11 de Outubro
Despeço-me de Lushnje e do bom do Kip. Está frio como seria de esperar aquela hora. Páro para comprar uns bolitos numa “pastelaria” que tudo o que tem são três travessas com três tipos de biscoitos. Depois, numa mercearia, compro um yogurte. Estou apetrechado para o o primeiro troço da viagem que quase atravessará a Albânia. O primeiro autocarro leva-me até Tirana, onde terei que me movimentar até outra zona para apanhar o segundo transporte, para Shkoder. Mas na capital tenho uma série de missões, todas cumpridas com sucesso: primeiro, levantar dinheiro – o que fiz, mas em excesso, conforme verifiquei na hora de sair do país; segundo, arranjar forma de carregar o telemóvel, porque as comunicações móveis em roaming aqui são um roubo… mas um roubo mesmo… 2 chamadas de alguns segundos e quatro ou cinco SMS esgotaram-me o saldo de mais de 9 Euros; terceiro, comprar mais qualquer coisa para comer para o resto do dia… e por fim, encontrar o sítio onde os autocarros para Shkoder saem de hora a hora, e de preferência sincronizar tudo para chegar um pouco antes da hora certa. E pronto, sucesso!
Nas três horas de viagem que se seguiram entretive-me a pôr a escrita em dia, e quando me aproximei da cidade foi amor à primeira vista. No topo, o ameaçador castelo, com umas letras a meia encosta a anunciarem a cidade… do outro lado, o grande lago que quase parece um mar, e os três rios que ali confluem… vou tomando notas mentais… uma estátua espectular, uma mesquita especialmente bela… barbeiro… e chego ao centro. Agora a aventura é encontrar a casa dos meus anfitriões, um casal de americanos, colegas do Kip e do DeVaughne, voluntários na mesma organização. Tenho indicações de como lá chegar, mas apenas a partir do Cafe Flo, que tenho que encontrar sem ajudas… assumo que é um ponto central de Shkoder, e isso é-me confirmado na página Facebook do café: “o café mais conhecido de Shkoder”. Está bem está… pergunto a um casalinho de adolescentes… não conhecem… um amigo de ajudar que fála inglês vê-me a pedir indicações e aproxima-se, mas também não conhece… vou seguindo os meus instintos e de facto encontro o café, quase por milagre, o último de uma bela rua pedonal. E com isto esqueci-me de descrever a continuação da impressão positiva de Shkoder! Que cidade simpática, tão diferente da austeridade presente em todo o lado da Albânia. As pessoas tem um astral bem mais elevado, a arquitectura é diferente, muito influenciada pelas correntes italianas… aqui não há casas de tijolo por rebocar.. existem, de facto, blocos em estado degradado, mas fora isso a cidade emana um charme até então não encontrado no país. Diz-se que aqui toda a gente fala italiano, e de facto a influência sente-se por todo o lado… nos muitos cafés, a maioria da música que passa é italiana… e há livrarias… e muita gente de bicicleta. Penso que lhe poderia chamar a Amesterdão albanesa. Toda a gente anda de bicicleta… novos e velhos, homens e mulheres… sobretudo de manhâ e ao final da tarde, a ir e vir do trabalho, uma azáfama constante de velocípedes a girar.
Dou com a casa, espero um pouco e aparece o Terry, sorriso caloroso… gosto… e gosto também, da casa. É um condomónio fechado, mas que não se pense em modernices…. é uma espécie de “páteo da cantigas” à albanesa, só que o portão está fechado e é preciso chave para entrar. O dono original do espaço construiu algunms apartamentos numa configuração muito agradável, e agora vivem ali felizes e em alegre convivência quatro ou cinco famílias mais os meus novos amigos.
Não quero ser rude, mas a cidade chama-me. O tempo será curto porque decidi ir no dia seguinte a Kruja, por isso, para além dos tempos marginais, das sobras, não tenho nenhum dia completo para explorar Shkoder, que tanto me agrada. São quatro da tarde quando saio, depois de me aguentar à conversa um pouco, como convém. Destino: o castelo. Os meus anfitriões são uma fonte inesgotável de conhecimento, e o Terry é daquelas pessoas que sabe dar indicações, com precisão e cuidada gerência de informação. O essencial e de forma concisa. Ele fala-me em apanhar um autocarro, mas descarto a sugestão. São uns quatro quilómetros para cada lado mas sinto-me bem e quero ver. Ainda por cima, pelo caminho, ficam as coisas notadas à chegada. A primeira é a grande estátua.. só sei que é grande e interessante, mas não faço ideia da sua história e de quem representa. Depois, a mesquita, que é de facto bonita, mas nada fotogénica. A reza está a acabar e uma multidão de meninos energe do interior com toda a agitação própria da idade e corre para o edíficio adjacente, que descubro ser uma escola teológica,. Por assim, dizer, “talibans”, portanto.
Passo junto a dois bairros de ciganos, onde vejo muita pobreza. E não só por parte da comnunidade específica… também há albaneses por ali… casas decrépitas, o sempre presente comércio incipiente,de sobrevivência. Num dado ponto o cheiro a urina é tremendo, traz-me a memória dos cheiros de um zoo. Na rua há homens que jogam… nem sei o quê. E nisto estou no desvio para o castelo. Naquele pedacinho divirto-me: primeiro, uma escola primária com mais um memorial aos partizans; depois, um homem acumula feno em cima de uma carroça e trocamos algumas palavras… ele pergunta se trabalho para a TV… na Albânia, se um tipo carrega uma câmara mais a sério, então é porque trabalha para a televisão… digo que não, que sou turista… de onde… de Portugal… entusiasmo, Portugal parece agradar… e sigo… logo à frente, um velhinho encarrapitado sobre as vinhas que se enrolam numa estrutura vai experimentando os bagos, desdentado, com ar traquinas de macaquinho… quando olho para ele, acena-me, e eu retribuo o gesto.
Já estou no acesso final ao castelo. Entro no primeiro túnel. Encontro a bilheteira, mas como só tenho uma nota de 5.000 Lek sou dispensado de pagamento. Se fosse em Portugal tinha-me mandado ir trocar, mas ali sou convidado a entrar, e agradeço com um sorriso e uma pequena vénia. Bestial! E eu que pensei em não vir ao interior para poupar estes 200 Lek (e também porque de fora o castelo parecia-me desinteressante). Não podia estar mais errado, e não só pela poupança. Aquela hora e sem absolutamente ninguém no interior a experiência é excelente. As vistas são espectaculares, não só pela elevação das ameias mas porque a envolvência é de facto interessante, com o enorme lago que parece o mar, os rios, os minaretes que cortam o horizonte aqui e acolá, os campos lavrados, muito verdes. Shkoder deve ser fértil, pelo que vejo… e não poderia deixar de ser, considerando os problemas com as cheias… ainda este ano toda a parte baixa foi arrasada, tornando ainda mais sérios os problemas daqueles bairros já tão pobres.
Exploro os três sucessivos páteos do castelo, incluindo aquele em que se encontra uma impressionante ruína de uma igreja bizantina, que me faz pensar nas “cidades perdidas” da Síria. No último, onde se encontra o que foi o bloco de alojamento de oficiais, existe um bar-restaurante que abre na época alta ou quando espera maior afluência de clientes. Não era o caso de hoje, claro. Apenas o zelador do espaço que ao passar por mim revela a preocupação por aquilo que pensa ser a minha carteira estar no bolso de trás das calças.. não sei se pensava que podia cair ou ser roubada, mas de qualquer modo era apenas um bloco de notas… fica a nota de simpatia.
Quando volto, em direcção à saída, já encontro um casal de visitantes locais, e, quase junto ao portão, um grupo grande de turistas alemães. Sai em boa hora. Regresso com passo certo a casa, já a cair a noite. Ainda penso em entrar num barbeiro, mas algo me impede. Será forretice? Será o medo de ter uma navalha manuseada por alguém que não eu a passar-me pela pele? Depois páro numa mercearia para comprar fruta… trago bananas, maçãs, uvas e uma fruta que não conheço… fico com a impressão que o dono me cobrou dinheiro a mais, mas depois de tantas situações já começo a ser paranóico. De novo, o nome de Portugal:o homem diz-se fã da Selecção Nacional, e a provar, a única foto nas paredes da loja é de um jogador português, que não identifico. Na TV passa uma novela brasileira, e sinto o quanto estranho é ouvir a minha língua depois de duas semanas sem qualquer contacto.
Depois de largar as coisas em casa e de comer alguma da fruta, saimos juntos… os anfitriões vão jantar, eu vou procurar onde ver o Dinamarca – Portugal. Está na hora do “giro” e as ruas estão cheias de movimento. Para além dos usuais cafés, os albaneses adoram casas de apostas, que geralmente vendem umas bebidas e têm uma série de televisões a passar jogos diferentes. O meu azar é que à mesma hora jogava a selecção albanesa. Por fim, desisti e entrei num bar mais recatado, decidido a beber uma cerveja e ver um pouco de futebol, fosse ele qual fosse… o tipo cobrou-me logo 200 Lek por uma cerveja marcada 120 Lek. Pronto, sentei-me… a Albânia estava a ganhar 1-0 à Roménia. O intervalo chega e eles procuram outra coisa para ver… passam pelo jogo de Portugal e peço para deixarem estar. Estamos a perder e recebo uns sorrisos gozões… vejo os 15 minutos que dura o intervalo dos da casa, mas também, para ver mais da miséria que vi, não vale a pena. Conformado, assisto a mais um pouco do jogos dos albaneses, e depois despeço-me e saio. Mais à frente um café tinha uma sala às moscas com uma TV a passar o nosso confronto… mas como disse… aquilo estava mau demais, perdi o interesse… acabámos por perder 2-1, e os albaneses deixaram-se empatar.