Dia 5 de Fevereiro de 2020, Quarta-feira
Vamos estrear os serviços da Uber na capital peruana. Corre bem. Corre bem agora e correrá sempre bem nas várias vezes que o fizemos.
O destino para esta manhã é um bairro histórico de Lima, Barranco. A ideia é ir numa free walking tour daquela área, que pelos trabalhos de casa efectuados me parece a mais interessante da capital.
A corrida não é longa. Há muito trânsito mas a viagem decorre sem incidentes. O condutor é um simpático senhor, já mais velho, Testemunha de Jeová. Felizmente não me tentou converter. Não mais do que com a habitual revistazinha. Mas a sério, um tipo impecável, com uma visão do mundo e das coisas muito apurada. Falava ele da violência que germina cada vez mais nos corações humanos, na facilidade com que as pessoas se irritam por tudo e por nada e logo um condutor lhe descarrega uma série de impropérios. Um mundo aí está, a falar por si, a confirmar um apontamento muito válido.
Deixa-nos em Barranco, junto à Ponte dos Suspiros, um lugar turístico que serve de ponto de partida para as visitas ao bairro. Vimos adiantados, há tempo para gastar. Descontraímos na praça principal do bairro. Mas o céu está carregado, há mesmo algum frio. Não se pode dizer que o dia estivesse agradável.
O jardim é bonito, muito verde, mantido numa condição impecável por um exército de jardineiros. Como pano de fundo, a fachada de um par de edifícios históricos. Alguns bancos estão ocupados. Um ambiente interessante.
Chega a hora mas não há sinal do guia que supostamente encontraria aqui quem quisesse juntar-se ao passeio. Apenas dois estrangeiros, que parecem procurar o mesmo. Do outro lado da rua falam com um rapaz local. Vamos lá ver… sim é aquilo. Só que é outra free walking tour, não aquela que tinha visto anunciada no hostel.
Começa o passeio. Vamos vendo coisas. Nada de especialmente interessante. Não é uma das melhores free walking tours em que já fui mas pronto, sem stress. Afinal de contas é teoricamente free.
Vimos um ponto ideal para apreciar a linha da costa, ouvimos histórias do tempo da guerra com o Chile e sobre a independência. Numa nota mais pessoal, claramente fora do guião do passeio, o rapaz fala-nos do Sendero Luminoso e da violência que naquela altura proliferava pelo país.
Mostra-nos magníficos exemplares de arte mural, alguns com história. E o caminho que leva à praia, o único em toda aquela falésia sem fim que separa naturalmente a cidade do Oceano Pacífico.
O ambiente está óptimo. Muita juventude, gente boa, animada, positiva. Talvez um bocadinho de turistas a mais, mas enfim, é assim mesmo.
Os companheiros de passeio também são boa malha. Um casal de franceses, simpáticos, ela mais do que ele, mas vá, ambos. Tinham estado em Portugal há pouco tempo. Toda a gente esteve em Portugal há pouco tempo, é um padrão que tenho confirmado.
Paramos numa loja que vende artigos interessantes. Interessantes e caros. Para estrangeiros. Depois num pub com um bonito terraço, onde nos detemos um pouco a apreciar as vistas.
A caminhada está a chegar ao fim. Deixo os 5 Euros que costumo pagar aos guias de free walking tour e despedimo-nos.
Agora é hora de almoçar. Literalmente. No relógio e no estômago. Ali próximo passamos em frente a um pequeno restaurante. Local de bom aspecto, limpo, moderno, jovem. Um sítio claramente para o almoço de gente de uma classe média alta trabalhadora. O menu fala de massa como prato do dia e o preço é bom.
Foi uma boa escolha, porque para além do preço, a comida é excelente. Foi um almoço em cheio. Entretanto ficou calor, o céu clareou e o sol está a começar a fazer moça. Até porque estamos ao nível do mar, acabou-se o refrescamento de altitude por onde temos andado no último mês.
Voltamos ao ponto de partida, chamamos um Uber. Demora a aparecer mas vem. Agora vamos para o centro histórico. Não conseguimos lá chegar. Pelo menos de carro. O trânsito é tão denso nos acessos que não vale a pena insistir. Não me importo de pagar um pouco que não usei, saio do carro e faz-se a aproximação final a pé.
Esta área não me cativou especialmente. OK, há alguma arquitectura interessante e certamente cheia de história. Vamos por uma rua pedestre, uma espécie de Rua Augusta de Lima que vai desembocar na praça principal da cidade antiga.
Entramos na Casa O’Higgins, hoje um museu etnográfico aberto de forma gratuita. Um bom espaço, muito pequeno mas muito bem arranjado. Gostei especialmente dos trajes cerimoniais tradicionais.
Há demasiada gente. Demasiados estrangeiros. Demasiados polícias. A praça é ampla mas vê-se rapidamente. Continuamos a andar por ali mas começo a sentir alguma urticária. Não é bem a minha cena, o centro histórico de Lima. E não me interessa que seja considerado Património Mundial da Humanidade pela UNESCO. Não é a minha cena e pronto.
No meio de tudo aquilo encontrei algo que me encheu as medidas: a Biblioteca Mario Vargas Llosa. Que espaço fenomenal. De cultura, de pensamento, de ideias, de aprendizagem. Uma biblioteca moderna, num espaço centenário. Repleta de novos conceitos e de juventude. Foi sem dúvida o melhor daquela parte de Lima.
Falava-se de uma manifestação, sentia-se alguma tensão no ar. A polícia preparava-se. Pelotões de homens couraçados cruzavam os passeios. Outros agentes, certamente no papel de polícia bom, sugeriam aos turistas estrangeiros que sem grandes pressas talvez devessem ir andando, deixando a área.
Aproveitei a deixa. Assim como assim, não me estava a agradar especialmente o passeio. Comprámos umas sobremesas a uma senhora que as vendia de forma ambulante, com o seu filho.
E depois, mais à frente, parámos para beber um bom sumo num café tradicional que estava para fechar. Penso que não fosse costume ter clientes estrangeiros porque nos trataram como se fôssemos convidados imperiais. Gente simpática.
Estávamos a meio da tarde e havia tempo para uma última missão em Lima: visitar o farol e a zona envolvente. O bairro chama-se Miraflores. E assim como o centro histórico foi uma decepção, Miraflores foi uma agradável surpresa.
O Uber deixou-nos mesmo ali em frente ao farol. O dia tinha ganho uma face mais sorridente. O sol brilhava, mas aquela hora o calor excessivo tinha-se dissipado. Em redor do farol o ambiente estava fantástico. Tanta gente a usufruir das coisas boas da vida. Crianças com as mães. Crianças com as “nánás”. Mulheres do campo que vieram à grande cidade e ali estão, de boca aberta. Velhotes reformados que falam, talvez dos seus tempos. Namorados. Grupos de amigos. O residente local que saiu para passear o cão. É assim. Ali estava uma amostra de Miraflores.
Toda a passeata do dia, desde muito cedo, tinha-me fatigado. Estiquei-me na relva, a mochila a fazer-me de almofada, e deixei-me estar a olhar o azul e os voadores que nos seus ultra-leves faziam razias ao miradouro do farol.
Lá em baixo, a linha da costa, a perder de vista, sempre acompanhada da movimentada estrada marginal. Há praias e pontões e zonas rochosas. Mas cá em cima a história é outra. O topo das falésias é dos habitantes de Lima. Os espaços de lazer sucedem-se.
Há um longo passeio que fazemos, sempre pela margem da falésia. Ali se encontram parques infantis, recintos para os cães conviverem, jardins, skate parks, cafés com vistas magníficas.
Lima, como um todo, não me convenceu. Assim como o Peru é um país onde não penso regressar o mesmo se aplica à sua capital, enquanto cidade. Mas teve momentos bons e este final de tarde em Miraflores foi o melhor exemplo disto.
Foi preciso o sol pôr-se para me convencer a deixar tudo isto para trás. Uma pequena caminhada feita por uns pés exaustos até a um supermercado que estava marcado no mapa. Supermercados. Bens raros em Lima.
Compras feitas, Uber chamado. A escuridão tinha caído sobre a cidade e esperávamos. Demorou bastante mas apareceu. Um rapaz novo. Num instante estamos em frente ao hostel.
Será agora tempo de comer qualquer coisa, escrever um pouco, preparar os dias que se seguem. Tudo aquilo que em viagem se faz na base. E que boa base era esta.