Acordei cedo, ainda o dia nascia. O dono da casa já estava a pé, despedi-me rapidamente, calcei as botas e saí para a rua. O carro esperava-me, mesmo ali em frente. Sentia algum stress. Vou devolver o carro, tenho que encontrar o lugar certo para o deixar, enfrentar o trânsito dos arredores de Riyadh, lidar com o pessoal da Enterprise. E depois, voar. Para Najran.
A viagem foi tanquila e tudo correu bem. Não apanhei trânsito. Algumas das vias na aproximação ao aeroporto estavam um pouco congestionadas, mas nada com que não pudesse lidar. Encontrei imediatamente a entrada para o parque de carros de aluguer e deixei-o no sítio certo onde fui logo recebido por pessoal da empresa que fez as devidas verificações.
Processo concluido no escritório, onde paguei os 20 km extras que fiz (cada dia de aluguer dá direito a 100 km, alugueio dois dias, fiz 220 km) e estava despachado. Nada a dizer também sobre o voo para Najran. Como todos os cinco ou seis voos que fiz na região, com a Saudia, a Flynas e a Flyadeal, saiu rigorosamente à hora e à hora aterrou.
Já o meu anfitrião por lá não foi tão pontual. Esperei, mandei mensagem, respondeu que já vinha, esperei mais, e mais. E apareceu sim, já me aborrecia. Veio com outro couchsurfer, um polaco de dois metros, um tipo estranho e desagradável. E disse-me que eu era um gajo com sorte porque tinha convencido os amigos a fazerem o seu hiking semanal para os lados do aeroporto. De forma que me pode ir buscar e podereria participar na actividade.
Não entendi bem em que consistiria o hiking. Falou de comer, dançar e tocar música, do deserto, de acampamento. De forma que esperei para ver, porque a descrição dele não correspondia à definição de hiking.
O tipo é uma fonte de energia. Conduz o seu Toyota robusto enquanto fala, a rádio a encher o ar com música. Paramos numa estação de serviço para comprar snacks e bebidas. Comida não é preciso, o jantar é oferecido, mas só mais logo.
Prosseguimos, e logo à frente vejo um ajuntamento de camelos como nunca tinha visto. Perante o nosso interesse ele sai da estrada, mostra-nos. Ali mesmo há camelos presos em recintos. Estão à venda. Alguns têm pedigrees impressionantes. Diz-me que podem valer mais de um milhão de Euros.
Juntam-se mais locais, atraídos pelos estrangeiros. Trocam-se cumprimentos, muitas fotografias. Há excitação no ar, pessoas que falam ao mesmo tempo, atenção solicitada. Um estranho fala-nos dos camelos. Uma família chega. Mais retratos. E já vêm aparecendo os amigos do meu anfitrião. Para o serão virão uns quinze, mas ali já estão alguns.
Fazem-se combinos de última hora, coordenam-se as coisas com os que ainda não chegaram. E ainda há tempo para fotografar livremente as impressionantes colunas de camelos que estão a ser treinados para um esperado futuro como campeões de corrida.
É deserto a perder de vista, uma imensidão plana. E para trás e para a frente passam os grupos de dezenas de camelos, liderados por uma pequena equipa de humanos, levantando um rasto de poeira com as robustas patas.
Agora deixamos para trás o asfalto, rolamos pela areia compacta. Por fim chegamos ao local escolhido, sob uma duna. O sol está quase a pôr-se. Ainda restam alguns minutos antes do lusco-fusco.
Tal como prometido os meus novos amigos tocam música, cantam e dançam. Há alguns punhais tradicionais, peças de antiguidade que podem custar milhares de Euros.
E chegam mais. Já há uns seis todo-o-terreno por ali. Um deles é colocado no topo da duna. Uma posição estratégica que visa proteger o grupo que se acomoda na base contra qualquer viatura que, sem se aperceber da presença humana, salte a crista e venha aterrar em cima de nós.
O anfitrião leva-me a um pequeno teste de todo o terreno em paisagem dunar, um sobe e desce, derrapagens e piões. O Toyota porta-se bem.
Prepara-se a fogueira. Na realidade duas, uma para aquecer as pessoas e a outra para cozinhar. A carne de camelo que será o jantar é também ela cuidadosamente preparada, assim como os restantes ingredientes. Muita cebola, vegetais que não reconheço, arroz.
Perco-me de câmara na mão. Este é sem dúvida um dos dias mais fotogénicos na minha vida. Senão vejamos: o deserto em todo o seu esplendor, o pôr-de-sol e uma quantidade considerável de modelos, quase todos muito pictorescos, que para além de não objectarem ficar no boneco, fazem questão disso.
A noite cai. Está na hora da última oração do dia. Todos eles se perfilam, na devida orientação para Meca, e cumprem o seu dever de muçulmanos.
Começa a arrefecer e o fogo e as bebidas quentes que vão sendo servidas são muito bem vindos. Mais cantares, estórias que se trocam, risos, cumplicidades que me passam ao lado. Alguns segmentos são-nos traduzidos. Episódios que despertam memórias. Caminhadas que correram mal, disparates e partidas.
O jantar está pronto. É servido no chão, numa enorme travessa circular onde se empilha uma quantidade monumental de arroz. A carne de camelo encontra-se escondida sob os bagos cozidos. Comemos todos numa roda, do recipiente comum, com a mão direita.
O serão alonga-se, com as primeiras partidas, entre desculpas de um despertar matutino prometido para o dia seguinte. Chega a nossa vez, a sinal do anfitrião. Não sem antes mais algumas partidas e brincadeiras.
Leva-nos a casa. É um Couchsurfing diferente. Uma apartamento grande, vazio, quase em estado de abandono total. Os convidados ficam ali, sozinhos, à vontade. Por mim, sem problemas. Gosto de silêncio, de espaço, de independência.
Antes de chegarmos discutimos, com ânimos a exaltarem-se. Eu o Ibrahim contra o polaco. O assunto é o conflicto entre a Rússia e a Ucrânia. Quando entramos em casa o ambiente é cortês mas tenso. Escolho ficar noutro quarto. Não sei se deverei chamar quarto, é uma arrecadação vazia. Durmo muito bem, no chão, mas muito bem.