No segundo dia de Saigão comemorou-se o São Não Fazer Nada. A véspera tinha sido esclarecedora. Esta é uma cidade onde não encontrei alma. Sim, o passeio foi óptimo, com a visita ao Palácio da Independência como ponto alto. Correu tudo bem, não há nada de errado na urbe, mas… falta-lhe qualquer coisa, algo que lhe dê um charme para além do bulício e das estórias por contar daquela década americana. Ver os locais que ficaram no imaginário de uma geração que cresceu a ver “filmes do Vietnam” foi engraçado, mas não é combustível para muito mais.
E assim, por consenso, ficámos por ali. Entre ler, deitar abaixo umas cervejas – compradas na recepção ao preço da uva mijona – e dormir, passaram-se as horas. Pouco depois do almoço saimos para comer uma bela refeição ocidental do Burger King, estrategicamente localizado a 5 minutos do hostel.
Fui trocar dinheiro. No beco do hostel uma rapariga senta-se numa secretária à porta de uma “guesthouse” onde está anunciado, de forma bem clara, que se procede a câmbios. Preferia um estaelecimento, enfim, mais credenciado, por exemplo, da rede Western Union, mas era Sábado e não havia nada aberto nas redondezas. E foi assim, algo incomodado, que sai do hostel, atravessei os dois metros de rua e sentei-me na cadeira defronte da moça.
A coisa começou bem e acabou ainda melhor. Por partes: ela falava o melhor inglês que encontrei no Vietnam. Disse-lhe que tinha Euros para trocar, parte na moeda local, parte em US dólares… quanto é que que a minha quantia ia render… ela fez os cálculos e escreveu num papel. Perfeito. Agradeci-lhe e disse que ia pensar… fui ao quarto, comparei o câmbio com a informação na net, e gostei. Tornei a sair e a sentar-me, dei-lhe os meus Euros e neste momento um homem, ocidental, de cabelo branco, alto, magro, aparece vindo do fundo da rua e começa a falar com ela em vietnamita. Entretanto ela tinha-me pedido desculpa mas tinha que ir a um outro escritório fazer a troca de numerário. Não gostei de a ver partir de scooter com o meu dinheiro. Nem pensava que desaparecesse, mas, macaquinhos no sótão, e se tivesse um acidente?
Estava a matutar nestas coisas quando o tipo magricela começou a falar comigo. E como falava. Fiquei a saber muito – ou pelo menos disse-me muito. Norte-americano, escapou por uma unha negra à guerra aqui no Vietname. Quando tudo terminou estava na Tailândia a ambientar-se ao clima. Era piloto de helicóptero. E agora – por razões que mais tarde me explicará em detalhe – está a escrever um livro sobre as raízes do conflicto e há meses que está no Vietname. A mulher do câmbio é a sua “fixer” – termo jornalistico que descreve a pessoa local que providencia soluções para qualquer problema que se tenha no campo. Com ela, à pendura na motorizada, tem percorrido aldeias sem fim desde ali até ao delta do Mekong, entrevistado ex-combatentes dos dois lados, passado dias em remotas comunidades, tomando o pulso à actual situação da população. E fomos falando, primeiro de forma superficial, depois, em termos mais académicos, sobre tudo aquilo. O meu novo amigo tem umas teses curiosas, que localizam a origem do conflicto na época de encapotado colonialismo americano, quando a Indochina se encontrava sob domínio francês. Foi então que poderosas empresas americanas se firmaram no que é hoje o Vietname, com a concordância dos europeus. Mas isto são assuntos que não cabem num blog deste tipo.
Ela voltou e com ela o meu rico dinheirinho, devidamente trocado em Dongs e US Dólares. De volta para o quarto para mais uma sessão de ronha.
Ao fim da tarde o meu amigo americano visita-me no meu hostel e falamos muito mais, ouço as suas fabulosas histórias pessoais, os avanços nas investigações, os perigos que correu; discutimos teses, trocamos pontos de vista… um oásis de ideias, é o que encontro ali hoje, de surpresa.
Só já depois da noite cair saimos para a rua. O plano era jantar e depois comer um gelado, mas a parte da refeição não correu bem, não encontrámos nada do nosso agrado e a fome, para ser sincero, também não era muita. De forma que ficámos pelos gelados, que têm um nome e uma estória. I Começando pelo mais simples, que será o nome: Swensens, que mais tarde descobri ser uma uma cadeia de lojas também presente no Cambodia, mas que na altura era para mim um nome desconhecido. E agora a estória: na véspera, quando jantei aqui ao lado, na Pizza Hut, tive a fantasia de fechar a refeição em grande com um gelado aqui mesmo. Não aconteceu, mas cheguei a entrar, só para espreitar os preços. Ora assim que pus um pé dentro da loja, foi logo recebido como se o Papa em pessoa tivesse decido adoçar a boca naquela gelataria. O meu esclarecimento presto de que estava ali apenas em missão de reconhecimento não arrefeceu o entusiasmo dos jovens empregados: logo me mandaram sentar, deram-me um menu para as mãos e disseram-me para demorar o tempo que quisesse a ver. Dez segundos depois, um “pók” assinalou a chegada à mesa de um copo de água de gelada, que, no fundo, saciou a minha necessidade mais premente naquele momento, sem que tivesse feito nada para o merecer. Quando saí, agradeci a atenção e fiquei com a consciência roida por não me ter tornado cliente de gente tão simpática.
Portanto, foi no dia seguinte. Agora dois, o tratamento recebido foi duas vezes mais entusiasta. A Swensens é uma casa de gelados grande e moderna, com para aí uma dúzia de empregados, muito jovens, que, à vez e sem negligenciar o restante trabalho, nos serviram com esmero. Primeiro, escolta até à mesa, que, como foi deixado em claro, seria a da nossa preferência; depois, o puxar da cadeira para nos sentarmos, a apresentação imediata do menu com uma explicação sumária de todo o seu conteúdo e respectivas promoções; entretanto, chegaram à mesa dois copos iguais ao que recebi na véspera, com água muito fresquinha e uma dose generosa de cubinhos de gelo; sob o olhar expectante de quase todo o staff, bastou baixar a carta para que a encomenda fosse recebida; em segundos recebi a pedida password para a Internet, que implicou uns sprints para a recolha da mágica palavra e entrega ao cliente, eu. O gelado, para ser sincero, não estava mal, mas foi o menos interessante de toda a experiência. Pagámos à saída, recebemos agradecimentos e saudações à meia dúzia com muitas vénias e saimos para o ar quente da noite e para o trânsito que ainda era caótico.
O passeio até ao hostel era de um quilómetro e meio,que apimentámos com uma passagem pelo parque, hoje, mais tarde, já não tão animado, mas mesmo assim com um palpitar agradável.
Na feira de turismo, ali no parque central, já perto de “casa”, a animação era enorme, ao contrário da nossa vontade de nos envolvermos na festa. Mas era impossível não ir espreitar. Que grande farra ia ali… num palco um cantor-pimba animava uma audiência heterógena, olhado com uma expressão indefenida por uns quantos velhotes que devem ser os “donos” haituais do parque, hoje com o seu reino invadido por aquela hoste ruidosa.
Aproveitei a passagem pela recepção para me informar dos detalhes necessários para apanhar o autocarro no dia seguinte, para Can Tho. Só perguntei como chegar à estação de camionagem, mas recebi instruções detalhadas sob todos os aspectos. Não restou margem para a mais pequena margem para dúvidas sobre os procedimentos e timings para o dia seguinte. Obrigado ao fabuloso pessoal deste hostel.