4 de Novembro
Único dia completo em Belgrado. Acordei a tempo de ver o meu anfitrião aprestar-se para o trabalho. Trocámos algumas palavras de cortesia, e fiquei sozinho, disfrutando da tranquilidade daquele belo apartamento. Tomei o pequeno-almoço nas calmas, sai para a varanda-terraço, deliciei-me com o sol, essa criatura que tão fugaz se revelou nas últimas duas semanas. E decidi que era tempo de pôr os pés ao caminho, que muito havia para ver naquela cidade que me conquistou desde o primeiro minuto.
Objectivo inicial: o “novo cemitério”, que não é assim tão novo, datando de meados do século XIX. Encontrá-lo trouxe algumas complicações: muitos anos de GPS na mão deixaram-me dependente no que toca a orientação. Um mapa em papel, emprestado pelo Dragan, foi de ajuda limitada, até porque as placas das ruas estão em cirilico, que compreendo mal. Resultado, andei quase 1 km para trás, antes de ganhar balanço e caminhar de um só fôlego até à área dos cemitérios, sem mais incidentes. Comecei pelo cemitério judeu, do outro lado da rua, pequeno, não especialmente interessante, que despachei num ápice. Depois, foi cruzar o asfalto e penetrar no grande cemitério. Mas não me sentia inspirado. Talvez me comece a fartar de visitar este tipo de locais, que tradicionalmente não quero perder. Ou talvez estivesse irritado com o tempo e a energia perdida para ali chegar. A verdade é que cirandei um pouco e sai. Não encontrei os diversos recintos de campas militares, de diversas guerras e de várias nacionalidades.
Paragem seguinte, o mercado principal de Belgrado. De novo uma enorme desinspiração. Atravessei o espaço, cheio de vendedores, onde se pode encontrar um pouco de tudo, especialmente bens agrícolas mas também outras coisas. Tirei um par de fotografias a medo, e parti pela porta oposta. Felizmente que o que se seguiu me levantou o ânimo para o resto do dia. E falo da enorme catedral, a maior dos Balcâs, uma das maiores do mundo. Da Cristandade ortodoxa. Na realidade, apesar do exterior se encontrar terminado, a igreja ainda está em construção. Lá dentro apenas um recanto se encontra funcional, e algumas pessoas rezam. Outras, entram para inspecionar o andamento das obras. Basicamente falta a decoração de interiores, mas numa estrutura daquelas dimensões é trabalho para anos. Impressiona, olhar para aquelas cúpulas e vê-las nuas, por terminar, com o impacto da sua dimensão descomunal a atingir-nos. À saída sou “apanhado” por uma colectora de doações para qualquer coisa relacionada com crianças, e por impulso, ainda influenciado pela atmosfera religiosa, acedo a comprar o livrinho por 2 Eur, o que me vale uma mão cheia de minutos à conversa em bom inglês.
Quero atingir o parque onde se encontra o mausoléu do marechal Tito. Sei a direcção mas não o caminho a tomar. Atravesso a área do hospital central, que se estende a perder de vista, com uma ampla avenida a servir-lhe de eixo e inúmeros pavilhões até chegar ao edíficio principal, mais moderno. Em linha recta estou a 700 metros, mas uma auto-estrada corta-me o caminho e desisto. Volto para trás.
Passo pela praça Slavija, marcada nos mapas como o centro de Belgrado. Dali, subo ao eixo que será o principal da cidade, descubro a praça dos Pioneiros, onde observo um posto de observação trasladado em 1928 da área onde se desenrolo a batalha de Salónica, na Primeira Guerra Mundial. Foi dali que o rei sérvio seguiu a derradeira ofensiva das suas tropas em 1918, quando as linhas turcas foram vergadas, conduzindo ao fim das hostilidades naquele sector. Hoje o “monumento” encontra-se meio perdido, e estou certo que poucos habitantes da cidade sabem ao certo do que se trata aquele amontoado de pedras, que formam o abrigo utilizado pelos oficiais superiores durante aquela guerra distante. Pouco à frente encontro o Parlamento da Sérvia, e de seguida a Praça da República, que funciona como o Rossio lisboeta, como epicentro da cidade antiga, como local de encontro, como centro nevrálgico de Belgrado. Mais uma vez encontro por acaso gente que conheci, couchsurfers que estiveram no encontro da véspera, o que numa cidade com quase dois milhões de habitantes é obra. São locais e indicam-me o que procurava: o posto de turismo. Quero um mapa daqueles de borla, para poupar o que o Dragan me emprestou, que já está algo mal tratado.
Agora posso orientar-me melhor. Gosto mais desta peça de cartografia, vocacionada para o turista. Encontro com facilidade a rua pedestre que me conduzirá até à área do castelo. Aquela via, privada de trânisto automóvel, fervilha de vida. As lojas mais populares encontram-se ali, e há artistas de rua, muita gente que passa, juventude a rodos. As esplanadas estão repletas. Percebe-se a fama que Belgrado tem, de vida, de dinâmica, a qualquer hora e em qualquer parte do ano.
O “castelo” é mais do que isso. É uma zona de encontros. Não é apenas um ponto de passagem obrigatório para qualquer visitante da cidade, é também área social, muito frequentada pelos habitantes locais. A zona desdobra-se em níveis, que se atravessar através de portas medievais, unidas por um sistema de muralhas. E é enorme. Suficiente para albergar o zoo de Belgrado, o Museu Militar, uma diversidade de parques e umas quantas igrejas. Como o tempo está excelente há ainda mais pessoas a usufruir do espaço, cientes de que o Inverno está a chegar e em breve estará demasiado frio para estas escapadelas de fim-de-semana. Há os velhotes que se passeiam de braço dado, os grupos de amigos que fumam charros e bebem cerveja nos cantos mais recatados, os pares de namorados que trocam promessas e juras de amor eterno enquanto os seus olhares se encontram mais abaixo, na cidade, com o sol, romântico, a descer sobre o horizonte. E depois, os turistas, que não são assim tantos. Em toda a cidade sente-se uma presença de residentes estrangeiros, vejo pessoas que falam inglês mas que não estão de passagem. Há livrarias com livros em inglês, cafés cosmopolitas onde muitos dos clientes habituais não são sérvios.
Visito o Museu Militar, antecedido de uma boa colecção de peças de artilharia e carros de combate, que podem ser observados livremente, dispostos num dos fossos entre duas muralhas. São especialmente heranças da ocupação alemã e italiana, com algum equipamento que vejo ao vivo pela primeira vez. A entrada no museu é 1 Eur, e apesar de um aviso de que não é permitido fotografar, entro de máquina ao peito e ninguém me recorda dessa regra. Assim, depois de um momento inicial de timidez, começo a fotografar, sem problemas. A exposição não é especialmente interessante. Encontra-se parcialmente legendada em inglês. A parte final denota algum lirismo, devaneios nacionalistas que reflectem o problema sérvio em reconhecer os erros do seu passado, que acarretaram consequências. O bombardeamento de pontos estratégicos no país por parte da NATO, na sequência da política de agressão sérvia iniciada em 1991, é entendido como um ataque injustificado, resistido de forma heróica. Uma dose de nacionalismo bacoco que desperta um sorriso atónito.
Visto que está o museu, procuro entrar na fortaleza. Mais portas medievais e muralhas. No derradeiro páteo existe um parque ajardinado, também ele cheio de vida. Ao longo da muralha os habitantes de Belgrado, sobretudo os mais jovens, sentam-se, apreciando o momento. Desco ao rio pela face oposta, passando junto a um conjunto de igrejas que atraem visitantes. Encontro elementos da segurança espalhados pelo trilho, em serena patrulha. E até lá em baixo, onde nada mais há do que um amplo parque, cruzo-me com um elemento da equipa, zelando para que nada de errado se passe no seu espaço. O resto da tarde é de vagabundice, pelas ruas, sem sentido firme. O Danúbio ali mesmo ao lado, e passo por ruas de calçada, prédios antigos, algums dissolutos. Acolá prepara-se a filmagem de uma cena para uma produção local. Depois, passo por uma zona considerada boémia, referenciada aliás no meu mapa, mas não me apercebo de nada que lhe faça jus. Hesito em entrar num café de aspecto acolhedor, mas decido continuar a caminhar. Quero aproveitar cada segundo nesta cidade e o apelo do meu corpo ao conforto de um ambiente aquecido e de um sofá acolhedor terá que esperar.
Por fim dou por mim a caminhar de volta, pela grande rua pedonal, sol já posto, com a luz do lusco-fusco a envolver-me. Quando a noite me abraça estou no seio da cidade. De novo o bulício que me acaricia. Autocarros passam, avassaladores, criando ondas de vento. Descubro uma pastelaria com Wi-Fi e entro. Aparentemente não há serviço de mesas, mas faço-me despercebido e deixo-me estar. Ali fico, durante duas horas, sem nada consumir, simplesmenet fazendo uso da Internet. Ironicamente até me apetecia gastar algum do pouco dinheiro sérvio que ainda tenho, mas sinto-me preguiçoso de me levantar e encomendar. Belgrado é uma cidade muito relaxada: no museu, apesar do grande cartaz a dizer que não se podem tirar fotos nem tão pouco fazer desenhos da exposição, ninguém se opõe a que eu entre com uma Nikon ao peito e posteriormente tire os retratos que me apetecerem; o meu anfitrião diz para eu usar os transportes públicos a meu bel-prazer que “eles”, com os estrangeiros, não se metem e dão uma borla não assumida; no café posso ficar um par de horas sem que ninguém implique com o meu parasatismo. Espantoso!
Chego a casa e vamos ao supermercado comprar jantar. Sacio-me com um naco de queijo fetta comprado por tua e meia, com bom pão, vinho e uma sobremesa. É uma refeição muito agradável, que me faz sentior incrivelmente bem. Não só a comida estava deliciosa, mas o momento foi de bom convívio, interrompido apenas momentaneamente enquanto nos transferimos para a sala onde a garrafa de rakia nos aguardava. Quando me retiro, penso que será a minha última noite nos Balcãs. Amanhã, pela mesma hora, estarei a preparar a cama no chão do aeroporto de Roma.
U are right with that, the serbians started the hostile politics, they get bombed and nowadays they feel they are victims of NATO. Engracados 🙂
belíssimos pormenores de belgrado!!!