2 de Outubro

O meu anfitrião deveria viajar pelas 5 da manhã para Sarajevo. Foi assim com algum espanto que ouvi ruído na casa quando abri os olhos, pelas sete e tal. Talvez um dos amigos que na véspera fizeram serão tivesse ficado para dormir. Mas não. Como já me tinha passado pela ideia, o amigo Cocho deixou-se dormir e assoma-se à porta do meu quarto com uma face sonolenta e sorridente, de menino apanhado. Agora é que vão ser elas. As Nações Unidas pagaram a passagem e agora é preciso autorização para um novo bilhete, de emergência. Bem, deixo-me ficar um pouco por casa, como com calma, ponho o expediente em dia. E durante tudo isto, ele ronca no sofá. Já farto de ouvir serrar, acordo-o para lhe dizer que vou dar uma volta e saio.


Nesta manhã as botas ficam em casa e delicio-me com o caminhar fresco nos chinelos. Vagueio ao sabor dos impulsos, sentindo a cidade. Tem uma aura que não me é estranha. Podia ser uma metrópole búlgara, com os seus edíficios de linhas socialistas, a língua, eslava do sul, os escritos em círilico, e os albaneses, que vêm substituir nesta paisagem urbana os ciganos do país vizinho.

Dou comigo a entrar no bazar, local da farra de há duas noites. Acabo mesmo por encontrar casualmente um dos bares onde parámos. O que vi naquele bairro foi já novidade. De súbito, sai de uma capital de um país outrora comunista e entrei no mundo oriental, com as suas mesquitas, e os velhores de cabeça coberta, pele enrugada, à conversa nos bancos de rua ou nos cafés, alguns jogando xadrez, outros simplesmente observando. As lojas ainda estão a meio gás, muitas fechadas, outras a serem preparadas para o comércio domingueiro. Atravesso aquela que penso ser a rua principal, e quando chego ao fim encontro o novo mercado, como estamos habituado a vê-los com as barraquinhas alinhadas a venderem um pouco de tudo. Volto para trás, desta feito por uma outra artéria, mais timida. Delicio-me com o carácter ancestral de alguns dos estabelecimentos, especialmente os barbeiros, já com clientes aquela hora da manhã.


Aproximo-me das muralhas da fortaleza, avisado pelos meus amigos de que não poderia visitar. O local está encerrado há alguns meses e assim vai permanecer. Mas circulo por ali, chego à entrada, barrada com um sólido portão, e aprecio a vista geral da cidade, com um belo estádio mesmo à minha frente. Quando a Selecção Nacional voltar a enfrentar a Macedónia, agora sei exactamente onde irão estar a jogar. O passeio está a chegar ao fim. Torno a descer em direcção ao centro moderno, atravesso uma ponte, e chego à praça já conhecida, com o monumental cavaleiro. Ali, sento-me um bom bocado a usufruir da Internet livre que se encontra disponível em toda a zona central de Skopje, cortesia do ISP local.

Antes de regressar a casa informo-me sobre o comboio para Pristina. Sai todos os dias às 16:35, mas depois da fronteira tenho que comprar outro bilhete ao revisor kosovar. No total serão uns 4 Eur. E com esta informação vou encontrar o Cocho que acabou de limpar o lar e sua a bom suar. Ficamos por ali a fazer tempo… ele, adiantando algum trabalho para a conferência de Sarajevo, para a qual já arranjou um bilhete de autocarro para as 8 da noite… eu, a preparar-me para o próximo segmento da viagem, a comer, enquanto ligo algum equipamento à carga.

Despedimo-nos e vou para a estação de comboios, que, por assim dizer, fica no mesmo edíficio do que a central de autocarros. Na bilheteira está uma mulher menos comunicativa ou menos simpática que a da manhã, que me manda comprar o bilhete no comboio. O quadro de chegadas e partidas está todo em cirilico e não vejo nada que se possa parecer com Pristina, e muito menos a partir da linha 3, que foi o que entendi ela ter dito. Andei por ali, matutei na vida… pelo sim pelo não fui lá abaixo perguntar a que horas era o último autocarro.. às 20:00… portanto tenho um plano B… de novo para cima… ainda falta uma hora e meia para ver o que sucede… e nisto decido mas é ir de autocarro, como toda a gente aconselha, e despachar o problema. Claro que por principio prefiro o comboio, mas naquela situação mudei o plano, até porque tinha dinheiro macedónio um pouco em excesso e se fosse de comboio ainda mais ficaria, considerando que metade do bilhete seria pago em Euros, a moeda oficial do Kosovo.

Passar a fronteira foi rápido, e a viagem prosseguiu, com os carros da KFOR e da Comunidade Europeia a ultrapassarem o nosso autocarro. Skopje é um destino de fim-de-semana para o pessoal da NATO, das Nações Unidas, da Comunidade Europeia e de toda a restante cambada que está destacada no Kosovo. É vulgar ver-se os seus carrões e jipes luxuosos parqueados pela cidade, e digo-vos, não é uma coisa bonita. Num mundo em crise económica e sobretudo numa região especialmente pobre, haveria que ser mais contido na ostentação, até porque são contribuintes, de onde quer que seja, que estão a financiar este estilo de vida. Eu imagino as verbas que são esbanjadas no processo de alimentação de todo este aparato internacional.

Eu esperava que o Kosovo fosse um país estranho, mas depois de três horas as surpresas superaram todas as expectativas. Logo na fronteira, um guarda aparece, troca umas palavras com o condutor do nosso autocarro…. nos ombros as divisas, que são exactamente as que são universalmente utillizadas por oficiais da Marinha. Iguaizinhas às minhas, de Segundo-Tenente; só que o pobre guarda fronteiriço não está na Marinha e certamente não é oficial… como é que foi decidido que os guardas de fronteira do Kosovo fossem usar galões de oficiais da Marinha é algo que nem quero imaginar como sucedeu.

O autocarrro retoma a estrada e vejo o primeiro vestígio da guerra… uma casa que em algum dia foi incendiada, a partir de dentro…. em ruínas, um cadáver. Enquanto nos aproximamos de Pristina, reparo numa estranha repetição: como que num reflexo que por aqui grassou, multiplicam-se ferros-velhos repletos de carros destroçados, carcaças amachucadas, em estados de degradação em toda a gama… como e porquê? Vi dezenas de locais destes, é incrivel como é possível um país tão pequeno gerar tamanho número de viaturas destruidas… havia-os até especializados em veículos pesados. À beira da estrada há pobreza, gente sentada de olhar vazio, carroças puxadas por burros, tractores do tempo da II Guerra… e de repente, um stand Mercedes de aspecto imaculado como se por uma fracção de segundo me tivesse transportado para o Salão Automóvel de Frankfurt para regressar ao Kosovo e aquilo que parece a Europa dos anos 30 logo de seguida. E isto repete-se. Casas inacabadas cheias de gente, quase ruínas, sujas, pobres… e mais uma instalação comercial a brilhar, sem um grão de poeira no telhado…

Pela estrada, de tempos a tempos existem sinais de trânsito com limites de peso. Mas no Kosovo vi uma variante nova: existem limites para carros de combate, claramente desenhados nos sinais, assim como nas nossas estradas se vêem aqueles desenhozitos simplórios ilustrando bicicletas ou tractores. Tanques! Há sinais de trânsito para tanques no Kosovo. Depois, quando nos aproximamos de Pristina começo a notar umas manchas negras em todas as tabuletas com nomes nas direcções. Consigo entender! No Kosovo as indicações são dadas nas três línguas oficiais: Albanês, sérvio e inglês. Mas a parte em sérvio é metodicamente eliminada, tapada, pintada, coberta. E onde se indicava a direcção para Belgrado, uma enorme cruz deixa visivel o que havia por baixo em albanês e inglês, mas torna claro que aquele local não existe, pelo menos numa perspectiva kosovar.

Chego a Pristina. O meu telemóvel não consegue captar rede apesar de na teoria existir “roaming”. Portanto, aproxima-se o fim do dia e estou na estação de camionagem, que por sorte pertence ao universo de coisas imaculadas e ultramodernas deste país, sem forma de comunicar com o meu anfitrião que parece viver no lado oposto da cidade. Pefeito. Podia apanhar um táxi mas não quero. Táxis são contra as minhas convicções de viajante, um mal demoníaco ao qual só cedo quando não existe mais nenhuma hipótese. E depois, também não vejo nenhum por ali. Como estou numa estação supermoderna, descubro que tenho Wi-Fi pública, enquanto a dezenas de metros haverá familias sem água e sem electricidade em casa. Mas o acesso à net não resolve o meu problema.

Aventuro-me por fim, seguindo o GPS, sem grande convicção. A coisa vai correndo bem. Dou comigo na avenida Bill Clinton, onde o ex-presidente americano tem até direito a estátua e outras honrarias. Depois avanço, por onde me parece melhor,considerando o mapa desactualizado que vou vendo no GPS. A noite já caiu, e em Pristina a iluminação pública varia entre a mediocridade e a inexistência. Algumas tampas de esgoto simplesmente não existem, mas felizmente as que encontrei assim, foi ainda quando havia alguma luz natural. Aproximo-me do bairro do meu anfitrião, mas o local é labirintico. Quando vejo um tipo com ar…. ia a dizer europeu porque entretanto me esquecio que o Kosovo é Europa… mas pronto… com ar de alemão ou algo assim, e pergunto-lhe pela embaixada da Grécia, que é na rua que procuro. Alivio! É mesmo ali à frente. Pouco depois chego ao portão certo. Bato à porta. No primeiro andar uma senhora muçulmana (de cabeça coberta) faz-me perceber por sinais que o Roberto é cá em baixo. Bato então à porta de baixo, sem me aperceber que continuo a flagelar a tranquilidade da família, porque aquela é a porta deles. Felizmente um familiar masculino que fala inglês e que é extremamente simpático vem cá abaixo. Que o Roberto vive ali, na casa deles, mas num anexo, e que lhe parece que ele não está. Não, não está. Eu explico a situação. E ele pega no telefone e liga. Maravilha! Falo finalmente com o Roberto. Oh não! Só chega a casa dentro de duas horas. Estou carregado, já é de noite e estou numa área de alta segurança, com embaixadas e organismos delicados a cada esquina. O senhor que me ajudou fala-me num restaurante, mas percebo mal as indicações e vou no sentido oposto. Páro para comprar uma garrafa de água numn quiosque, do qual o proprietário me explica como encontrar o taol Pinocchio. Simples. Finalmente posso descansar. O estabelecimento é um restaurante de luxo, com vista para a cidade, esplanada e interior iluminado a velas com piano como música de fundo. E os preços? Os pratos mais requintados, como salmão fumado com manga, a rondar os sete Euros! Belisquem-me, isto não pode ser verdade. E aqui estou, a beber um “raki” por 1,5 Eur, com Internet à vontade, e a matar tempo para a chegada do Roberto.

P.S. – É muito bizarro estar num local tão pouco europeu e pagar as contas em Euros.

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