Acordei cheio de frescura depois de uma noite confortável. Estava na hora de me preparar para sair, com toda a calma. Últimas arrumações na mochila. Experimentei o duche. Era demasiado ranhoso, preferi esperar até chegar a Istanbul. Já nem sei quantos dias sem um duche… oito? Dez? Limitei-me a mudar de roupa, tinha ainda alguma lavada.
O pequeno-almoço do hotel Sahra foi algo de fabuloso. Um buffet bem preparado, à curdo, com muito yogurte, queijos, pão árabe quentinho, chá, vegetais frescos… e uma compota de cereja caseira, favos de mel…. eu sei lá… foi dos melhores pequenos-almoços que me lembro de tomar num hotel. Comi até me encher dentro de uma margem de segurança… nem quero dar cabo do estômago nem quero dar tristes espectáculos no autocarro. Depois, calmamente, fui lá acima buscar a mochila, paguei a estadia, e fui andando até ao escritórios da empresa de camionagem. Cheguei lá um pouco antes das 10. O tempo passou, e nada. Vejo um autocarro chegar a o pessoal que estava dentro das instalações acorrer, entusiasmado. Senti uma certa simpatia por aquela dinâmica, relacionada com tempos que no meu mundo já passaram. Hoje em dia ninguém se entusiasma assim pelo aparecimento da “carreira”, mas lembro-me que há umas décadas atrás, a camioneta tinha grande importância social. Era ela que trazia (e levava) entes queridos, os jornais com as notícias do mundo numa terra sem TV, pequenas encomendas enviadas sabe-se lá de onde com muito carinho. E aqui, tudo isto sucede ainda.
Mas não. Aquela não era a minha. Ganhei contudo um guardião, o empregado de serviço, que percebi que ia cuidar de mim até me ver em segurança dentro do transporte certo. Quarenta minutos depois fez-me sinal para o seguir, atravessamos a rua e ficamos à coca. Mas nada. Os minutos passam, ele fala com outro tipo que está ali ao pé, entrega-me a ele e volta para o seu posto de trabalho. Por fim chega o autocarro e descubro que o homem que me agora me orienta é o comissário de bordo, e que bom profissional ele é, incansável, a dar esclarecimentos, resolver problemas e a servir bebidas.
A viagem é relativamente longa – umas quatro horas – e há alturas em que enjoo um bocado, mas vejo coisas interessantes. Cenas da vida quotidiana no Curdistão: os trabalhadores nos campos, as aldeias, as pessoas vestidas em trajes tradicionais. E os aquartelamentos, à beira da estrada, com ares de quem vivem em permanente estado de guerra, com protecções improvisadas e devidamente guarnecidos por pessoal em roupa de combate empunhando armas automáticas. A Jendarma, que é uma espécie de GNR mas com uma vertente mais militar, é preguiçosa: faz as operações stop à porta de casa. Mas em grande. Veículos de combate, hordas de pessoal completamente equipado para batalha. Apenas uma vez avisto autoridades vestidas à civil. Revistam o porão do nosso autocarro, estou a vê-los mesmo debaixo do meu nariz. São apoiados por um APC e por alguns militares de capacete e colete à prova de bala. Também eles vestem estes coletes, alguns empunham armas automáticas. Levantam alguns problemas mas no fim chega-se a consenso e prosseguimos viagem. Lá atrás tinhamos sido parados, mas dessa feita apenas controle de ID. O meu passaporte não levantou nenhuma curiosidade.
Há uma paragem de 20 minutos numa pequena cidade cujo nome não consegui ver. Na estação de camionagem vê-se de tudo, e percebe-se que é uma zona tradicional. Um rapaz montado num burro pára por instantes entre os autocarros para que a besta beba um pouco da água das lavagens. Há um café. Há homens bebericando chá na esplanada, três mulheres completamente cobertas em preto, à moda da Arábia Saudita, mas que não se coibem de um estardalhaço enquanto vão fazendo e recebendo chamadas nos seus telemóveis. São vinte minutos a observar pessoas. Também sentado na esplanada está um jovem com uma expressão facial muito agressiva, muito zangada. Não faz nada, não diz nada, mas a expressão está carregada de ira. Passam por ali a pé famílias. As mulheres vestem-se quase todas em coloridas roupas que são evidentemente tradicionais, folclóricas. Do outro lado da estação, um homem junto a um carro enxota uma série de gansos que por ali andam. Dois rapazes vão lavando os dois ou três autocarros estacionados. Mais tarde receberão uma gratificação pelo serviço.
De novo na estrada. Não demora muito para chegar a Batman e para mim é como um regresso a casa. Gostei daquela cidade quando ali passei, uns dias antes, e não sinto qualquer ansiedade à chegada, mesmo sendo “despejado” a uma boa distância do centro. Para resolver estes problemas tenho o GPS e sem qualquer problema chego ao belissimo café onde sei ir encontrar Internet. Assim que saí do autocarro e pus a mochila às costas recebi um SMS do Adnan a sugerir um encontro na esplanada de chá onde estivemos quando nos encontrámos pela primeira vez. Excelente! Adoro estes simbolismos, de encerrar algo como foi aberto. Recordo-me da minha visita a São Tomé e de quando o meu anfitrião me perguntou o que queria fazer na minha última noite lá, eu respondi que queria ir ao bar onde tinhamos estado no primeiro dia. Em Batman foi mais ou menos o mesmo. E foi simples. Estive um bocado no tal café, depois mudei-me para o local de encontro, e lá estava o Adnan, com mais um primo.
A rotina do chá foi iniciada, acompanhada de muita conversa sobre questões sociais, perspectivas de futuro, problemas geracionais. Depois mudámos de pouso. Fomos deixar a mochila ao escritório do irmão. Dali, saimos a pé, encontrámos por acaso um dos primos que já conhecia da minha primeira passagem e acabámos por ir comer. De novo, sou convidado, não me é permitido pagar nada. Mas a comida está uma delícia. A mesma espécie de “pizza” que experimentei em casa do Ersin em Batman, só que muito mais saborosa. Dali vamos até ao moderno centro comercial, para o terraço, onde uma enorme esplanada segue o contorno do edíficio. Ali temos longas conversas, quase todas elas muito interessantes. Noto que a multidão em redor podia perfeitamente ser portuguesa. Aliás, todo este pedaço da cidade podia ser um bocadinho de uma qualquer Odivelas ou Santo António dos Cavaleiros, uma pequena cidade dormitório portuguesa.
Aproxima-se a noite, arrefece. Deixamos o “shopping”, caminhamos de novo até ao escritório do irmão. Despedimo-nos do primo, um tipo muito interessante mas que deve ser algo tímido em grupo, porque no outro dia mal tinha aberto a boca e hoje, apenas a três, fartou-se de falar. Sentamo-nos um pouco lá no escritorio, sou apresentado ao patriarca da família. Peço para irmos andando para o aeroporto. Mais vale cedo do que tarde. E, como sempre sucedeu com a Pegasus e os aeroportos na Turquia, tudo corre lindamente.
A noite, passo-a no aeroporto de Istanbul, como planeado. O avião chegou tarde, já teria que fazer parte do percurso de táxi, e preferi aninhar-me ali, frente ao Burger King, um pedacinho que já conhecia do outro dia. Dormi maravilhosamente.