”. E nós, “- Olha boa, porque não…”. Muitos poderia dizer… porque não? Porque é tarde e não há iluminação pública, porque aquele bairro é o mais mal-afamado da cidade, que de resto já não é propriamente bem considerada na Albânia…
Mas fomos. Ainda não tinhamos lá chegado e já da porta um vulto, certamente reconhecendo o Kip, fazia gestos convidativos. Pois entrámos, sentaram-nos a uma mesa onde já se encontrava uma roda de amigos. E agora, como é que se conversa com um grupo de albaneses num café de um bairro (muito) degradado? A fórmula é mais ou menos esta: um albanês que trabalhou num aviário industrial no Reino Unido e fala um inglês sólido; dois americanos que em alguns meses de vida na Albânia já se desenrascam com a língua; uma mão cheia de locais que em algum momento das suas vidas já viveram na Itália; um português que, fruto do parentesco linguístico, percebe umas palavras de italiano. E chega? Chega pois. Sobretudo quando a rakia vai enchendo copos atrás de copos.
O núcleo duro de amigos que nos recebeu foi sendo reforçado e esvaziado ao longo da noite por homens que desciam à rua para o seu café ou rakia após o jantar. Três estrangeiros no seu pouso não podiam deixar de chamar a atenção. Quase toda positiva, alguma negativa, uma hostilidade compreensível, de gente que passa mal, que está envolvida em múltiplas actividades criminosas e que legitimamente poderá preferir um ambiente mais reservado no seu refúgio de bairro.
Quebrado o gelo, vai-se a ver e não há uma só daquelas alminhas que não esteja envolvida em tráfico de droga. Quase todos já cumpriram penas de prisão, em Albânia ou na Itália, o cenário favorito para as manigâncias destes albaneses. Do “inglês” descubro que jogou futebol na Selecção da Albânia de sub-21, antes de se perder pelos caminhos obscuros da vida. Era guarda-redes e foi treinado pelo grande Mario Kempes, um dos campeões do mundo pela Argentina que, imagine-se, deu consigo a treinar o clube local aqui da terra, uma situação extraordinária até porque foi o primeiro treinador a contractar um jogador estrangeiro para um clube albanês.
No canto da sala um homem mais velho, talvez com uns sessenta anos de idade, fitava-me, sem uma palavra. Ao fim de um bocado, já incomodado com a situação, perguntei ao meu amigo “inglês” porque é que o tipo me estava a olhar fixamente. Seguiu-se uma troca de palavras em albanês e logo chegou uma tradução simplificada: “- Ele pergunta se tu sabes que Portugal é o país europeu com as fronteiras mais antigas”. Ò Diabo, mas o que é que temos aqui. Fiquei surpreendido, claro que fiquei. Mas logo recebo uma ode de Camões que me deixa ainda mais abananado. “- Ò “inglês” mas tu pergunta-lhe lá como é que ele sabe estas coisas do meu país”. Mais conversa em albanês. A explicação: o tipo tinha passado mais de metade da sua vida na cadeia, a primeira vez por razões políticas, ainda um gaiato de 13 anos, simplesmente porque se atrevera a vestil blue jeans, um símbolo da decadência ocidental altamente proibido na Albânia de Enver Hoxha. E então, com tantos anos de ócio na sua vida, preencheu-os a ler, a ler tudo o que apanhava lá pela prisão. Daí estes pedaços de conhecimento enciclopédico.
Chegou a hora da despedida que a noite já ia longa e seis ou sete copos de rakia fazem mossa. Também eles se aprestaram para sair, para encerrar o seu café. Quanto é que devemos? Nada. Como nada? Bebemos uma porradona de copos de rakia. Pois, por isso mesmo… ninguém sabe quanto beberam por isso não é nada. E nós, que não, que queriamos pagar, que não era justo, que já que não sabiam pois deviam ter sido sete. E eles, quase em coro… sete!? Nem pensar. Então vá, dois. Pagam dois copos cada um. Depois, novo drama, que dos cinco ou seis que ali estavam, nenhum queria receber o dinheiro. E nós… “- Mau, afinal quem é o dono do café”. Eles apontaram uns para os outros, num alibi em série, que não deixou outra solução senão deixarmos as moedas em cima da mesa.