Dia 8 de Março de 2020, Domingo

Enfim em Buenos Aires. Um sonho antigo, um destino com uma enorme presença no meu imaginário, desenhado com muito romantismo. De tal forma era importante para mim esta passagem pela capital argentina que reservei nada mais nada menos do que dez dias para a explorar. Depois, reduzi um pouco, para compensar alguns incidentes da viagem. Mas continuei a antecipar com excitação este encontro há muito idealizado.

Por outro lado sabia que a situação tinha tudo para dar para o torto. Investi uma grande quantidade de actividade cerebral a combater a ameaça das expectativas elevadas. Sabia que podia encontrar uma cidade com grandes problemas de segurança, tinha ouvido histórias tristes sobre a omnipresença do crime nas ruas de Buenos Aires. Os meus amigos argentinos tinham sido mais comedidos, mas reconhecendo que existia um problema crescente. Bem… teria que ver com os meus próprios olhos, não é?

Acordei. O dia lá fora sorria. Temperatura ideal. O meu corpo estava bem. Após mais de dois meses na estrada e talvez mais de mil quilómetros caminhados, sentia-me em grande forma. Quis sair para a rua rapidamente.

É Domingo e o bairro de San Telmo tem ainda mais vida. É neste dia que se faz o famoso mercado de rua. É turístico? Sim, mas nada que não possa suportar.


Apesar de só ter dormido quatro horas estou cheio de energia e um sentimento de adrenalina no corpo, vinda do entusiasmo de explorar uma nova cidade… e que cidade!!

As ruas de San Telmo são encantadoras, com um charme único, entre comércio tradicional, gente interessante, prédios fascinantes, murais coloridos. Ando por ali, ao calhas, ao sabor do vento, completamente rendido ao que vejo. Um daqueles casos raros de amor à primeira vista mesmo com expectativas extremamente elevadas.

Encontro por acaso o mercado de San Telmo. Não o que é celebrado no exterior, mas o edifício, activo até hoje. É FABULOSO. Uma combinação entre modernidade e tradição, com lojas que parecem não ter mudado em nada nos últimos oitenta anos, lado a lado com conceitos mais modernos, com propostas de cozinha de fusão e outras coisas assim.

Como qualquer coisa ao balcão de uma das clássicas. Um pastel tradicional (empanada) acompanhado de uma cerveja. Delicioso! Paguei uma quantia aceitável, mas mais tarde, já um pouco calejado nas coisas de Buenos Aires, vejo a mesma coisa por menos de metade do preço.


Passeei mais por San Telmo, observei a bonita igreja sede da paróquia e os impressionantes murais de uma escola – tranquila hoje, que é Domingo – que se lhe encontra fronteira.

Continuo fascinado com a arte mural em San Telmo. Encontro ao acaso um edifício histórico, uma antiga tasca de cuchilleros, hoje transformado em restaurante. E continua a exploração do bairro. Uma das coisas que aqui me fascina é a coabitação entre um estilo de vida tradicional, muito local, e o turismo de grande intensidade que atrai a San Telmo viajantes de todo o mundo. Existem pequenas mercearias de bairro que parece ter estado nos seus locais desde sempre. Aqui não há AirBnB’s em cada porta. Há muitos, suficientes, assim como há muitos residentes genuínos, que emprestam ao bairro uma imagem única.


 

Encontro a “Casa Minima”, a mais pequena da cidade. Hoje fazem-se tours ao seu interior. Por uma pequena fortuna.

Mesmo ali ao pé, vejo o primeiro e quase o único tanto a que assistirei em Buenos Aires. Pela negativa surpreendeu-me a ausência do tango na vida diária da cidade. Dá a ideia que se transformou em algo apenas para turistas. Pensei que a sua presença fosse constante, mas não.

Um par dança num espectáculo de rua improvisada. Não sei se dança bem ou mal, não sou especialista, mas sei que gostei de ver.

Agora afasto-me das repletas ruas de San Telmo, vou em direcção à margem do canal de água que se tornou num dos centros funcionais da cidade. E sigo um pouco a medo, ainda com aquelas imagens de uma Buenos Aires insegura. É que não se vê ninguém nas ruas.

Atravesso uma larguíssima avenida, e ando um bom bocado até chegar à água. Vejo no chão uma homenagem a algumas das vítimas da ditadura, estudantes que frequentavam aquela faculdade e que desapareceram para não mais serem vistos.

Do outro lado do canal vê-se a estreita faixa de terra que o separa do Rio de la Plata. Uma zona que há várias décadas atrás foi fugazmente usada pelos porteños como praia, numa das raras manifestações do seu apreço pelo mar. Hoje, uma série de modernos e altos edifícios fazem a linha de céu.

Caminho ali, já com mais pessoas, que usam o espaço para seu lazer. Faz-me lembrar o ambiente da Expo, em Lisboa. Encontro a fragata Presidente Sarmiento, cuja visita estava nos meus planos. Pago o bilhete de 2 Euros e entro. Encantado. É uma visita que recomendo. O navio podia ser mais charmoso, não é uma NRP Sagres, mas mesmo assim a exposição interior está bem arranjada e há muito para ver.

Passo por uma área relativamente mais moderna, que no meu imaginário comparo às ruas de Nova Iorque nos anos 30. Construção imponente, a transmitir o poder que existe no seu interior. Centro financeiro e governativo da Argentina. E chego à Praça de Maio, a famosa, onde se encontra a Casa Rosada, ou seja, o palácio presidencial. Foi dali que Evita Péron falou à multidão e no mesmo local as Mães de Maio desafiaram o poder opressivo.



Ali, ouço alguma agitação no ar. Aproximo-me da fonte e dou com uma manifestação de natureza indefinida. A favor dos direitos das mulheres? Dos direitos dos homossexuais? Das mulheres homossexuais? O que sei é que ia ali uma grande animação, com gente a vender petiscos, música, muitos cartazes e cores.

Tudo o que vi encontra-se ao alcance de uma pequena caminhada desde San Telmo. Escolhi bem o meu pouso para os dias de Buenos Aires. Apesar de só poder ficar algumas das noites ali, porque o meu anfitrião tem o quarto reservado para o resto da minha estadia.

São quase três da tarde e estou cansado. Andei bastante e dormi pouco. Começo a regressar calmamente a casa.

Vejo uma das mais antigas livrarias de Buenos Aires, regresso às ruas tranquilas, antes de reentrar em San Telmo. E chego a casa, com um grande sorriso na face. Usufruo do conforto do meu quarto, com uma bela varanda para a rua. Estou mesmo junto à esquina com a rua principal deste belo bairro, onde tudo se passa.

Os gatos do meu anfitrião adoptam-me. Especialmente um, siamês, que mais tarde virá mesmo passar a noite deitado aos meus pés.

Mais tarde volto a sair. Bebo uma cerveja no agradável café que há mesmo ali ao lado, na tal esquina. Caminho para o lado oposto do que tomei de manhã, mas começa a chover. Acho que está na hora de regressar ao conforto do quarto. Subo. Da varanda vejo a chuva cair.

Ao serão saio para jantar. Não sou muito de comer carne e no momento em que escrevo estas linhas nem me recordo da última vez que o fiz… talvez dois meses. Mas em Buenos Aires as coisas são diferentes. Comi um bife quase todos os dias. Se não todos os dias.

Fui a uma das casas de bifes que tinha marcado nos meus apontamentos, e que já tinha descoberto mesmo ali ao virar da esquina. Não gostei do ambiente, cheio de turistas ocidentais, nem dos preços, nem do serviço, com a arrogância feita do sucesso. Levantei-me e voltei para casa. Pedi opinião ao meu anfitrião que, sendo vegetariano, expressou a sua impossibilidade de um concelho de conhecedor, mas deu-me uma ideia para um estabelecimento de ambiente mais local.

Foi em cheio. Jantei um bife de chorizo (não se pense que é um naco feito de chouriço compactado… chorizo é um pedaço de bife de qualidade, de uma parte específica do animal, servido com uma pequena fatia de gordura, a fazer lembrar uma fatia gigante de picanha). Paguei 7 Euros pelo jantar completo e uma boa parte da conta foi para a cerveja. Soube-me muito bem.

Que dia em grande. Paixão por Buenos Aires. Quero viver aqui uns tempos! E durmo muito bem!

 

 

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