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O primeiro dia completo na Croácia foi tão intenso que quase que tenho medo de me esquecer de mencionar alguns dos locais que visitei. Logo pela manhã, ao abrir os olhos, uma imensa novidade: um céu azul lindo de morrer, pleno de sol e luz! Uma raridade que quase já tinha esquecido existir. Aquele tempo lá fora criou uma enorme ânsia de sair tão cedo quanto possível, e em menos de nada estávamos no carro a rolar em direcção a Dvigrad, a primeira paragem no longo plano para este dia.

Na realidade, a ida a Dvigrad tinha algo que mexia com os meus nervos; é que tinhamos, por assim dizer, passado lá à porta na véspera, e agora refaziamos metade do caminho da véspera apenas para visitar este local. E nem estava tão certo que valesse a pena. Mas, hey, quando se viaja o melhor é deixar a agrura de lado, e encarar o lado melhor das coisas, e com uma manhã destas as forças positivas não precisaram de se esforçar muito para triunfar. As estradas nesta parte da Croácia não são más, conduz-se bem e os outros “volantes” são geralmente respeitadores, apesar de bastante rápidos.

Foi assim sem dificuldade que chegámos a Dvigrad, um burgo medieval abandonado pelos seus habitantes, saturados pelos constantes ataques de piratas e pelas vagas de praga que assolavam consecutivamente a cidade.  Hoje pouco resta da original urbe. O núcleo defensivo é evidente, ladeado de ruas empedradas, paredes semi destruidas pelo tempo, alguns edíficios quase completos. Numa das extremidades há traços evidentes de uma basílica do século XII (Crkva svete
Sofije). Mas, tal como esperado, não foi um local que me enchesse as medidas. Pessoalmente, recomendo apenas se se passar muito perto. No meu caso a coisa não calhou tão mal porque aproveitei para visitar mais um par de locais que ficava a sul de Pazin, antes de conduzir para norte, para paragens mais interessantes e remotas.

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Svetvincenat, ou seja, São Vicente, é uma aldeia dominada pelo castelo da família Grimani (a influência italiana é desde logo evidente), bastante pequena mas muito interessante. No Verão são aqui organizados diversos festivais culturais, mas pela altura em que visitei a calma imperava. Num cafézinho uma série de homens tomava as suas bebidas, apreciando o raro sol deste inverno-primavera tão austeros. Do outro lado, junto à imponente igreja da Assunção, um outro homem entra na pictoresca pizzaria e sai com um jornal na mão. Senta-se, também ele, numa mesa, e lê, sozinho. Num terreiro relvado em frente ao castelo sentem-se fantasmas antigos: em 1622 terá sido ali queimada uma “bruxa” cujo crime terá sido um envolvimento amoroso com um varão da família Grimani.

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Deixada Svetvincenat para trás, rapidamente chegámos a Gračišće, já bem perto da nossa base de Pazin. O que dizer de Gračišće… ? É mais uma aldeia tradicional do interior da Istria, com encantadoras ruas com piso de pedra, casas milenares e recantos plenos de magia. É pequena, como o são as aldeias, e vê-se de ponta a ponta em menos de meia-hora. Uma retroescavadora desmonta metodicamente o piso da pequena praça central. Aproximam-se as eleições regionais, e como sucede em qualquer parte do mundo, é nesta altura que se investe na renovação dos espaços e nas infra-estruturas. Só mais tarde soube da proximidade das eleições, mas com todas as pequenas obras que vi a decorrer na região, subitamente muita coisa ficou explicada. Das aldeias tradicionais, esta foi a que gostei menos. É agradável, mas a sacrificar uma no plano de visitas, Gračišće seria a escolhida.

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A paragem seguinte deveria ser o prato forte do dia mas acabou por não o ser. Apesar de estarmos quase no coração da época baixa, Motovun estava feita um viveiro de turistas. A coisa começou mesmo antes de chegar, quando parei o carro numa curva junto a um café de beira de estrada. Logo me vi rodeado por uma série de carros cheios de turistas indianos que procuravam aproveitar o ângulo vantajoso para levarem para casa umas imagens gerais da cidade fortificada. A aproximação foi ainda mais esclarecedora. na moderna Motovun, que cresceu no sopé do monte onde o castelo original foi construido, um enorme parque de estacionmento, pago, albergava uma série de autocarros de turismo. Arrisquei prosseguir pela estrada acima, mas acabei por me render e deixar o carro na berma espaçosa, um pouco antes de alcançar as portas da cidade. Por todo o lado, turistas. O coração de Motovun não tem qualquer carácter. Tudo foi aproveitado e serve agora a indústria do turismo. E, bem no centro, o grande hotel e as muitas esplanadas. Esta localidade foi até aos anos 40 uma cidadezinha italiana, onde a população practicamente só falava esta língua. Alguém se recorda do campeão de Fórmula 1 Mario Andretti? Nascido aqui.

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Talvez um dia Motovun tivesse tido uma aura mágica. Mas agora encontra-se quase completamente estragado pelo monstro que criou. E digo “quase” porque é ainda possível encontrar umas quantas ruas desertas, abaixo da muralha principal, na face da colina que desce a partir do núcleo histórico. Motovun é portanto uma atracção turística, a usar com comedimento, e sabendo o viajante à partida que se vai encontrar rodeado de um enxame de turistas. Quanto a mim, não foi para me submeter a estes ambientes que vim até à Istria interior.

Depois de Motovun, apesar da chegada de um tapete homogéneo e compacto de núvens que tudo cobriu, o dia melhoru significativamente. Avançámos para a Istria mais profunda. Seguir a estrada tornou-se num constante ziguezaguear e os carros tornaram-se raros. As montanhas abaraçaram-nos. Passámos junto a pequenas aldeias sem nada que as distinguisse, todas elas marcadas por um aspecto fantasmagórico que impressionou. Apesar dos carros parados à porta, das colunas de fumo que se elevavam das chaminés, não se vê vivalma nestas localidades. As pessoas não saem, é como se não tivessem vida fora do lar.

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Perdida nas montanhas, uma pequena capela, sabe-se lá com que função religiosa. Num raio de quilómetros não há vivalma, para além da simpática camponesa que numa casa isolada, um pouco mais à frente, nos indicou o caminho para chegarmos à capelinha. Tomámos ali uma refeição, sentados sobre a relva selvagem que enchia uma pequena área plana defronte do edíficio, antes do declive que devolvia ao local o seu carácter montanhoso.

A aldeia seguinte foi Oprtalj, e esta sim, recomenda-se! Também ela algo desertificada, mas pelo menos foi possível avistar uma meia dúzia de almas vivas. A estrada passa junto à orla da aldeia. Entra-se por um arco e está-se num mundo diferente, rural. Uma cena que, retirando uns quantos carros parqueados, poderia decorrer há 300 ou 400 anos. Há que explorar Oprtalj em detalhe. Também ali há traços de um turismo dormente, aguardando a chegada do Verão seguinte para ver reabertos uns poucos bares e restaurantes que avistámos, especialmente junto à entrada da aldeia. Numa pequena praça com ares de centro, uma série de carros testemunham o padrão social da comunidade: um par deles tem chapa de matrícula croata, mas a partir dai a diversidade é total. Há um alemão, um austriaco, um sérvio, um italiano. Estrangeiros apaixonados pelo estilo de vida rural que ali podem usufruir? Emigrantes? Casais mistos? Talvez um pouco de tudo.

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E para o fim estava guardado o melhor bocado. Já com pouca fé, pensando que ia ser mais do mesmo, chegámos à remota Grožnjan. Foi amor à primeira vista. Um grupo de turistas alemães com guia ouvia uma última explicação antes de partirem. O céu estava definitivamente pesado, filtrando quase toda a luz, deixando um ambiente pesado sobre a aldeia. Mas era assim mesmo que se estava bem. As condições de luz eram ideais para as ruas antigas de Grožnjan, para as construções feitas de pedra. A aldeia não é grande, mas cada palmo é precioso. Logo à entrada, uma igreja de dimensões raoáveis; um tudo nada mais à frente, um palácio italiano, e ao fim da rua, a antiga prisão e casa da justiça. Depois, são pontos menores mas não menos interessantes, devidamente identificados por bem desenhadas placas explicativas, que surpreendem com textos equilibrados, não demasiado longos, mas com informação em quantidade acertada.

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Grožnjan chegou à beira da desertificação em meados do século XX. Mas o governo encontrou uma forma ideal de a dinamizar: ofereceu as casas devolutas aos artistas que ali se quisessem instalar e a coisa resultou. Hoje em dia é conhecida como a aldeia dos artitstas e, uma vez por lá, compreende-se bem. Há inúmeros estúdios e galerias de arte. De todos os tipos de arte. No dia em que visitei, parecia, digamos, “paradota”, mas no Verão o afluxo de viajantes deve ser suficiente para manter viva aquela bizarra comunidade.

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Numa das ruelas, perto da antiga oficina do ferreiro, quando fico pedrado com o cheiro a marijuana. Talvez o efeito da inalação, mas dei por mim a dizer que ali tinha que voltar. Fotografei e tornei a fotografar. Grožnjan é definitivamente um local especial, provavelmente o ponto alto de toda esta viagem. Nem falta um café agradável, localizado na borda da aldeia, com vistas imensas sobre os vales e montes das redondezas. Ali ficámos um bom bocado, a usufruir, finalmente de uma boa internet wi-fi e a beber um excelente chá. Na sala, há aquecedores efectivos e uma pilha de mantas para os mais friorentos. Os preços são razoáveis. Foi o encerrar com chave de ouro não só o dia mas também a visita ao local mais interessante que foi visitado.

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Dali foi conduzir sem pausa até Pazin. Tinha prometido cozinhar uma surpresa doce (aletria, mas schiuuuu, é segredo) para a família que nos oferecia hospitalidade. Só que o destino sabotou este nobre plano. Chegámos, mas não estava ninguém em casa. Deixamos mesmo ali à porta as compras que vieram do Lidl para a tal aletria, e saimos para a rua. Ao fim de um pouco de passeio encontrámos os anfitriões caminhando descontraidamente. Tinham deixado a porta aberta, afinal teria sido só entrar. É assim a vida em Pazin. Segura e familiar. Mas já que ali estávamos… o Toni tinha que ir a casa do irmão, ajudar a mudar uma máquina de lavar louça, e convidou-nos a ir com ele, para fazer companhia. Claro que aceitámos a proposta… só que aquilo mudou todos os planos para o serão. Feita a mudança, que levou dois minutos, fomos convidado a experimentar o jantar… um guisado de feijões que ainda hoje me faz salivar! Estava verdadeiramente delicioso. E depois, sentados na sala em redor da mesa de centro, veio a garrafa de rakia e já não foi possível sair. As horas passaram-se com conversas sobre quase tudo. O passado da Juguslávia foi o centro dos debates, mas tocou-se na História de Portugal, na essência de viajar e sei lá em que mais. Quando por fim chegámos a casa, muito tarde, já toda a gente dormia.

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