5 de Outubro
Acordo fresco de uma noite bem dormida. São cerca das 9 horas. Preguiço um pouco antes de descer a ver o hostel à luz do dia. Verifico e-mails e as coisas do costume, dou uma arrumação nas tralhas. O local é ainda mais encantador de dia, com os raios de sol a iluminar detalhes, como focos de luz recaindo sobre as estrelas no palco de um teatro. O pequeno-almoço sabe bem… fatias de pão, doce de figo e de cereja, queijo, leite, chá, ovos cozidos… é tirar o que se quiser e comer onde apetecer. Pode ser mesmo ali na cozinha, ou lá fora, ao ar livre, numa mesa, ou simplesmente sentado na relva. Sei por experiência há muito adquirida que não há pressa em se começar um dia, porque o corpo não aguenta o esforço que seria exigido pela caminhada constante das horas de luz solar. Assim, dois dedos de conversa aqui e acolá, refeição matinal calmamente ingerida, informações recolhidas, ponho-me a caminho para a descoberta da outrora cidade proibida.
Descobri durante a preparação matinal que o hostel está deliciosamente perto de um local que não contava visitar, não porque não me interessasse, mas porque considerava demasiado distante. Estou a falar do monumento Mãe Albânia, e do cemitério dos mártires da pátria. Ali foi sepultado Hoxha, o ditador de tantos anos, o nome grande do regime comunista durante décadas. Mas do seu túmulo só resta o espaço, porque em 1992 foi trasladado para o cemitério comum, do outro lado da cidade, aliás, nos subúrbios. Quanto a esse ainda pensei em lá dar um salto… dei um trabalhão à Malvina, que com a sua mãe pesquisaram exaustivamente no Google Maps até mo detectarem. Mas era de facto demasiado longe, demasiado complicado, e abandonei a ideia. Mas voltemos à narrativa deste primeiro dia em Tirana. Para chegar ao monumento caminhei cerca de 2 km por uma estrada cheia de movimento, por vezes sem bermas e muito menos passeios. Entrei pelo acesso errado e fui dar de caras com a embaixada da Líbia, onde o polícia de turno e o segurança local gentilmente me indicaram o caminho correcto. Lá em cima, practicamente ninguém. Nas escadarias de acesso ao gigantesco monumento estava um grupo de raparigas à conversa; lá dentro, um velhote alimentava os pombos e uma brigada de jardineiras deixava-se simplesmente estar debaixo de uma sombra. O cemitério dos mártires é monótomo e desinteressante, uma colecção incessante de campas iguais, honrando os principios igualitários da doutrina que defenderam em vida. Apreciada que estava a vista da cidade,
A descida foi feita apenas até meio caminho, porque ai internei-me no grande parque que inclui um vasto lago artificial, construido para deleite da população nos tórridos verões de Tirana. Primeiro caminhei hesitantemente, porque o acesso que escolhi tornou-se num estreito trilho, mas depois confluiu para um caminho mais sério, onde avistei gente. Estava na direcção certa. Para além de um bem-vindo passeio pelo parque, tinha uma intenção clara: queria encontrar o cemitério britânico, um pequeno espaço com os túmulos dos militares que pereceram em terras albanesas durante a II Guerra Mundial; são maioritariamente homens das operações especiais, colocados na Albânia para ajudar a organizar a resistência contra os ocupantes italianos e alemães. Mas também algum pessoal da força aérea, cujas missões nos céus balcânicos terminaram tragicamente. Bem perto, vêem-se os túmulos de quatro elementos de destaque do movimento revivalista albanês do século XIX… mas a surpresa está do outro lado do pequeno recinto: um monumento aos soldados alemães mortos nesses anos de guerra.
Segui com a passeata, atingi o lago. Por ali existem cafés e esplanadas, vendedores e máquinas de diversões. Uma jovem mulher diz-me qualquer coisa em albanês. Olho para ela. Está sentada num banco com uma balança doméstica aos seus pés. Vendo que não a compreendia, repete a mensagem, num inglês hesitante mas correcto: “Quer-se pesar? É só 1 Lek.” Respondo instintivamente que não. Mas devia ter aceitado. 1 Lek são 0,07 Eur. Achei tudo aquilo bizarro, mas com o tempo compreendi que é um negócio usual.
Já estava cansado. Sentei-me numa esplanada toda fina. Pedi uma água grande. Passado uns instantes um homem com ares de gerente veio-me pedir desculpa, mas que a água grande era muito mais cara, e se mesmo assim eu a queria. Ok… quanto mais cara? Ah.. são 250 Lek. 250 Lek são cerca de 2 Eur. Ò homem venha de lá essa água grande “cara”. O que sei é que estava deliciosa. Muito fresquinha, em garrafa de vidro… e importada da Toscânia, Itália. Dai o seu preço extravagante.
Retemperadas as forças iniciei o périplo urbano que tinha preparado antes de sair de casa. O primeiro destino, que estava ali mesmo à mão, foi o “bloco”. Esse era o nome dado pelos albaneses comuns à zona de Tirana, localizada no centro, que estava vedada ao comum dos mortais. Ali apenas tinham residência e entrada os membros mais destacados do Partido, incluindo, claro, o próprio Hoxha. Aquela que foi a sua casa não está identificada e foi parcelada. É ocupada por um organismo governamental, por um café finório e por uma escola de línguas. Mas consegui-a identificar graças às indicações do guia Bradt para a Albânia. É uma grande casa, com uma arquitectura que não destoaria num dos bairros de vivendas construidos em Lisboa nos anos 50-60 do século XX. Ali consegui sentir os murmúrios dos fantasmas do passado, imaginar o velho Hoxha, acariciado pela sua sua família, passeando nos jardins que rodeiam a vivenda. Como seria a vida ali? O que veria eu se me tivesse materializado no mesmo local há 30 anos atrás?
O “bloco” é feito de contrastes, como toda a cidade. A par das casas originais, que um dia foram ocupados pelos poderosos do regime, erguem-se modernos edíficios, já de outra geração, que retiram o ambiente especial, restrito, apenas do conhecimento de quem se lembra ou leu aceca do assunto. A caminho do centro passo junto à pirâmide, que vislumbrei na véspera, quando me dirigia para o hostel. A pirâmide é uma excêntrica construção, desenhada pela filha e pelo genro de Hoxha, ambos arquitectos, e que foi criado para albergar o museu dedicado à vida do velho ditador. Claro que actualmente nada disso se encontra por ali. Deixado ao abandono, a pirâmide não é desejada por ninguém, interessando apenas aos turistas com um interesse mórbido pelo passado negro do país. Existem rumores de que mais tarde ou mais cedo a pirâmide será demolida, mas nada se sabe de concreto.
De seguida, um dos momentos altos da estadia em Tirana, fruto daqueles golpes de sorte que trazem uma experiência única. Caminhando em direcção à famosa praça Skanderbeg, o mais celebrado herói nacional, vislumbro algo escondido por detrás do edíficio que vim depois a saber tratar-se de uma galeria de arte…. olá… o que é aquilo… aproximo-me e descubro quatro estátuas comunistas. Mas, mais notável do que isso, duas delas representam figuras excomungadas pelo regime de Hoxha: Lenine, e sobretudo Estaline. Tiro fotos sem parar, de todos os ângulos. Sei que estou perante um achado raro para um turista, num país que fez questão em se desembararaçar de todos os símbolos daquele passado. A descoberta sarou rapidamente a frustração sentida ao descobrir que o hotel Dajti, practicamente o único digno de nome durante grande parte da segunda metade do século XX, se encontrava em obras, com os taipais a obscurecer a fachada. Bom para o hotel, que se encontrava votado ao abandono desde 2005. Má sorte a minha.
Passo por uma ruazinha simpática, atraído por uma placa que aponta pomposamente para o Castelo de Praga, algo de que nunca tinha ouvido falar, e que de facto se revela uma farça. Valeu pela calma daquela artéria, ladeada por árvores altas que a emergem numa contínua sombra refrescante. Dou de caras com a principal mesquita de Tirana, localizada a poucos metros da torre do relógio, constintuindo-se o conjunto como uma raridade: ambas as estruturas são do século XVIII, e são dos marcos mais antigos da cidade. A mesquita tem elementos decorativos de grande beleza, quer no exterior quer no interrior. E, espreitando lá para dentro, fui apanhado pelo simpático guardião, que me convidou a entrar, a ver, a explorar.
É então que se dá o momento de maior infelicidade destes dias de Tirana: descubro que o centro da praça se encontra em trabalhos de renovação, e que a fachada do Museu de História, que durante semanas ansiei fotografar, se encontra, também ela, obscurecida pelos taipais das obras. Paciência. Valeu a descoberta do mounumento ao guerrilheiro comunista, numa praja adjacente, e o esplendor colorido dos edíficios governamentais que ladeiam a grande alameda central, construidos pelos italianos antes da II Guerra Mundial e recentemente devolvidos às suas vivas cores originais. Valeu-me também as ruas e ruelas exploradas ao acaso. Muitas vezes escondem o melhor de uma viagem.
Dali, retirei-me para o hostel. Estava cansado. Comprei alguma coisa para comer, relaxei um pouco no quarto, e passei o serão no bar simpático, a tentar colocar actualizar a escrita. Num só dia visitei o que há para visitar em Tirana, e teria tido tempo de inserir o que ficou de fora, mas como o dia de amanhã também é dia…