A partida para Can Tho não tinha uma hora marcada. Afinal de contas, pelas informações recolhidas, os autocarros que ligam estas duas cidades são constantes, não há necessidade de consultar horários e de traçar planos elaborados.
Deixamos o hostel a meio da manhã, depois de tomar um último pequeno-almoço, frugal como sempre, mas claramente preparado com amor. Pode ser pretensiosimo, pode mesmo, mas acredito que, por comparação com um perturbante chauvinismo ostentado pela maioria dos viajantes ocidentais, a minha atitude respeitador vai conquistando simpatias pelos hósteis onde vou passando nesta viagem. Pago a conta, despeço-me do pessoal e procuro um táxi local.
Na avenida principal encontro um rapidamente. Mai Linh. Mostro o papel com a morada detalhada que me deram na véspera e estamos a caminho. É uma curta corrida. As coisas funcionam assim: em Saigão não há apenas uma mas várias estações principais de autocarros. A que procuro é estação oeste, o que faz todo o sentido, porque Can Tho é para oeste. Mas este terminal fica a uns 8 km do centro – ondeme localizo – pelo que me foi logo dito que um táxi custaria uma pequena fortuna pelos padrões vietnamitas. A solução é usar um mini-bus que liga os escritórios centrais da companhia com as suas instalações no terminal. E é para esse escritório que primeiro nos dirigimos. “So far so good”. O táxi deixa-nos mesmo à porta e cobra-nos uma quantia irrisória. Com toda a simplicidade compramos os bilhetes para Can Tho e logo somos mandados embarcar no mini-bus que, carregado de passageiros, parte rapidamente.
De facto é um longo trajecto até à estação ocidental de autocarros. Funciona como um adeus a Saigão, que desfila pela janela. Não há pressa, mas também não há trânsito. Está tudo calmo nas ruas da grande cidade.
O terminal é um centro de actividade. Há centenas – literalmente – de autocarros que chegam e partem, de todas as cores e aspectos. Os da Phuong Trang (não esqueça este nome porque é a empresa a escolher para viagens de autocarro no Vietnam) são cor de laranja. Aquele é um mundo que não está preparado para estrangeiros e por uns minutos sinto-me perdido no frenesim. Ao contrário do que estou habituado nesta parte da Ásia, ninguém vem espontaneamente em socorro do turista necessitado, mas quando procuro ajuda encontro-a facilmente. Um funcionário da empresa indica-me a viatura para Can Tho e estamos a bordo.
É um autocarro moderno, impecável, confortável. Pomo-nos a caminho, e tudo decorrer normalmente. É Domingo e também nas estradas exteriores à cidade não há muito movimento. Mais ou menos a meio, o autocarro abranda e entra numa gigante área de serviço. Um enorme edíficio revela-se um hall preenchido com pontos de venda de comida e bebida, mas o espantoso é que todo o complexo é detido pela própria Phuong Trang, e, mais uma vez, há dezenas de autocarros que vão entrando e saindo.
Tenho de facto alguma fome e podia fazer uso de uma bucha, mas não sei o que escolher. Rondo por ali até ganhar coragem para encomendar. Por gestos indico que quero uma sandes em pão de baguette, que é recheada com uma carne aparentada do estilo doner kebab e vários legumes crus, tudo coberto com um molho misterioso. A acompanhar, uma Fanta de laranja. Está delicioso. Foi uma escolha em cheio. O almoço – porque de um almoço se trata – custou-me menos de um Euro.
À medida que nos aproximamos de Can Tho vou trocando SMS’s com a nossa anfitriã. Em toda a viagem foi o único ponto onde foi possível fazer Couchsurfing. Ela foi passar o fim-de-semana fora e dirige-se para a cidade ao mesmo tempo que nós. Na realidade, quase que nos cruzámos no complexo da Phuong Trang. Vamos chegar um pouco mais cedo e devemos esperar por ela onde o autocarro nos deixar.
E é assim mesmo que acontece. Sentamo-nos um pouco e logo depois chega a Tran que nos põe a bordo do transfer gratuito – cortesia da grande Phuong Trang – que nos vai deixar quase à porta de casa. Ela vive mesmo em frente ao hospital, o que é um pouco deprimente, mas nada de sério. Somos apresentados aos elementos da família que vamos encontrando à chegada, e também ao nosso quarto, no primeiro andar. Tudo nos conformes. Vamos conhecer Can Tho enquanto ela relaxa um pouco e mais tarde nos encontraremos no centro.
Do nosso lar temporário ao centro da cidade são cerca de 2,5 km, que várias vezes percorremos sem nos cansar. Literalmente e figurativamente. É um caminho plano e sempre com coisas interessantes para observar. Há turistas em Can Tho, mas não como nos outros locais do Vietname que visitámos e estão concentrados à beira-rio. Nestas ruas que percorremos somos uma verdadeira raridade e sentimos isso na curiosidade amistosa que obviamente despertamos.
Logo no início, assistimos ao primeiro e único acidente no Vietnam, o que é uma coisa incrível considerando o trânsito e o caos por todo o lado. Mesmo atrás de mim ouço um barulho suspeito e viro-me a tempo de ver uma mota a ser arrastada, com os seus dois ocupantes, à frente de um carro branco. A coisa não acaba bem para um dos motociclistas, mas também não é nada de grave; calculo que uma fractura na perna.
Chegamos ao centro depois de uma breve hesitação no percurso. Mas o trajecto é bem linear e não mais nos enganaremos neste par de dias que parecem ser mais. Can Tho é uma cidade do delta do Mekong, talvez a principal da região. E o seu palpitar é marcado pelo grande rio. Junto a ele se encontra o centro. São uns quantos quarteirões que formam o núcleo histórico, com edíficios marginalmente interessantes, não mais antigos do que a presença francesa. Há um par de museus – um dedicado ao incontornável Ho Chi Min e outro do Exército – vários hoteis, um mercado de rua esparso que se estende por vários blocos, muito comércio tradicional, a estação do ferry que cruza o rio, um agradável jardim e um inesperado centro comercial de vários andares a cheirar a novo.
Dou com a estátua dourada do grande líder, no centro do jardim, e dou também com o segundo adepto da Selecção Portuguesa que encontro no Vietnam. Observamos as pessoas – todas locais – que usufruem daquele espaço verde. Gente simpática. Depois, porque como sempre faz calor, sinto-me sedento. Procuramos o fresco do ar condicionado no shopping e quero comprar algo para beber mas sou impedido por um problema inesperado. Ali há um sistema pouco práctico que exige que o cliente recolha um cartão e carregará com créditos, em Dongs, a usar em qualquer loja da sua preferência. O pagamento directo não é possível. E lá vou eu tratar de pedir o cartão e carregá-lo com uma quantia ridiculamente baixa, quer porque apenas desejo uma simples bebida, quer porque os Dongs já estão contadinhos para estes dois últimos dias no país. Tal como sucedeu na gelataria de Saigão, sou tratado como um VIP.
Está na hora de irmos ter com a Tran, que nos espera com a sua inseparável scooter. Propõe-nos ir comer ao correspondente à tasca local. Indica-nos como ir lá ter e arranca na mota. Reencontramo-nos e tomamos uma mesa. A comida não me agrada muito. A parte da carne, com algum embaraço, recuso mesmo, perante a insistência desconsolada da anfitriã. Quer dizer, aquilo não é bem carne. Assemelha-se a uma mistura entre couratos e toucinho, duas coisas que não planeio comer em tempos da vida. Fico-me pelos vegatais, que são enrolados numa folha que parece de papel, feita de uma massa de arroz muito fina, passados por um molho picante e assim despachados para a boca. Não são insuportáveis mas dificilmente a minha escolha para qualquer refeição. Peço uma cerveja e depois, invejoso, um copo de chá gelado, que é o que em redor toda a gente bebe. Má ideia. Muito má ideia. Para dizer a verdade aquele chá sabe-me a um preparado de cola celulósica bem fria. Não consigo acabar e mesmo assim tenho que recusar um refill generoso.
Mas atenção: a comida foi um fracasso mas a experiência valeu tudo. Muito bom, aquele momento num estabelecimento tão castiço onde os locais afluem para a sua refeição de início de noite. A seguir vamos ao local que deverá ser o mais “in” de Can Tho no momento: um café no terraço do topo de um hotel. E de facto é espectacular. Entretanto a noite caiu e dali temos uma vista sem fim da cidade iluminada. No rio um barco-restaurante de grandes dimensões dá umas voltas, com uma música em volume super-elevado. Bebemos sumos naturais e, na hora de pagar, a conta é de 6 Eur, incluindo o da Tran. Claro que achamos barato, considerando o nível requintado do local, e ela fica a abanar a cabeça, incrédula com o nosso entusiasmo com os preços. Foi um bom bocado, mas agora está na hora de iniciar a marcha para casa, que a nossa amiga não fará graças à motoreta.
Pelo caminho paramos numa padaria com muitos bolos. Foi boa ideia. Os bens estão em exposição e somos seguidos por uma senhora com um tabuleiro que sobre ele coloca o que vamos indicando. Pagamos, a pastelaria e uma lata de bebida que encomendo. De novo o tratamento VIP, descrito por uma extrema simpatia e toda a atenção deste mundo.
Recolhemo-nos ao quarto e acabamos por adormecer na doce companhia do ar condicionado, que hesitamos em usar por respeito à anfitriã. Mas está um calor infernal, mesmo, e o comando da unidade, que estava ausente à tarde, apareceu miraculosamente, e tomamos isso como um sinal de que é suposto activarmos o arrefecimento do ar.