Dia 27 de Fevereiro de 2020, Quarta-feira
Esta foi uma noite diferente, passada num confortável autocarro entre Salta e Independencia. A viagem foi também ela interessante. Adorei ver as povoações onde parámos, ao longo da noite. No meio de nada, depois de horas a atravessar aquilo que me pareceu ser deserto, entramos em pequenas cidades, cheias de luz, carros, animação e vida. Depois, paragem no terminal efectuada, voltamos à estrada e num par de minutos a solidão instala-se.
E isto repete-se uma série de vezes, com a multidão que vejo nas ruas através da minha janela a diluir-se à medida que as horas passam e a madrugada substitui o serão.
Na hora de dormir, aconchego-me e passo uma bela noite. Viajar neste autocarro foi quase melhor do que dormir num hostel. Claro que as paragens me despertavam, mas a poltrona reclinável até se transformar em cama, com cortinados e tudo para máxima privacidade, banal naquele caso já que ia quase sozinho, compensavam esses momentos. E depois, atravessando a noite argentina por estradas longas e bem pavimentadas, não se sentia nenhum balanço. Uma experiência que nunca tinha tido, esta de passar a noite num autocarro de qualidade.
Chego então a Independencia e logo procuro os escritórios da Flecha Bus, uma das grandes companhias de autocarros da Argentina, com uma rede extensa que parece chegar a todo o lado. Sou atendido por uma simpática senhora. Diz-me que naquela dia está tudo muito mal, tem os autocarros todos atrasados. Consulta o monitor com expressão atenta e os olhos iluminam-se-lhe quando descobre a melhor solução. Sim, está quase para chegar um autocarro que me levará onde quero, a pequena cidade fronteiriça de Clorinda, o meu ponto de entrada no Paraguai.
Passagem comprada, espero agora. Ela diz-me para não me preocupar, que espera no conforto do escritório que me dirá quando chegar a altura de ir para a plataforma de embarque.
Chega uma mulher, grande drama, que perdeu um autocarro, que estava à espera e ele veio e partiu mas não sabe como foi possível não o ter visto. É paraguaia, vai a algum lugar da Argentina. Conforma-se com a necessidade de pagar um novo bilhete, com a tarifa consideravelmente reduzida com a boa vontade da senhora da agência que lhe aplica todo o desconto que as regras da empresa permitem. Agora o problema é que não tem Pesos suficientes. Ora aí entro eu, que tenho Pesos e preciso de Guaranis. Faz-se ali um posto de câmbios espontâneos, toda gente fica satisfeita: a paraguaia recebe o seu bilhete, eu sou poupado a mais drama e tenho Guaranis na carteira e a funcionária pode tratar da sua vida.
A paraguaia, que se chama Sandra, vem-se sentar ao pé de mim a conversar. Desde que percebeu que sou europeu, transpira mel e doçura, num flirt acentuado. Vamos conversando, até em português, que ela fala até bastante bem. Filha de pai brasileiro.
Entra um homem. É o condutor do meu autocarro, também muito simpático. Sinal para partir. Ele vem logo atrás e confirma qual é a viatura em que devo embarcar.
Tomo o meu lugar e enquanto espero que aquilo ande, que vejo eu… o amigo brasileiro que conheci em Salta, a andar pelas plataformas com ar atarefado. Perco-o de vista. Entretanto o meu autocarro não parece ir a lado nenhum para já. Pergunto ao condutor se posso ir só ali num instante. E explico-lhe o porquê. E num instante tenho não sei quantas pessoas à procura do brasileiro de camisa vermelha. Fabuloso.
Eventualmente falo com ele. Está à procura de uma forma de chegar a Asuncion e por alguma razão administrativa não pode vir no mesmo autocarro que eu. Uma complicação que não entendi. Bem, talvez nos vejamos então na capital paraguaia. Hora de partida.
A viagem até Clorinda é desprovida de eventos. Vou vendo a paisagem, enquanto o autocarro atravessa a extensão argentina numa estrada que parece uma recta sem fim.
Quase a chegar o ajudante vem falar comigo, saber onde é que quero ficar. Não nos entendemos muito bem, mas lá digo qualquer palavra mágica e ficaram as coisas claras. Simpático da parte dele.
Clorinda é uma cidade tristonha. Exala aquele ambiente de povoação de fronteira, pobre, o local mais pobre que vi até agora na Argentina, um país de assimetrias. Agora é caminhar até à fronteira, não muito longe dali.
Formalidades cumpridas, atravesso uma pequena ponte e chego ao posto paraguaio. Mais umas perguntas e tenho o carimbo. De todas as fronteiras que passei nesta viagem na América do Sul esta foi a mais pobre e de aspecto mais duvidoso. Especialmente do lado do Paraguai. De repente penso que parece uma fronteira africana com gente branca.
Sinto-me mesmo desconfortável, mas já me irá passar. Do outro lado tenho alguma dificuldade em encontrar a paragem de autocarro para Asunción. Pergunto a um tipo que me indica a direcção certa sem grandes simpatias.
Espero um pouco na fila, chega um autocarro velho e decrépito, as pessoas entram, pago a minha passagem com os preciosos Guaranis da Sandra, até tenho sorte de ainda haver lugares sentados, pois eventualmente aquilo enche por completo.
Agora são uns quantos quilómetros até Asunción. O destino final é o famigerado Mercado 4, uma zona pouco aconselhável depois do sol posto, mas que durante o dia não tem grandes problemas.
Ao chegar o trânsito intensifica-se a ponto de se deter por completo. Sai toda a gente do autocarro. E agora é caminhar. São uns 3 km até ao meu hostel. Está calor, mas anda-se bem. O percurso é plano.
Estou a gostar de Asunción. Turismo, zero. Cidade genuína, única, mistura de construção mais antiga, alguma dos tempos coloniais, e nova. Não é bonita, mas sim muitíssimo interessante.
Chego ao Hostel Arandú, que vejo no momento em que escrevo estas linhas que não existe mais. Pelo menos não encontro no Booking.com. Terá sido uma vítima da pandemia? Será um encerramento temporário? Fico triste porque fui ali muito feliz. Adorei este hostel, criado numa casa ampla de família, com um perfume dos anos 60. Durante os dias que ali fiquei estiveram no máximo três hóspedes. Raramente os vi. Senti-me como se ali vivesse, como se fosse o proprietário. A recepção tinha apenas gente de manhã. Depois, ficava com a casa por minha conta.
Feito o check-in, é-me mostrado o meu dormitório, onde ficarei sempre como num quarto privado, com ar condicionado. Isto por 6 Euros por noite. A menina, que saberei mais tarde é a sobrinha do dono da casa e gerente, dá-me todas as indicações e conselhos. Onde comer, onde levantar dinheiro, onde encontrar um supermercado, como comprar um cartão para o telemóvel e como estar seguro em Asunción.
Saio para a rua. A primeira tarefa é comprar o SIM card. Encontro a loja da operadora perto de um centro comercial por onde já tinha passado no caminho para o hostel. Tudo tratado. Cartão instalado, conta paga na tesouraria, dados a funcionar. Jóia.
Agora vou até ao centro, que é mesmo ali próximo. Bebo uma cerveja, estou cheio de sede. Está muito calor. Longe vão os tempos de frio de Potosi e Uyuni. Esta é outra América do Sul, com temperaturas asfixiantes. E nem estamos na época mais quente.
Estou na esplanada Bolsi. É um lugar icónico da capital paraguaia. Uma espécie de Pastelaria Suíça de Asunción. Não gostei. O pessoal é arrogante, os preços são altos e se valeu pela experiência de ver o que está a dar, mais nada agradou.
Dali encontrei um supermercado numa rua defronte. Pouco abastecido, mais como uma grande loja de conveniência, mas comprei abastecimentos básicos para me manter entretido para o resto do dia e para o pequeno-almoço da manhã seguinte.
Regressei ao hostel. As ruas estão desertas. A meio da tarde parece um Domingo. O calor mantém toda a gente abrigada. Encontro uma caixa multibanco e abasteco-me com uma quantidade generosa de Guaranis.
Chego a casa, que encontro vazia. Há uma televisão numa das salas. Ligo-a e fico surpreendido: está a dar o Sporting que joga uma eliminatória da Liga Europa. Já não falta muito para acabar e o resultado é positivo, mas mesmo ali à minha frente a equipa deita tudo a perder e deixa-se sofrer um terceiro golo dos turcos que coloca um ponto final à aventura europeia de 2019-2020. Enfim. Descubro um agradável pátio com mesas e cadeiras e fico ali a ler até o sol se por. Vai ser uma noite perfeita, de silêncio total e muito conforto.
Uma narrativa perfeita..
Ana, obrigado pelo simpático comentário 🙂 Espero que tenhas oportunidade e interesse em continuar a ler estas memórias de viagem e outras matérias que vou publicando.