O dia começou mal, num aeroporto de Paris-Beauvais caótico, completamente impróprio para as operações aeroportuárias a que se propõe. Até chegámos mais cedo do que é usual, mas depois de trinta minutos na fila, tornou-se evidente que nunca chegariamos a tempo. O funcionário que recebe as bagagens de porão não se mostrou nada preocupado. Que estava tudo dentro da normalidade, dizia ele. E de facto estava. Dentro da preocupante normalidade daquele aeroporto. Então a coisa funciona assim: quando o relógio se aproxima do ponto crítico para cada vôo, uma funcionária percorre a fila chamando os passageiros que a ele se destinam, colocando-os à frente da longa fila, onde dezenas de pessoas se acotovelam para entrar. Depois, o processo repete-se na aproximação à verificação de segurança. Com tudo isto, chegámos às escadas do avião mais ou menos à hora a que ele deveria descolar. Pensei que seriamos para aí os últimos, mas nada disso… quando entro na cabine, vejo exactamente o oposto… ainda só há meia dúzia de passageiros e também eles acabaram de chegar.
À aterragem em Pula seguiram-se os procedimentos de aluguer de carro. Tinha reservado com a Oryx, uma empresa croata, e tudo correu bem. Por 7 dias o valor pago foi de 106 Eur. Foi-nos dado um pequeno Volkswagen encarnado, que se revelou extraordinariamente económico e que se portou muito bem durante a semana que passámos juntos.
Primeira paragem: a base naval de Pula, criada pelo Império Austro-Húngaro, mais tarde herdada pela marinha da Joguslávia, e agora, desfeito o país, deixada ao abandono até que a cidade (a quem a marinha passou o testemunho) decida o que fazer com aquela enorme área. Algumas secções estão bem vedadas, apesar de uns quantos buracos no arame farpado. Mas o núcleo principal da antiga base encontra-se declaradamente aberto ao público, com o portão de acesso removido e a estrada disponível a quem por ali quiser entrar.
Passámos algum tempo a explorar aqueles edíficios. Tudo o que pudesse ser vendido no mercado paralelo foi já arrancado das respectivas estruturas. Mas há ainda muitos detalhes que fazem desta visita uma experiência no mínimo interessante. Entrámos nas antigas camaratas, encontrámos o refeitório e a praça da parada, rodeada de edíficios administrativos e de comando. Visitámos a pequena ilha, talvez artificial, a que se acede através de um pontão capaz de dar passagem até a uma viatura ligeira. Ali, vimos os hangares dos hidroaviões e um grande depósito subterrâneo de combustível protegido por um abrigo de betão. Em redor alguns homens pescam. Outros, trabalham nas redes. Há ali uns quantos barcos de faina, baseados à revelia nos ancoradouros onde antes apenas vasos de guerra acostavam. Do outro lado, bem perto da cidade de Pula, um estaleiro naval, onde um navio se encontra em reparos.
Estava na hora de prosseguir, mas antes, queria dar uma vista de olhos às ruínas de um forte imperial localizado ali próximo. Chegar lá foi algo aventuroso e implicou conduzir por muitas ruazinhas estreitas e atravessar diversos cruzamentos. O GPS foi um amigo fiel, e com precisão foi-nos aproximando do ponto desejado. Chegámos. Nas imediações um senhor procurava espargos. Foi apenas o primeiro de uma longa série de pessoas que vimos de varão na mão, em busca deste vegetal que pela Istria parece ser tão apreciado. Quanto ao forte, é interessante. Num dia cinzento como o que nos recebeu na Croácia, o seu aspecto ruinoso ganha uma mística renovada. A pedra é cinzenta clara, quase branca. Tem um aspecto sólido, apesar do estado em que se encontra.
De novo na estrada, a caminho de Pazin, uma pequena cidade no centro da península da Istria onde iremos passar as duas noites que se seguem. Um local excelente pela sua localização, oferecendo condições excelentes como base de exploração da região. Seja em que direcção se for, tudo fica a pequena distãncia.
Mais à frente, à beira da estrada, uma pequena surpresa. Mas o que é aquilo…? Paramos. Um pequeno abrigo de pedra tem um painel explicativo. Trata-se de um Kažun, um abrigo agrícola tão característico daquelas paisagens, usado para vigiar os campos de cultivo e com uma particularidade surpreendente: é construido sem a utilização de argamassa, num exercício de equilibrio de pedras que resulta na cabana final. Mais para a frente, escondido pelos matos, encontramos um outro Kažun ainda maior.
Ainda faltava algum tempo para o sol se esconder, mas não tinha um plano de como gastar aquelas horas. Fomos andando quase ao calhas, em direcção à costa, por caminhos locais. Vimos uma pequena capela e chegámos a Barbariga, um aldeamento turístico que nesta altura do ano se encontrava deserto. Deu para ver a praia, de seixos, e o mar, límpido, como quase sempre o é o Mediterrâneo. Algumas, poucas, pessoas andavam por ali. Não foi especialmente agradável passar por este local e instintivamente afastámo-nos da costa. Acabámos por entrar em Rovinj, um local que tinha descartado durante a preparação prévia da viagem, sob a suspeita de ser altamente turístico.
E é. Mas também é imensamente interessante. Uma cidade construida numa ilha, posteriormente ligada a terra, tendo hoje o aspecto de um pequeno istmo. A influência aqui é claramente italiana. Não só na arquitectura. Nas ruas as pessoas falam entre si em italiano, apesar de estarmos na Croácia e deste pedaço apenas ter feito parte de Itália desde o final da I Guerra Mundial até ao final da II Guerra Mundial. Uma questão de escolhas de lado. No primeiro conflicto a aposta da Itália foi certeira e ficou com este prémio. Depois, alinhando com a facção derrotada da Segunda Guerra, perdeu-o com a mesma facilidade com que o tinha ganho.
Uma das faces de Rovinj (diz-se “Rovini”) é completamente encantandora, com as casas de vários pisos construidas directamente sobre a água com um escasso par de metros de rocha a separá-las do mar. E o seu interior, marcado por estreias ruas calcetadas, edíficios que se adivinham cheios de histórias para contar, mostrando orgulhosamente a influência veneziana da sua arquitectura, não o é menos. Trata-se de um núcleo histórico pequeno mas fascinante, encimado pela igreja que se avista a longa distância, a sua torre sineira elevando-se acima de todos os telhados, quase a tocar o céu.
Na ponta do istmo, um pequeno farol e um bunker abandonado. Ali há uma área ajardinada, dominada pela relva bem verde, por onde se passeiam calmamente os locais. Do outro lado, a marina, epicentro da modernidade que chegou tardiamente a Rovinj. Ali, destaca-se um edíficio pintando em cor de vinho, com uma torre de relógio. É talvez a praça central da cidade, ladeada de cafés cheios de personalidade. As lojas ali em redor vão fechando as portas, e os empregados abandonam a zona, passo certo, desejosos de chegar a algum outro lado. Está na hora de partir. O carro, entretanto, tinha ficado no parque de estacionamento de um supermercado. Ali perto um par de figuras duvidosas, evidentemente apreciadoras da pinga, delicia-se com a cerveja acabada de comprar no estabelecimento. Pensámos que local onde esta fauna se abastece é bom de preços. Mas afinal tudo é carissimo. Será daquele supermercado, de Rovinj ou da Croácia em geral. Assustados, saimos com uns bens essenciais para sobreviver nas horas seguintes… incluindo uma lata de cerveja fresquinha, claro.
Chegámos a Pazin já de noite, para darmos logo de caras com um Lidl. Fizemos mais umas compras antes de chegarmos a casa dos nossos anfitriões, uma família com três filhos que nesse dia tinha a casa bem composta: para além deles, o irmão do anfitrião Toni e dois couchsurfers australianos que partiriam na manhã seguinte. O serão passou-se, muito agradável, a ver o Real Madrid 3 Galatasaray 0, e a debicar uma mesa cheia de petiscos regionais. Era já tarde quando nos recolhemos, depois de muita troca de histórias, de aventuras vividas e viagens feitas, especialmente com os companheiros viajantes que se deixaram ficar até ao fim.