Foi um curto mas bom dormir, naquele quarto bem arranjado e agradável onde – não fosse o barulho que chegou com o início do dia – poderia imaginar-me a ficar uns dias. Se o contexto fosse outro, com mais calma.

Não havia tempo a perder. Eram seis e meia e às 9:00 devíamos estar na estação de comboios para tratar do bilhete para a partida das 9:45. O pequeno-almoço, a ser aproveitado, começava a ser servido às sete.

Portanto, começar por uma pequena volta pela localidade que ia despertando. Estamos a alguma altitude, o clima é diferente do que até agora. Há uma névoa relativamente fria, as pessoas andam de agasalhos. Há um ambiente de montanha em Hsipaw. E para já um objectivo: encontrar o mercado, descrito no meu Rough Guides como um dos mais interessantes do país.

Foi fácil. Virar à esquerda e na estrada principal, à direita e passado umas centenas de metros lá estava ele, junto a uma curva. Pequeno e tímido mas místico. Umas dezenas de metros de estrada com vendedoras e, para o lado do rio, uma área coberta, ainda na penumbra da noite. Uma experiência inesquecível, sem dúvida um dos pontos altos de toda esta viagem pela Ásia.

Sobretudo vendem-se ali vegetais e frutas, mas também peixe, carne, flores, produtos diversos. Na outra margem do rio, cujos bancos se encontram cobertos de lixo, começa-se a levantar o sol, uma bola de fogo que se distingue por detrás da cortina cinzenta da névoa matinal, agora a começar a desfazer-se com a chegada de mais um dia. Ainda o sol acaba de se levantar e já o mercado dá sinais de chegar ao fim.

A maioria das pessoas está a sair, não a entrar. Vão carregadas de bens, a pé, de bicicleta ou de mota. Os vendedores começam a arrumar as coisas, têm cada vez menos clientes interessados nos seus produtos.

 

Fomos ao pequeno-almoço, bem bom, estilo ocidental, para comer e atestar o depósito até não poder mais. Pagar o quarto e arranjar um transporte para ir a “little Bagan” e de lá directo para a estação de comboios.

Foram apenas três horas em Hsipaw, mas foi um sucesso. Adorei a cidade, se é que é uma. Mais uma vila, senão, uma grande aldeia. Como em todo o lado na Birmânia é um espectáculo observar as pessoas e as suas actividades.

O transporte era uma carrinha de caixa aberta, adaptada para o transporte de passageiros. São os táxis por estas paragens, versáteis, que podem fazer ligações colectivas ou serviços privados. Correu bem, foi engraçado, atravessar Hsipaw “na caixa”, depois percorrer alguma distância em espaço rural, antes de chegar a “little Bagan”, nome dado a um complexo religioso nos arredores.

Poderia ter andado, são cerca de 2 km, mas para isso precisava de tempo que não tinha. Foi um bom detalhe. Um lago, com uma ponte de madeira que leva a um Buda com uma concepção bem diferente do habitual, num estilo “realístico”. E depois os templos centenários, alguns deles, pequenos, com a vegetação a envolvê-los… devem ser ainda mais bonitos na época das chuvas.

Mas o melhor é o que tem uma árvore a sair-lhe do topo. Uma visão sem dúvida original. Bem, entretanto tinham-se escoado os vinte minutos de espera negociados com o taxista e estava portanto na hora de seguir para a estação.


 

Já não havia bilhetes de upper class, terão que ser ordinary class, bancos de pau portanto, o que teoricamente não seria a escolha para uma viagem de umas 15 horas. Num gabinete com uma mão cheia de estrangeiros o chefe de estação vai procedendo ao ritual acto da emissão de bilhetes, onde não falta o ajudante para a inscrição de nomes e números de passaporte num livro de registo. Cada coisa a seu tempo, parece ele dizer, enquanto pausadamente explica em detalhe os procedimentos de embarque a mais uns clientes estrangeiros.

Na estação vende-se fruta, há pessoas que esperam já pelo comboio. À hora, chega. Embarcamos. No nosso lugar um avô mal encarado e um neto irrequieto. Ficamos por perto, mas assentos mais agradáveis. Mesmo atrás, as camas do pessoal do comboio, os “engenheiros de bordo”. Debaixo dos bancos há material de reparações. É imperioso. Outro viajante diz-me que nesta viagem, seguia num comboio onde um vagão descarrilou. Nada de sério. Passado duas horas estavam de novo a caminho. O pessoal simplesmente repara tudo.

A viagem começa e como sempre é adorável. Pelas janelas desfila a Birmânia e os olhos trabalham sem cessar. Durante uns quilómetros a presença humana é intensa. Depois instala-se a ruralidade, chega a monotonia e a atenção solta-se já do mundo que corre lá fora. Vão ser muitas horas. Lê-se um bocado. Na ocasional paragem vem-se até ao exterior esticar um pouco as pernas. O comboio apita sempre antes de partir e dá um tempo para os passageiros regressarem. Há as vendedoras que acorrem aos vagões, cargas misteriosas, refrões exóticos.

Aproxima-me a ponte. Famosa, arrepiante. Via-a num documentário sobre admiráveis viagens de comboio, uma produção francesa. E esta é mesmo uma grande viagem ferroviária. Esta ponte é um atractivo, há pessoas que fazem este percurso só pela travessia. Foi construída por um consórcio norte-americano no início do século XX e hoje a sua estrutura começa a levantar preocupações. O comboio passa a uma velocidade reduzida. A passo humano. O aço range. E depois fica para trás. Veremos de novo a ponte à medida que a composição evolui num ziguezague montanha acima.

Eventualmente o nosso vizinho de viagem desperta de uma soneca que lhe levou toda a manhã e boa parte da tarde e começa a falar. E começando não há como o parar. Cidadão do mundo, vagamente inglês, está em viagem perpétua, financiada pela renda do seu apartamento londrino. Já esteve m todo o lado, sempre mais de uma vez? Síria? Visitada cinco vezes, sim senhora. E isto, e aquilo. Tudo menos a Europa, como se estivesse a ser deixada para o fim.

O tipo tinha um aspecto um bocado macabro, é o que me ficará na memória, para além das estórias. Como se fosse um assassino profissional. Um Dia Hard genuíno, que entre as 9 e as 4 não tocou em comida nem bebida. Quando o revisor veio – esse bonacheirão de riso faro e sorriso permanente, nem se atreveu a interromper o sono daquele estrangeiro… bem que me ofereci para o acordar, mas não… que deixasse o estrangeiro repousar…

E com isto o dia começa a chegar ao fim, a luz chega já mais dourada. Os camponeses regam os campos. Já vamos chegando a Pyin Oo Lwin. O nosso companheiro de viagem fica aqui. Mas para chegar a Mandalay teremos que esperar quase duas horas pelo comboio de ligação.

Tempo aproveitado para caminhar um pouco, que a temperatura está excelente. Corte de cabelo e barba por 0,70 Eur. Uma visiat ao mercado, uma mão cheia de tangerinas para o saco. Agora está na hora de um Myanmar Tea e tomado em estilo, num café muito hard core, onde na TV passam combates de algo que será talvez boxe tailandês, e rodeado de “colegas” que poderiam perfeitamente ser parte do espectáculo televisionado. Um daqueles tesourinhos de viagem.

À porta da estação um círculo de graúdos faz malabarismos com uma “bola” (é esférica, oca e feita de vime ou bambu). Um final de tarde em grande antes da última tirada de comboio. Serão cerca de quatro horas para ultrapassar 23 km em linha recta.

Na carruagem quase vazia onde vínhamos não havia luz e o piquete, constituído pelo polícia do comboio e pelo picas de sorriso perpétuo veio desalojar-nos com todas as reverências, para uma outra onde teríamos segurança.

Com a noite começa a tosse e sinto-me mal e doente. Tosse e mais tosse, cansaço, desconforto, só quero chegar. E chego, claro. Até mais cedo do que o previsto no horário. Mas muito mal tratadinho. Que bom que o hotel é pertinho da estação e já conhecido.
O quarto é melhor que o anterior, mas no estado em que estou nem consigo apreciar. Adormeço rapidamente, pelo menos isso.

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