Dias 15 e 16 de Fevereiro de 2023
No primeiro dia ainda tentei. Sabem aquele sentimento de resistência a algo que se adivinha desagradável? Se calhar não sabem, nem toda a gente tem esta necessidade, de adiar o indesejado. Eu tenho, e forte. Ora sair para a rua, começar a explorar Dhaka, atemorizava-me nesta manhã.
E por isso fui deixando o tempo andar. Visitei o Rossi no seu quarto, conversámos bastante sobre tudo. É um tipo interessante, culto e inteligente, agradável para debater mesmo tópicos em que discordamos. No início foi assim. Não que tivéssemos tido algum desaguisado, mas com o tempo as conversas foram-se esgotando e passaram a ser mais espaçadas e profundas.
Ao fim da tarde veio a mãe e a cena repetiu-se, com o aprontar do jantar. Fui convidado, uma vez mais.
Chegou o serão, passou-se o dia, assim, numa amostra do que seriam quase duas semanas.
Acordei, pensei no que comer. Preciso de um pouco de ocidentalidade na minha dieta, sempre fui assim. Mas para já teria que me orientar com o que havia.
Eventualmente decidi-me a sair. Chamei um Uber – com a desaprovação do meu amigo, que vê simplicidade em tudo e não compreende a razão para se gastar dinheiro nestas coisas quando se pode ir de transportes públicos. Mesmo que um Uber aqui tenha basicamente um não custo.
Lalbagh Fort era o primeiro destino, onde eventualmente cheguei. Umas duas horas depois. Duas horas para ultrapassar uns 5 km. Vem vindo a Dhaka!
Ali tive um breve inspirar de normalidade. Pensei para mim mesmo que talvez as coisas até então tivessem sido um pesadelo e agora tudo iria correr bem. Tirei o bilhete, entrei. Olhei em redor e sorri perante o ambiente quase bucólico.
Nos parques do forte – chamemos-lhe palácio – há pessoas, mas não com aquela densidade que marca Dhaka. Famílias, grupos de amigos, pares de namorados. As sebes são feitas de arbustos floridos, cores fabulosas que se unem aos tons garridos das mulheres que posam para uma fotografia memorável.
Ando por ali a ver, a fotografar, e até se está bem. Circulo pelos jardins, vejo as muralhas a partir do interior, os portões históricos do forte.
Rapidamente se esgotou. Saio para a rua, chamo outro Uber. Consegui um que não precisou de falar ao telefone antes de vir. O destino agora é o Liberation War Museum, onde me encontrarei com o Rossi.
Lá estava ele. Entramos no Museu, pago um bilhete a um valor perfeitamente europeu, preço para estrangeiro. Visitamos juntos as salas de exposição. Um bom museu, recente, montado com conceitos e tecnologia moderna. Bem conseguido. Foca-se no conflicto que levou à independência do Bangladesh em 1971. Para quem não sabe, fica aqui uma versão ultra compacta: com a saída do Reino Unido da Índia (Índia Britânica, não a actual Índia) e a Partição, toda aquela zona ficou dividida em dois hemisférios: o Hindu e o Muçulmano. O actual Bangladesh já era muçulmano. Então, em vez de ser integrado na Índia, como uma observação de um mapa levaria a crer, tornou-se parte do Paquistão… sim… com a Índia pelo meio.
E assim foi durante quase trinta anos. Mas as diferenças entre bengalis e os restantes paquistaneses, aqueles que ainda hoje o são, foram-se acentuando. Durante essa altura chamava-se Paquistão Ocidental ao actual Paquistão e Paquistão Oriental ao actual Bangladesh.
Os bengalis começaram a aperceber-se que a divisão de influência e poder político não correspondia ao peso das duas populações no seio de um país que se denominava uno. Eram tratados como cidadãos de segunda, objeto de racismo e discriminação em quase todos os aspectos. E as vozes de descontentamento atraíram repressão, que causou mais descontentamento… numa espiral de violência que terminou em conflicto aberto e, eventualmente, na vitória dos que estavam na sua terra, decretando a criação de um novo país, o Bangladesh.
Ora o Museu é dedicado a todos estes eventos.
Terminada a visita, sentámo-nos numa loja de bairro, mesmo ali fora, e observei o paradoxo: tinha à minha frente um museu moderno, que não fica a dever nada a um qualquer museu de Copenhaga ou Berlim, e do lado de lá da rua, um bairro degradado, pobre, miserável, com crianças a correr descalças na rua, nuas, e adultos de aspecto triste.
A clientela da loja era daquele bairro. O Rossi – sempre comunicativo – fez conversa com a vizinhança. Alheei-me da conversa que não entendia, continuei a observar.
Regressámos ao bairro de rickshaw. Nunca gostei disso, faz-me impressão estar sentado e ver ali mesmo em frente outro humano em intenso esforço físico, como um escravo.
Parámos num supermercado de estilo ocidental onde me abasteci fartamente. E de volta a casa. Lá veio a mãe do Rossi com comida para todos. Disse ao meu anfitrião para explicar à mãe que gostava muito dos seus preparados mas que precisava de comer aquilo que estava habituado e além disso não queria abusar da hospitalidade… bastaria um lugar para dormir, não esperava que me alimentassem.
À noite chegou um espanhol que trabalhava no Paquistão e vinha para ficar uma ou duas noites conosco. Pareceu-me bem de início mas depois as coisas não correram muito bem. O tipo acabou por ser algo insuportável, cheio de si próprio, arrogante ao extremo, ofensivo em relação a coisas no Bangladesh o que era mesmo uma falta de respeito para com o nosso anfitrião comum. Dormiu lá no quarto do Rossi. No dia seguinte iríamos sair cedo para fazer um passeio fora da cidade.