Chegou o grande dia da viagem, o desafio maior, a entrada no Haiti. Sobre COVID não haveria problemas, o Haiti não exige nada, apesar de oficialmente, e pelo menos para chegadas por via aérea existirem algumas condições. Não pela fronteira terrestre.
Vamos lá então. Tomar o pequeno-almoço com a May, pegar na mochila e caminhar para a fronteira. É dia do mercado bi-nacional, um evento comercial que tem lugar duas vezes por semana entre as duas linhas de fronteira, uma espécie de feira franca, onde os bens transacionados não são submetidos a taxas alfandegárias. Isso aumentará um pouco a dificuldade da entrada pois o movimento é mais intenso do que noutros dias.
Vou andando por entre o bulício, uma série de verificações de passaporte, entro no posto de emigração dominicano, há alguma confusão, elementos civis que interferem na acção com a anuência dos guardas oficiais. Deste lado, tudo normal, documento visto, depois levado por um guarda para verificação numa sala fechada, volta para o carimbo e tenho que pagar 20 USD de taxa de partida.
Agora atravesso a terra de ninguém, algum assédio de moto-táxis, ligeiro. Mais verificações. A meio da ponte um guarda dominicano à civil fala comigo sobre Cristiano Ronaldo. Pergunta-me se já alguma vez o vi ao vivo. Muitas vezes, respondo eu, quando ele era mais novo e jogava no meu clube. Fica impressionado.
Agora já do lado do Haiti, procuro o posto de emigração. Um tout apanha-me bem, interfere no processo de entrada, que seria simples, pega nisto e naquilo, no passaporte e em dinheiro, o que me põe um pouco nervoso, mas afinal estes tipos são conhecidos por ali, não podem pisar demasiado o risco.
No final o único pequeno problema é que a taxa de entrada é de 7 USD e como seria de esperar não há troco para a minha nota de 10 USD. Ele deve ter ficado com o troco. A senhora guarda é bem simpática e correcta.
O ajudante não solicitado ainda me pede mais uma gratificação e acaba por ficar com uma bela quantia para o dia… para além dos 3 USD ainda mais uns 4 USD em moeda dominicana. Mas pelo menos leva-me até às carrinhas – chamadas Tap-Tap no Haiti – que seguem para Cap Haitien. E põe-me no melhor lugar, à frente.
Foi uma bela viagem. Confortável e fascinante. São cerca de 60 km e levam mais ou menos uma hora.
Ao cruzar esta fronteira, entramos num outro mundo. Não atravessamos apenas uma linha imaginária defendida por guardas armados. Atravessamos o Atlântico. Em vinte minutos deixamos para trás o mundo caribenho e chegamos a África. Literalmente. O Haiti é África. É África em tudo. No aspecto das pessoas, das aldeias, das estradas, dos veículos. Até a vegetação, sendo a mesma, parece diferente.
Quem vem da fronteira e se dirige a Milot não precisa de ir até à cidade. Há um entroncamento que funciona como um hub de transportes. Fico ali, atravesso a estrada e espero encontrar um transporte que me sirva. Um jovem haitiano que fala espanhol, como tantos outros que trabalham ou já trabalharam no país vizinho, ajuda-me. Na verdade, não seria necessário. Um tuk-tuk passa devagar anunciando o destino. Entro e sento-me ao lado do conduto. É um tuk-tuk simples, dos pequenos, mas leva sete pessoas.
Mais um troço fabuloso. Por aqui a estrada está limpa de lixo, a paisagem é linda. Há flores, campos verdes, vegetação luxuriante. Vejo gado a pastar, pessoas que vendem os seus produtos à beira da estrada, e estou feliz.
O vento bate-me na cara, vamos a uma velocidade agradável, que me dá tempo para apreciar o momento. Eventualmente chegamos. Pago-lhe, uma taxa, provavelmente agravada, mas não me importo, valeu bem. O transporte desde a fronteira custa normalmente 300 HTG, que são mais ou menos 2,50 Euros. Podem ser 400 HTG, não significa que se esteja a ser enganado, depende dos transportes. Entre 300 e 400. Para o tuk-tuk paguei 100 HTG.
Agora é encontrar a La Belle Maison, onde vou ficar as próximas duas noites. Arranjar alojamento nesta parte do Haiti não foi nada fácil. A ideia original era dormir em Cap Haitien, mas aí ou os preços são de loucos, a partir dos 100 Euros, ou as condições são, no mínimo, suspeitas. Acabei por encontrar esta pequena casa de hóspedes e a fácil comunicação com o proprietário, Erick, que vive nos EUA, ajudou-me a decidir. Acabei por pagar cerca de 52 Euros por noite incluindo pequeno-almoço. Foi bem.
Lá estava a casa. Entrei pelo café, fui recebido por uma senhora que falava um pouco de inglês e, como descobri mais tarde, excelente espanhol. Comunicação não foi um problema, desde que ela estivesse por perto.
Indicaram-me o quarto, não está mal. Claro que por este dinheiro noutra parte do mundo teria um alojamento bastante melhor, mas estou satisfeito. Perguntam-me se precisarei de transporte para visitar a fortaleza. Se precisar será no dia seguinte, fico de dar a resposta mais tarde. O preço são 20 USD, daqui até ao parqueamento para visitantes. São uns meros 7 km, é um belo negócio para quem providencia o serviço, mas é o que é.
Descanso um pouco, instalo-me. Continuo satisfeito com a minha escolha. Mais tarde, depois de visitar a cidade, ainda ficarei mais satisfeito. Foi de facto a decisão ideal. À parte as naturais dificuldades, ter vindo ao Haiti ficando em Milot foi perfeito.
Agora saio para a rua. Vamos lá então conhecer um bocado do Haiti. Não é o tipo de local onde as pessoas ficam pasmadas a olhar para nós. Apesar do turismo ser quase inexistente, ainda faltaria retirar o “quase” e a verdade é que as pessoas de Milot vão vendo o estrangeiro ocasional que aqui vem visitar o Palácio e a Fortaleza.
Ando por ali, fascinado e frustrado por não poder fotografar livremente. Não só fiz esta viagem apenas com telemóvel como também não me sentia à vontade, não por uma questão de segurança, isso não, mas por constrangimento social.
Fui andando e acabei de chegar ao Palácio, que se encontra junto à saída da aldeia. Pelo caminho um tout chato e persistente colou-se a mim. O seu objectivo imediato era tornar-se meu guia e no dia seguinte levar-me à fortaleza. E por causa dele acabei por pagar a entrada nas ruínas, 10 USD + 10 USD que ficou logo para o acesso à fortaleza. Se não viesse comigo teria entrado sem darem por mim e visitado o Palácio livremente.
Bom, paciência. O palácio é um local fascinante, um bom aperitivo para a grandiosidade da fortaleza. Não demorará muito tempo a ser visitado, apesar do viajante poder desejar ficar por ali um pouco a sentir o ambiente. É que as ruínas são lugar de passagem. Das pessoas que vivem nas montanhas que rodeiam Milot e a aldeia. As crianças atravessam estes terrenos diariamente para ir à escola, assim como os adultos que não têm a sua mota.
Há cabritas a pastar, meninos que brincam. Três deles, diferentes, sem uniforme escolar, seguem-me. Querem pedir dinheiro mas são tímidos. Um deles diz-me qualquer coisa. Em creoulo. Sei que me está a pedir, aponta para o sapato que se descola.
Acabo por sair, volto por outras ruas, chego a casa. Tenho o jantar marcado para as 18:00. Nem sei o preço. Vi algures que seria 13 USD mas no quarto há uma folha com preços que falam em 3 USD. No fim irão cobrar-me 4 USD, o que me parece excelente.
Compro uma bebida gelada, sento-me a descontrair. O hotel está sempre cheio de gente, mas parecem-me pessoas da casa. Acho que não vi outro hóspedes nos dois dias que lá permaneci.
Fui experimentar o duche. Abri a água. Não é bem um duche, é um cano que cospe água, em caudal. Fiquei com a torneira na não. Já não consegui fechar a água. Lá fui abaixo dizer à senhora, que veio ver com os seus olhos. Chamou alguém que apareceu passado um bocado. Fechou a água, mas a torneira já era, tem a rosca totalmente moída. Terá que servir. Na realidade, deram-me outro quarto. Melhor em tudo, ainda melhor.
O jantar estava bom. Frango frito com banana também frito. Soube-me mesmo bem. Esperei foi uma hora a mais. Estava irrequieto, perguntei diversas vezes pelo jantar… e afinal não estava atrasado. Eu é que me tinha esquecido que o Haiti tem menos uma hora em relação à República Dominicana.