13 de Maio
Despertei com a alegria própria de quem adormeceu numa nova terra cheia de promessas. Satsifeito por abrir os olhos e por estar ali. Dormi as horas certas. Tenho o corpo ligeiramente dorido pela noite passada num colchão duro. O meu companheiro de quarto japonês, Yuma de seu nome, entra pouco depois, pé ante pé, para não incomodar. Damos os bons dias e levanto-me. No corredor vejo logo a cara sorridente do Anton, que me informa orgulhosamente que o pequeno-almoço está servido na cozinha. Sorrio interiormente ao pensar que neste preço ridiculamente baixo de 7 Eur de diária, está incluido ainda um parco mas suficiente pequeno-almoço. E Internet wi-fi. E a guarda da mochila para o resto do dia que vou andar a caminhar sem ter onde cair morto até às 22 horas.
Durante a refeição da manhã estabeleço uma boa relação com o Yuma, que na véspera deve ter pensado o pior de mim, embrenhado nas minhas coisas sem lhe passar cartão. Falamos muito sobre viagens, como é costume nestes ambientes de hosteis, trocamos, literalmente falando, experiências e informações. Ele já anda pela Ucrânia há quatro meses, e vai para países que já conheço relativamente bem. Fora isso, partilhamos alguns destinos passados sobre os quais trocamos memórias comuns.
Feita a conversa e terminada a refeição preparo rapidamente a mochila que deixo ao cuidado do Anton. Começam a chegar os hóspedes para a noite seguinte. Sinto-me feliz por ver que o negócio não corre mal a esta boa gente. Dá-me a ideia que estão nisto para conhecer viajantes e se divertirem, não para fazer dinheiro. Recordo-me da expressão de admiração na face do Anton quando cheguei, e enquanto me dizia: “From Portugal? Wow, you really look like a traveler”.
Saio para a rua a pensar nos aguaceiros previstos, mas apesar do sol não se deixar ver também não imagino a chegada de chuva. O primeiro objectivo, ironicamente (costuma ser a chamada “final destination”, não é?) é o cemitério. Li maravilhas sobre ele. Claro que, como sempre, teria que visitar um cemitério local, mas para este ia com as expectactivas bem elevadas.
Tinha lido em algum lado que a entrada era paga. Chegando aos portões encostei-me um pouco a observar como funcionava aquilo… decididamente muitos locais entravam sem delongas. Bom, teria que experimentar, passei a entrada e logo me apareceu um segurança indicando-me uma porta: a bilheteira. Não só paguei a entrada como uma taxa especial para fotografar. 1,5 Eur os dois bilhetes. Sempre achei lamentável fazer dinheiro com locais sagrados, sejam eles templos ou cemitérios, atracções turísticas ou não.
Mas rapidamente me passou o amargo de boca. A beleza deste local é inultrapassável. Já estive em muitos cemitérios um pouco por toda a Europa mas nada se pode comparar ao que vim aqui encontrar. O cemitério encontra-se espalhado por uma área florestal, os pássaros exercitam as suas vozes de Primavera até à exaustão, as sombras frescas das altas árvores cobrem tudo, e as campas, claro, são autênticas peças de arte. Nas partes mais remotas, não existem caminhos; alguns trilhos estreitos, quase invisiveis, oferecem algum acesso, mas por vezes é preciso desbravar para chegar onde queremos. Há recantos que parecem ter sido esquecidos pelo Homem, onde a natureza reclama o domínio ancestral, cobrindo tudo de um verde imenso, entrecortado aqui e ali por cruzes de ferro que se erguem daquele manto natural, castanhas de ferrugem acumulada durante longas décadas, por vezes séculos.
No topo da colina onde o cemitério se desenvolveu vou encontrar uma zona de campas militares, dos tempos da Primeira Guerra Mundial; os nomes aqui são polacos, e as cores da bandeira daquele país encontram-se presentes. Lviv é uma cidade de fronteira, que mudou de mãos inúmeras vezes, e se hoje é parte da Ucrânia, é geralmente descrita como uma cidade polaca. E isso nota-se no cemitério onde muitos dos nomes não são definitivamente ucranianos.
Os visitantes locais raramente se afastam do caminho principal, que contorna a colina; largo, confortável, asfaltado, é ideal para as deambulações desta gente rude que se comporta como se estivesse numa feira. Falam alto, riem, vão andando por ali, sem respeito algum pelo carácter sacro da terra que pisam.
Por mais belo que o cemitério seja, chega a altura de partir. Quando sai do hostel não tinha um plano certo para o dia. Sabia que o museu ao ar livre teria que ser visitado durante a minha estadia em Lviv, mas apenas passei os portões do cemitério me apercebi da sua proximidade e compreendi que seria a seguinte escolha lógica. Fui caminhando por ruas menos concorridas, com uma pequena ajuda do GPS, mas, a partir de determinado momento, bastou-me seguir o fluxo de pessoas que obviamente se dirigiam para o mesmo local. Surpreendi-me com a popularidade do museu. Mas quando lá entrei, depois de pagar 1,50 Eur pelo bilhete, compreendi o interesse dos “lvivianos”: havia lá uma festa, com um palco animado, onde, no momento da minha chegada, actuavam acrobatas. Depois vieram os músicos, e quando abandonei o museu, uma hora mais tarde, actuava uma espécie de “Marco Paulo” ucraniano.
Na realidade o museu foi muito decepcionante. Já visitei uma dúzia de museus deste tipo e este foi o mais fraquito de todos. As casas são poucas, muito distantes entre si, e o terreno é de todo desadequado: com muitos altos e baixos e uma floresta densa, o visitante não compreende por onde deve seguir a cada encruzilhada que encontra. Mas a visita valeu pelo folclórico palco e respectiva audiência e por uma pequena reunião étnica, de carácter promocional, onde se disparava o arco e flecha e armas de fogo antigas, cozinhava-se e vestia-se segundo a tradição… claro que não cheguei a perceber de que tradição se tratava, mas valeu o momento.
Visto que estava o museu, caminhei vagamente na direcção do centro, atento aos infinitos pormenores que há que observar por toda esta magnífica cidade. A determinado momento duas mulheres, acompanhadas por um homem, pedem-me uma indicação qualquer. Evidentemente a comunicação é impossível. Rapidamente compreendem que sou estrangeiro, mas o incidente vale a pena contar porque o seu acompanhante, com um sorriso, diz-lhes “não compreendo”. Assim mesmo, em português. Nunca saberei de onde veio aquilo. Talvez um antigo emigrante em Portugal, que achou engraçado praxar as amigas com aquela tirada? Ou será que imaginou que eu fosse português? Bizarro.
As ruas, nesta parte, são clássicas, com belos edificios. Talvez por ser Domingo quase todos os prédios estão engalanados com a bandeira nacional, colocada sobre as portas de entrada. Descubro as traseiras de um prédio que foram transformadas num bizarro museu, vá-se lá saber por quem ou porquê. Estão para ali colecções de bonecas, antiguidades de todos os géneros, antigos ursos de peluche, quadros. O cenário é surreal, e será uma das imagens de Lviv que ficará na memória.
O dia está cinzentão. A boa fortuna da metereologia abandou-me por fim. Contudo, não chove, e Lviv é demasiado bela para perder os seus encantos com um simples céu encoberto. Acabo por chegar ao centro, que revisito com prazer. Tenho que fazer tempo até às 22 horas, quando encontrarei o meu anfitrião. A mochila ficou guardada no hostel. Passarei por lá pelas 21 horas.
Tento matar o tempo que resta do dia. Ando para trás e para a frente. Acabo por escolher um café dispendioso, o único que encontrei com um menu em inglês. Como um “schnitzel” e bebo uma boa cerveja, pagando cerca de 7 Eur (sim, eu sei, não é assim tão caro, mas para os padrões locais está muito acima da média). Fico por ali cerca de hora e meia usufruindo da Wi-Fi. Bom, está na hora. Lá vou até ao hostel, mas antes delicio-me com um baile expontâneo, cujos sons me atraem. A música é latina, lenta, sensual. Uns cinco ou seis casais dançam numa área livre de uma esplanada construida em madeira. Maravilhoso ambiente.
Já com os meus haveres, sento-me no ponto de encontro. Uma estátua equestre bem no centro. Estou adiantado, mas já não sei que mais fazer. Por isso, simplesmente, espero. Passado uns minutos, nova supresa: três jovens iniciam a sua arte de dança com fogo, mesmo ali em frente, enquanto um amigo acompanha com uma batida rítmica no seu tambor. E nisto, aparece o meu novo amigo, Oleg. Sigo-o, esperando uma certa caminhada, e qual não é a minha surpresa quando ele se detêm na porta de esquina. Jesus credo! Isto, em linguagem lisboeta, é o mesmo que viver na rua Augusta! O senão, para o qual já tinha sido alertado, são os seis andares sem elevados. Que têm uma compensação: o fabuloso terraço com vista para a cidade. Estamos no prédio mais alto da baixa de Lviv.
Tenho direito a um quarto privativo, e, apesar da Internet se encontrar avariada, consigo entrar numa rede aberta e ainda passo um bom bocado online antes de adormecer.