Esta foi uma daquelas viagens que apareceu mais pela oportunidade do que por plano. Sim, queria visitar Cabo Verde. Vagamente. Mais pela curiosidade em conhecer os traços de portucalidade espalhados pelo planeta do que por qualquer outra coisa. Cabo Verde tinha contra si o preconceito: imaginava aquelas ilhas como pedaços de terra árida, demasiado europeias, com muito turismo. E depois conheci a Ronja em São Tomé, há um par de anos. Essa exploradora rebelde, indómita, que contudo me contava histórias de medo e crime em Cabo Verde e ainda mais perdi a vontade de ir até lá nos tempos mais próximos.
Só que a TAP aliciou-me. Passou-me pela vista esta oportunidade: ida e volta com partida de Faro por 315 Euros. Agarrei a situação e pronto… dei por mim a bordo de um avião, de novo em direcção a África, ainda sem grandes expectativas mas já sentindo que esta viagem será melhor do que durante anos antecipei.
A preparação foi arcaica. Muitas dificuldades. Espantosamente os materiais online são muito reduzidos (para além destas crónicas de viagem tomei nota mental para escrever alguns “guias” para as ilhas onde passei) e em línguas ao meu alcance só existem dois guias editados: o de Tânia Sarmento, em português, que comprei, e o da Bradt, em inglês, que namorei mas deixei ir por achar o preço exagerado. Assim, escolhi um percurso entre-ilhas que acabou por ser totalmente alterado. A primeira ideia era visitar Santiago, passar para o Fogo, de avião, e visitar a Brava, algo que só é possível de barco. Sucede que em dias complicados as ligações marítimas são interrompidas e com os dias contados não quis arriscar ficar bloqueado na ilha menor do arquipélago. Reformulei tudo. Santiago, e depois São Vicente, dali por barco para Santo Antão, com tempo suficiente para qualquer precalço ser resolvido.
Tinha chegado na véspera, no voo tardio que chega de Lisboa, diariamente. A minha amiga virtual Ana Paula tinha-me dado uma grande ajuda. Graças à sua acção tinha à espera um condutor de táxi de confiança, com um cartaz com o meu nome. Uma situação que muito me confortou mas que se revelou inútil: depressa percebi que em Cabo Verde não há papões e os taxistas são honestos. Mas chegar a um país novo causa-me sempre uma pequena ansiedade. Foi melhor assim.
Ia para casa da Sueli, minha anfitriã nos dias de Santiago. Lá cheguei, usando o telefone do Ima para acertar os últimos detalhes e logo estava a ser recebido por esta boa amiga. Ainda conversámos um pouco, à varanda, numa noite quente como foram todas as de Cabo Verde, mas ela, coitada, estava a trabalhar das 7 às 7 e precisava de dormir. Deu-me as chaves de casa, despediu-se e foi dormir.
Abri os olhos. Estava sozinho em casa. Lá fora o bulício de uma cidade que desperta. Estou no bairro de Fazenda que, como viria a perceber com a passagem dos dias, é simplesmente perfeito. Uma zona genuína, com uma personalidade própria, um sentido de comunidade como deve ser e contudo tão perto do centro histórico que se pode caminhar. São uns setecentos metros e está-se no plateau, como se chama à original cidade da Praia construída e habitada pelos portugueses de pele branca.
Fui à varanda, deixei-me estar, deliciado com tudo o que via. As montanhas, ao longe no horizonte, e lá em baixo, aos meus pés, como formigas grandes, as pessoas dali e os carros e os pequenos autocarros da Praia. Deu-me ganas de sair, comi qualquer coisa, restos que trazia na mochila e pus-me na rua, desejoso.
Os primeiros momentos foram um pouco a medo. A Sueli tinha-me dito que até à hora do jantar estava à vontade no que toca a segurança. Não se passava nada. Nem era com o cair da noite que as ruas eram tomadas pela bandidagem, era mais tarde, quando as famílias se recolhiam para tomar a última refeição do dia. Mas por outro lado tinha ouvido as histórias do crime na Praia e precisava de sentir o pulso à cidade antes de definir as minhas atitudes.
Assim que saí… oh meu deus… não dá como não sentir um amor à primeira vista por uma cidade assim… uma cara mostra-me um sorriso do tamanho do mundo acompanhado por um grande “bom dia”. Um homem de uma loja ali ao lado. Fiquei logo contagiado.
Encontrei facilmente o caminho para o plateau. De resto, não tinha como enganar. Era caminhar sempre em frente na direcção que a Sueli me indicou. Explicar o plateau é simples: uma série de ruas em planta geométrica, com duas paralelas principais que culminam na praça a que chamarei de principal para não ter que escrever “praça Alexandra Albuquerque”, onde tudo se encontra: a catedral, a câmara municipal, o melhor supermercado e a wi-fi gratuita, oferta do Estado.
Partindo desta premissa, depois é explorar, calcorrear aquilo tudo até se ter a certeza que nada escapou. Porque há imenso para descobrir. Desde os pequenos detalhes feitos de pequenas velhas casas de outros tempos e dos barbeiros de esquina, até ao palácio presidencial que, já se vê, foi antes residência do Governador. Pelo meio há bizarras lojas de chinesas instaladas em edifícios coloniais, esplanadas chamativas, pontos com vistas espectaculares para os espaços que envolvem o plateau com especial destaque para o miradouro onde reside a estátua do navegador Diogo Gomes.
Nas esquinas mais obscuras homens suspeitos fazem propostas de câmbio, vendedeiras tentam despachar os seus produtos longe dos olhos da activa polícia municipal. E no meio, há a rua 5 de Julho, reservada aos peões do principio ao fim, atravessando o bairro e assumindo-se como o eixo principal da vida do plateau. Foram estas as impressões de uma primeira abordagem a esta parte da cidade, com mais detalhes que não revelarei para já, de forma a ter com que preencher as crónicas dos dias que se seguem.
Terminada a abordagem ao histórico plateau procurei o acesso ao famoso mercado da Sucupira. A Sueli tinha-me falado nele e de qualquer modo já tinha lido sobre este pitoresco local. Lembrava-me que o acesso era feito por uma imensa escadaria mas mais depressa encontrei uma rampa que descia até lá e que servia perfeitamente. Ainda nem tinha chegado e já estava a ser assediado amigavelmente pelos condutores de carrinhas privadas que fazem o transporte de pessoas para o Tarrafal. Mas não, naquele dia não pretendia ir lá. São umas duas horas de caminho que custam 500 Escudos. 5 Euros. Mais tarde, mais tarde.
Andei por ali, superficialmente, com aquela atitude de quem sabe que irá ter tempo de ir mais fundo, que procura para já um cheirinho de tudo sem querer esgotar nada. Sucupira é um mundo onde tudo se pode encontrar. Num recinto estendem-se bancadas repletas de roupas em segunda mão, enviadas para Cabo Verde por familiares emigrados nos EUA que enchem bidões com aquilo. Na rua há animais à venda… cabras, galinhas e muitos porcos. Barraquinhas de comes e bebes vão servindo os primeiros clientes. Mulheres passam, de cabaz à cabeça, enchendo de cor aquelas paragens. Respiro África, sinto o calor abraçar-me o corpo.
Sento-me um pouco num banco, tenho alguma fome e sinto-me um pouco cansado. Saco um pacote de bolachas da mochila e vou vendo a envolvência. Um jovem aborda-me, com uma conversa estranha que culmina num pedido de ajuda, ou seja, de dinheiro. Segue o seu caminho. De seguida aproxima-se uma personagem única: um africano de fato e gravata e sapatos reluzentes, como um menino de coro do Arkansas, só que transportando em cima uma autêntica loja de óculos escuros, cintos e relógios. Primeiro penso que me vem mostrar a mercadoria, propor negócio. Mas não. Cumprimenta-me e senta-se no mesmo banco, começando a montar o estaminé. Deixo-me estar mais um bocado, de súbito convidado em loja de outrém, até que me sinto pronto para prosseguir a aventura e levanto-me desejando-lhe um bom dia de vendas.
Volto a subir ao plateau. Já fiz tanto, já calcorreei tanto quilómetro para a frente e para trás, e contudo é ainda tão cedo, vamos a meio da manhã. Agora o que eu miro é o horizonte, a baía a perder-se lá ao fundo naquilo que sei ser a Prainha e mais à frente o farol. É ali que quero ir mas hesito. Vem-me à memória a narrativa apanhada num qualquer grupo de Facebook da senhora que foi assaltada violentamente logo à descida do plateau, mesmo ali em baixo para onde estou a olhar. Oscilo. Vou, não vou. Ou vou? Ou não? Sim, ponho-me a caminho, com muita cautela, sentidos de gato, alerta a tudo e a todos.
Ainda a uma certa distância não avisto ninguém suspeito. Pelo contrário, as pessoas que andam por ali, que não são muitas, diga-se em abono da verdade, são claramente de bem. E vou descontraindo um pouco. Pelo sim pelo não a câmara vai a descansar no interior da mochila. E já vou a meio da baia. Vejo o bonito edifício do Arquivo Histórico, passo junto à zona onde ainda há alguns pescadores.
Então vejo-o, passo gingão, andando naturalmente na minha direcção, com o direito de que vem pelo passeio público. Não me inspiro confiança, eriço-me, uma injecção de adrenalina percorre-me o corpo. Quando está a uns passos leva a mão atrás, aquele ponto onde se enfiam armas nas calças. E eu penso… “tira a mão man, tira já a mão daí”… e ele tira e não é nada. Cruzamo-nos. Passou o susto.
Acabei por chegar à Prainha, uma pequena praia perto da Achada de Santo António – um bairro muito aceitável de Praia, onde, como o nome indica, existe uma pequena praia e onde se encontram os dois melhores hotéis da ilha. Deixo-me estar por ali um pouco. Há um par de “brancos” e alguns africanos. Usufruem do local, banhando-se nas águas que imagino tépidas e embalando-se ao sol. Debaixo dos pinheiros uma carrinha da polícia previne qualquer coisa de acontecer, numa área onde há diversas embaixadas.
O farol atrai-me. Gosto destes edifícios, tantas vezes remotos, transpirando solidão que para tantos faroleiros foi de toda uma vida. Vou até lá, passo por um parque de estacionamento onde taxistas pagam meia dúzia de escudos a homens e garotos pela lavagem dos carros.
Chego à ponta, entro no recinto do farol que está aberto. Foi uma boa ideia vir até aqui, mais uma peça d’ouro num dia maravilhoso. O mar estava encantador, lá longe um pequeno barco de pesca estava nas lides. O faroleiro aparece, pergunta-me se quero visitar, sei que isso implica um pagamento e na realidade só tenho notas grandes, trocadas há pouco num banco. Terá que ficar para a próxima.
Inicio o regresso. Passo certo, sem sobressaltos, confiança ganha, meto-me mesmo pelo areal da praia, a praia que terá dado o nome à Praia, e que há pouco me pareceu assustador, remoto, sem linhas de fuga práticas. Melhorou o passeio, a areia está rija, sabe bem alternar, ver os poucos barcos que ali estão a repousar, passar perto dos pescadores que reparam redes. Começo a sentir fome. Já tinha reparado nos preços anunciados, que não têm nada a ver com o que me tinham dito. Toma-se uma refeição decente por menos de 5 Eur. Ou por muito menos, se não se for esquisito. Passo junto a um restaurante de praia, uma tasca chamativa que me tenta, mas acabo por descartar a ideia por um simples pormenor: a música em volume elevado.
E assim, enquanto o calor do meio-dia aperta, subo de novo ao plateau, em busca da esplanada onde vi anunciado arroz de pato por 300 Escudos. Sento-me, satisfeito, por ir encher a pança e descansar o corpo, peço logo uma cerveja, Strella (ou Creoula, como também é conhecida). Aqui bebe-se a cerveja mais barata que vi nos 15 dias de Cabo Verde: 100 Escudos. Só tem um problema: as cervejas neste país são todas minis. Quer seja a nacional quer seja a Super Bock.
Meto-me à conversa com os vizinhos da mesa seguinte, e quando dou por mim está toda a gente a falar, trocando línguas e assuntos: eu, com os dois cabo-verdianos, com um casal de austríacos e com o estónio solitário. De repente há ali um simpósio de viajantes e locais, trocando ideias e conselhos. O arroz de pato estava horrível, foi a única coisa menos boa desde bocadinho. Os austríacos oferecem o almoço a um pedinte, encomendo mais uma cerveja, que geladinha vêm, que maravilha! E continua a conversa e não resisto a pedir outra. Vistas as coisas, mesmo com a excentricidade da cerveja o almoço saiu-me em menos de 6 Euros. Combino com os meus novos amigos encontrar-me ali com eles às cinco da tarde para ver o Sporting na TV e afasto-me um pouco afectado com o álcool. Estas minis são poderosas.
Vou até casa, estou cansado e sonolento. O trajecto é um instante, lembro-me de passar junto ao liceu e de ver toda aquela agitação deliciosa. Os alunos a entrar e a sair, as vendedeiras de doces e sandes e tudo o que a criançada costuma consumir. Entro em casa sem problemas com as fechaduras (primeira vez que uso chaves desconhecidas pela primeira vez tenho sempre medo de alguma manha do material que me possa apanhar desprevenido) e adormeço embalado pelo calorzinho africano.
Acordo a tempo de ir lá abaixo, aliás, lá acima. Mais uma vez a caminhada faz-se com agrado. Adoro este percurso, ver as pessoas e os pormenores, sempre com algo de novo que passou despercebido até então. Mas no café não está ninguém nem está a dar o Sporting. Ando por ali à procura de uma TV simpática mas nada à vista. Que se dane, volto para casa, sempre com um olho nos cafés, mas sem sorte até ao fim. Ainda é relativamente cedo mas o dia foi tão longo e bem preenchido… já não vou sair, deixo-me estar em casa. A Sueli chega mas sai logo, tem um jantar da empresa. O dia chega ao fim assim, o meu primeiro em Cabo Verde, um primeiro passo com o pé direito.
Taí uma viagem que eu tenho curiosidade de fazer. Parabéns pelo relato!