11 a 14 de Março de 2023

A fase final da viagem pelo Paquistão não foi gloriosa. Para o fim só pensava em sair dali e quando chegou a hora de ir para o aeroporto quis fazê-lo com horas de antecedência, prevenir qualquer eventualidade que me atrasasse, que me fizesse ficar mais tempo no país. Quando finalmente percebi que ia mesmo acontecer, que estava ali, na porta de embarque do aeroporto de Karachi e que o Qatar Airways que seria a minha fuga me olhava da placa, senti-me por fim aliviado.

Mas antes que esse momento chegasse passei por quatro dias de tédio. Deitado na cama do meu quarto – na realidade do quarto do filho mais novo do Kamran – inventei ao longo desses dias tudo o que me consegui lembrar para acelarar o relógio.

Nem tudo foi mau. Trarei para sempre comigo na memória os serões tardios a comer e a beber chá com o Kamran e o seu amigo cardiologista, agora meu amigo também, de certa forma mais meu amigo até. Entre eles mantinha-se um sentido de hierarquia social. Deve ser normal no Paquistão, mas a mim confundia-me um pouco. Já eu, talvez por ser estrangeiro, parecia estar isento.

Nestes quatro dias saímos quase sempre. Encontros nocturnos, longe de obrigações profissionais (deles), de sentido de obrigação familiar. Escapadelas furtivas, pela noite dentro, a fazer-me lembrar outras vidas que um dia tive.

Chá atrás de chá, uns petiscos pelo meio. Sempre por conta deles, claro, como manda a hospitalidade nesta parte do mundo. Conversas loucas, do interessante ao surreal, do intelectual ao tresloucado palavreado sem sentido. Noites memoráveis, grandes, belas.

Quando a última chegou ao fim, deram-se abraços fortes, palavras, penso eu, sentidas, de despedida.

Durante os dias fiquei quase sempre em casa. Antes do jantar o Kamran visitava-me no quarto e ouvíamos músicas da nossa juventude, trocávamos memórias. À vez, escolhíamos temas e comparávamos experiências.  Depois era a chamada para jantar, tomado em família, para o qual eu estava invariavelmente convidado.

Começava a sentir um sabor amargo, uma tensão muda, naquele lar. E quase instintivamente procurava afastar-me, barricar-me no quarto, sair o menos possível.

Uma vez fui dar um passeio a pé. Haveria uma geocache não muito longe. Cheguei ao local mas não a encontrei. Regressei. Ainda foram uns quilómetros e de repente apanhei boleia de um tipo que vinha fazer turismo à cidade. Poupei algum tempo nas pernas e em troca dei umas dicas de como chegar à grande mesquita. Ora vejam-me esta…. ali estava eu, em Islamabad, a explicar a um simpático paquistanês, como chegar à mesquita.

Foi na realidade um passeio muito agradável. O dia convidava. Talvez um pouco quente, mas nada de especial. E o céu estava lindo. Percebi que este bairro era peculiar: Islamabad é uma cidade planeada. Muito bem planeada. Cada bairro tem um centro de comércio e serviços e áreas residenciais, que são protegidas por uma escolha sábia de ângulos das vias principais. Assim, quando circulamos de carro, não vemos cidade. A cidade está escondida, na sua privacidade. Está rebaixada, invisível desde os eixos principais.

Quanto ao bairro do Kamran, é dos mais periféricos. No futuro será outra coisa qualquer, mas hoje é uma mistura de ruralidade com urbanismo. Com facilidade, apenas caminhando, estamos no campo e vemos rebanhos e quintas e “saloios”. Depois, olhamos para o outro lado e o que vemos é uma Islamabad cosmopolita, com belas vivendas habitadas por gente muito bem.

Um dia o meu amigo levou-me a conhecer um almirante reformado da Marinha Paquistanesa. Mais uma vez aquela barreira social, à qual não respondo. Conversa interessante com um copo de whiskey (proibido no Paquistão) na mão. Nisto entra na sala outro homem, que se senta como se estivesse em casa. Claramente um amigo habitual. Somos agora quatro, à conversa. Conversa de circunstância, sim, mas mesmo assim com substância. Venho depois a saber que aquele quarto elemento é uma eminência parda, o director dos serviços de informação do Paquistão! Estamos a falar do Paquistão e a sua posição é de uma complexidade sem fim. Desde as tensões e jogadas do intrincado tabuleiro político interno, até às complicadas relações com os EUA, passando pelas omnipresentes tensões com a Índia e a gestão da situação ao longo da extensa fronteira com o Afeganistão. Aquela cabecinha será genial.

Noutro serão dá uma inspiração ao Kamran: quer beber. Pinga da boa. Mas há um pequeno problema: é ilegal. Bom, será episódio digno de um filme de gangsters. Começa por um telefonema. Está tudo arranjado, diz-me. Vamos! Para o carro. Temos instruções claras. O encontro num bairro residencial deserto aquela hora da noite. Depois, é fazer sinais de luzes. Alguém nos encontrará. E assim acontece. Um carro avança, devagar, devagarinho, em sentido oposto. Quando chega ao ponto de nos cruzarmos detém-se. Uma mão sai da janela do condutor, oferecendo um objecto envolto em papel pardo que o Kamran inspeciona antes de passar em troca um rolo de notas. E assim obtivemos uma garrafa de rum paquistanês por uma soma astronómica para os preços do país. Inspirou-nos nos serões que ainda faltavam para a minha partida.

Um dia fomos às compras. Eu, ele e a esposa. Deram-me a provar delícias locais, doces feitos de ingredientes exóticos. Comprámos uma galinha, que ali se faz como ao marisco numa boa cervejaria: aponta-se o animal e espera-se que nos seja servido decentemente, no caso, cortado aos pedaços e embalado.

E foram assim os dias de Islamabad. Um pouco melhores que os de Dhaka. No fim, bem ou mal, há sempre memórias, vivências.

Na manhã da partida, bem cedo, o carro agendado recolhe-me à porta de casa. Um abraço ao meu amigo Kamran, esperando voltar a vê-lo noutro canto do mundo. Até agora foi em Berlim, no Dubai e em Islamabad. Talvez a seguir seja Buenos Aires? Tóquio? Logo se verá.

Agora é rolar até ao aeroporto, voar domesticamente para Karachi, fazer tempo até embarcar e sair dali para fora, para Doha. Vamos lá ver o que é isto do Qatar!

Curiosidade: nestes quatro dias a minha câmara não saiu do estojo.

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