19 de Maio de 2023

O acordar mais madrugador de toda a viagem. Nos outros dias, de forma geral, o acordar cedo era um conceito vago, conveniente mas não obrigatório. E funcionou. Mas hoje havia um marco no tempo: a abertura do portão para partir para Sossuvlei. Antes do nascer do sol.

Portanto era ainda noite cerrada quando começamos a desmontar a tenda e a acomodar tudo no carrinho. Já havia viaturas em movimento, dirigindo-se para o portão. Quando nos despachámos já encontrámos uma pequena fila a aguardar. Tomámos o nosso lugar e à hora certa parecia uma largada de gado. Tudo em movimento, com alguns vivaços a ultrapassar os veículos à sua frente. Enfim.

Os primeiros quilómetros fizeram-se ainda de noite cerrada e a alvorada viu-se em andamento. E que alvorada! Com a primeira luz do dia, ainda muito vaga, a revelar aos poucos a paisagem soberba. Estamos no meio do deserto, aquele deserto do imaginário de todos nós, com dunas de areia dourada a envolver a bela estrada asfaltada.

Depois os contornos definem-se melhor e quando chegamos já tomámos um banho de beleza que seria suficiente para alimentar a alma o dia inteiro.

Há dois parques de estacionamento: o geral, para todos os veículos, fácil, e depois já junto ao Deadvlei aquele reservado a viaturas todo o terreno. Mas atenção: não basta ter uma, é preciso ter as unhas necessárias para tocar o instrumento, e algumas das pessoas que tentam acabam por ficar enterradas na areia aqui ou acolá.

Para os outros, sem habilidade – como eu – ou desejando um percurso mais tranquilo, existe um serviço de transporte operado por condutores experientes que a troco de uma quantia transporta incessantemente passageiros desde o parque geral até ao ponto final. São cerca de 5 km. Pode-se caminhar mas não faz muito sentido: geralmente está calor e perde-se tempo precioso que poderia ser usado para usufruir dos pontos mais belos da área.

Somos dos primeiros a chegar ao estacionamento geral. Quase todos os carros que vinham à nossa frente seguiram para o segundo parque. Na realidade somos os primeiros a usar o serviço de transporte daquele dia. Nós e dois jovens do Zimbabwe, que estão a fazer um périplo da zona sul da África com o seu próprio todo o terreno trazido desde casa.

Seguimos então e logo encontramos os primeiros “enterrados”. Perdemos ali algum tempo. Acho incorrecto. Ajudar os outros é bem. Mas se tomámos a decisão de usar o transporte e não brincar com o que não dominamos, quem o fez de forma irresponsável não deveria ser motivo de empate para os outros. Qual é a pressa? A luz! A luz do nascer do sol. A luz é a chave de quase tudo na viagem da Namíbia. As pessoas não ficariam ali a morrer à sede. Deveriam ser desenterradas por um veículo de serviço a troco de um valor de desempanagem e pronto. Só porque de facto o tempo é valioso nesta experiência.

Felizmente foi só aquela paragem. Todos os outros, uns vinte, tinham chegado sem percalços ao destino.

É uma viagem “violenta”, com saltos brutais e muito impacto no nosso sistema pessoal de suspensão. Minhas pobres costas! Mas é divertido e no fundo bastante agradável. O ar está fresco, a paisagem é deslumbrante e no caso a companhia é boa: vim a conversar com os zimbabuenses.

Chagámos e tomámos a decisão errada. Culpa minha, não fiz bem o trabalho de casa. Em vez de ir directo ao Deadvlei, que como percebi mais tarde é mesmo ali em frente,  fomos dar uma volta que teria que terminar na escalada à alta duna. Extenuante e o meu querido tempo a passar.

Lá de cima encontrámos os amigos zimbabuenses e o árabe solitário que fotografa diligentemente tudo aquilo. E uma vista dominante sobre boa parte do famoso Deadvlei, com a base branca de sal bem seco e os famosos esqueletos de árvores.

Depois foi descer, numa pequena fracção de tempo do que demorou a subida. Para dentro do vale, deslizando a 100 à hora pela areia.

Parece um sonho estar aqui, num sitio tantas vezes visto em fotografia e documentários. A esta hora ainda se tem um sentimento de intimidade com o local. Mais tarde chegará a segunda vaga, composta pelos que não ficaram no parque de campismo da NWR, aos magotes, autocarros cheios.

Agora é ver, sentir e fotografar. Escrever, menos. Há que observar a textura dos troncos calcinados daquelas antigas árvores. Estudar as sombras desenhadas no solo branco. Entender a imensidão do vale.

Ali próximo há outros pontos de interesse. Há o Hidden Vlei, menos popular. Uma série de dunas que pela sua majestosidade são por si atrações. Mas não vai haver tempo. O tempo, esse eterno patife. Há que tomar opções. E no fim fiquei satisfeito com as minhas.

Ficámos o tempo que sentimos necessário. E quando começou a engrossar a multidão sentimos que era hora de partir. Detivemo-nos ainda uns minutos num pequeno vale ali junto onde havia também esqueletos de árvores e algumas formações rochosas. Tão próximo e sem uma só pessoa.

Depois foi o caminho de volta. Rapidamente o shuttle iniciou a marcha e depois de pagarmos o serviço e de nos despedirmos dos zimbabuenses, que em perfeita harmonia conosco partiram exactamente ao mesmo tempo que nós, iniciámos a longa viagem para a noite no Namtib.

Curiosidade: num país tão amplo e com tanta oferta de alojamento, os  zimbabuenses tinham ficado precisamente no Namtib, uma coisa minúscula perdida na imensidão.

Era ainda necessário atestar o depósito do carro. Ao pagar olhei para um frigorifico cheio de Super Bock. Não é normal.

E agora, 250 km pela frente. Uma boa parte deles pela D707, um estradão de terra batida considerado uma das vias mais cénicas do país. E é, mas não tanto assim. O que certamente é é deserta. 200 km sem ver um só carro. Bicharada sim. Longe de Etosha já não é esperado avistar leões e leopardos, mas há sempre um grupo de avestruzes, umas zebras, muitos antílopes, o ocasional chacal. É preciso é ter os olhos abertos.

E chega o ponto onde se vira para a propriedade. Bem indicada. São agora 12 km por um trilho estreito, onde literalmente só pode passar um carro, até porque é ligeiramente escavado. Alguns troços são arenosos mas ultrapassam-se sem sobressaltos.

Chegamos à Namtib. Uma propriedade agrícola transformada em alojamento para viajantes. O proprietário, de origem holandesa, está de partida para um mês de viagem em Portugal. Conversamos sobre o percurso. A filha vive no nosso país e ele está interessado em cavalos, procura o Ribatejo e outros locais com longa tradição equídea.

A zona de campismo é ainda mais afastada. Temos que conduzir mais 5 km até chegar. É fabuloso. Como parque de campismo é rudimentar. Nem tem electricidade. Tão pouco nas casas de banho. As necessidades nocturnas terão que ser iluminadas pelas velas fornecidas. Mas o cenário é impagável. A vastidão africana perante nós e à hora que chegamos a luz está no seu melhor, apresta-se o espectáculo do pôr-do-sol. O camping chama-se Little Hunter’s Nest e cheguei até ele por estar considerado um dos melhores parques de campismo da Namíbia num artigo que li.

Está cheio, e contudo está vazio. Só há lugar para seis tendas. Todas bem espaçadas. E naquela noite povoadas com gente silenciosa. Sem dúvida a melhor noite passada na Namíbia.

 

 

 

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