26 de Outubro

Desço à cidade com o Peter (outro Couchsurfer, sueco) decidido a explorar a parte ocidental da cidade, que pouco tem para ver segundo os parâmetros habituais do turista. Ele vai ao vale das pirâmides, pelo segundo dia consecutivo. O nosso amigo escandinavo está obcecado pelo local. Pirâmides, as primeiras encontradas na Europa, escondidas debaixo de um manto de terra, formando colinas naquele formato característico. O Oliver não acredita nessa teoria… e a mim simplesmente não me interessa, mas o Peter fala nelas sem parar. Penso para com os meus botões como detesto andar com alguém quando viajo. O caminho até à divergência para a estação de autocarros é feito com ele, e durante todo esse tempo não consigo apreciar nada como gosto, com olhos de ver. Passam-me em frente aos olhos diversos motivos dignos de fotografar, mas com companhia é impossível. A frustração cresce e só começa a aliviar quando fico enfim sozinho. Estou na ponte onde a primeira vítima daquilo que viria a ser o longo cerco de Sarajevo sucumbiu. Naquele sexto dia de Abril do ano de 1992 uma enorme multidão reuniu-se nas ruas de Sarajevo para protestar contra a maré nacionalista que ameaçava a convivência entre os membros das comunidades presentes na cidade (bósnios de origem croada, sérvia e descendentes dos que se converteram ao Islão durante a ocupação otomana). Quando a multidão atravessava a ponte, atiradores sérvios colocados em edíficios próximos abriram fogo, matando Olga Sucic e Suada Dilberovic e mais quatro pessoas. Foram capturados, e seguidamente libertados em troca do comandante da escola de polícia bósnia, que estava captivo desde a véspera.


Dali parto à descoberta do antigo cemitério judeu, localizado na colina que se estende para sul, e que é o segundo maior do seu género, a seguir ao de Praga. Foi um dos pontos altos desta visita. Um local encantador, cheio de charme, com o ambiente sublinhado pelas nuvens baixas que cobriam a cidade. Uns turistas franceses vinham a sair quando cheguei, e, depois, fiquei sozinho, com os mortos. Algumas das lápides foram danificadas durante a guerra. Umas, drasticamente partidas de forma irremediável pelo fogo de artilharia, outras, simplesmente cravejadas de balas ou estilhaços. As folhas de Outono que cobriam o solo emprestavam ao espaço um toque de cor inesperado, contrastante, criando um cenário bucólico, no qual as pedras tumulares, brancas, contrastavam com o solo amarelo e alaranjado de onde emergiam, pintalgado pelo verde da relva que aqui e acolá ainda se fazia ver.



Volto ao eixo do vale que constitui a artéria principal de Sarajevo. É ali que correm os eléctricos e os “trolleys” que distribuem as pessoas de este para oeste, de onde depois, em diversos pontos, apanham pequenos autocarros que fazem os percursos entre a espinha dorsal da cidade e os bairros espalhados pelos montes circundantes. Caminho por um passeio dominado pelas enormes árvores cujas folhas decadentes pintam o solo com as cores quentes de Outono e penso como estão crescidas… são árvores novas, como o são quase todas por aqui. As outras, antigas, foram derrubadas durante os anos de cerco, para providenciar precioso combustível durante os meses gélidos daqueles três invernos.

Visito pontos importantes da batalha de Sarajevo. O tristemente famoso “Snipers Alley”, o Holiday Inn, as casernas onde os combatentes locais mantiveram encurralada a unidade local do Exército, já por essa altura alinhado com a facção sérvia, mais tarde autorizada a partir em segurança, na sequência da detenção do lider muçulmano, Izebegtovic, no aeroporto, quando chegava da Cimeira de Lisboa. Hoje, o espaço divide-se, entre as casernas arruinadas, com paredes cobertas de “graffiti”, e as que foram recuperadas e são agora um campus universitário.


É hora de ir regressando ao centro. Ando por ruas desconhecidas. Vejo a chama eterna que arde em memória dos que tombaram durante a Segunda Guerra Mundial, e passo por um parque onde campas se econtram espalhadas, como se nada fosse, integrando-se na paisagem, cruzada constantemente por cidadãos comuns, onde se vê muita juventude. O cenário demográfico da cidade tem algo de estranho, e a solução chegou-me subitamente: vêem-se muitos idosos e muita juventude, mas faltam pessoas de meia idade. Consequências da guerra, da mortandade daqueles anos e da imigração que acompanhou o conflicto e se lhe seguiu? Chegou a fome e a necessidade de usar Internet. Vou repetir o truque de ontem. Almoçar em frente ao Havana e usurpar-lhes a rede wireless.


De barriguinha cheia estou pronto a entrar numa nova fase de exploração. Quero subir a colina para nordeste do centro, onde vejo, cá de baixo, o palácio que foi quartel-general dos ocupantes austríacos, quem sabe, chegar à fortaleza que mais ao longe fez parte do complexo muralhado que defendeu a cidade em tempos onde uma pilha de pedras contava para alguma coisa. A rua que segue naquela direcção, vinda da praça antiga, é só por si merecedora de uma visita, com as suas lojinhas ancestrais e o fluir de pessoas que descem à cidade vindas dos bairros residenciais.

A subida acentua-se e nessa face da colina existe mais um cemitério, que me impressiona bastante mais do que o que é recomendado nos painéis turísticos existentes na baixa. Um curso de água corre pelo seu meio, condicionado por um rego feito de calçada, ladeado pelas vias pedestres. A seguir, passo por um arco, uma das antigas portas da cidade, e mais acima, quando o ângulo se atenua, surge um bairro que se sente ter uma personalidade própria. Há um largo, fervilhante de vida, com lojas de todos os tipos, alguns táxis estacionados, muita gente que caminha em todos os sentidos. Mas algo está mal… o palácio… quero encontrar o palácio, que por esta altura se deve encontrar à minha esquerda. Sigo o instinto e dou com uma parede que sem dúvida marca o perímetro da antiga área militar. O local é fascinante mas ardo em frustração. Não consigo encontrar um ponto de entrada. O portão de acesso encontra-se trancado com uma corrente e cadeado. Pondero trepar, o que não seria complicado, mas estou cansado por um dia feito de muitos quilómetros, temperados com o esforço adicional de trepar por aquelas colinas acima e abaixo. Dou a volta completa ao perímetro mas tudo está escrupulosamente selado. Tiro as fotografias que posso, e afasto-me, resmungando.


Páro ainda por uns momentos no terraço que se encontra um pouco abaixo do nível do palácio, o sol vai baixo, e ali apenas dois pares de namorados vivem o seu momento de romance, com a cidade lá em baixo. Apanho-os em contraluz, enquadrados com os esqueletos das árvores que foram rápidas e por esta altura já se despiram para a época que se segue.

E pela frente tenho uma longa caminhada. É a primeira vez que subo os montes em direcção a casa pelo melhor caminho e sem incidentes (no primeiro dia perdi-me e no segundo fui de táxi). É cansativo mas faz-se bem, e, estranhamente, dá-me prazer. Não sei se é a sensação de merecer a chegada, se a mutiplicidade do que se vai observando, se o ar fresco que desce da montanha, mas gosto destas “escaladas”.

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