Último dia completo nas ilhas. Amanhã, logo pela manhã, há que apanhar o vôo para Madrid, depois de deixar o carro entregue às 8. Hoje tivemos a companhia da nossa amiga Cathy que veio experimentar fazer Geocaching da parte da manhã. Diria na brincadeira: “antes não tivesse vindo”, porque ficou tão agarrada que não se calou o resto do dia… que me pagava bem e ficava já com o meu GPS, que depois eu podia comprar um novo e melhor para mim, e para que eu pensasse na proposta, e que era uma desgraçada porque em Fuerteventura não se encontravam coisas daquelas nas lojas. Não cedi, mas a verdade é que três dias depois ela me mandou uma mensagem a dizer que já tinha encomendado um GPS exactamente igual ao meu.
Portanto, saídos de casa, dirigimo-nos a Corralejo. Era uma volta um bocado estranha, no sentido oposto ao pretendido para o resto do dia, mas era suposto entregar a viatura com o depósito vazio e ainda havia bastante gasolina por lá. Acima de tudo foi uma oportunidade de reparar uma falha da nossa passagem pela pequena cidade: nunca arranjámos tempo para visitar as famosas dunas, recentemente promovidas a área protegida, e que, se abordadas na perspectiva correcta, dão a plena ideia de estarmos no coração do Sahara. O que afinal de contas não é tão surpreendente… o grande deserto a africano está a apenas cerca de 100 km. Nas dunas, as cabras. Sempre. Mesmo em locais tão insuspeitos como este. Cabras, areia a perder de vista, e, de um lado, o azul deslumbrante do oceano. A envolver, mais um dia perfeito, de céu totalmente limpo e temperatura amena.
A seguir trepámos a um pequeno cone vulcânico, que se ergue perto de um irmão bem maior. Não foi fácil chegar ao topo, com tanta pedra resvalante debaixo dos pés, mas valeu a pena. A vista é espectacular e as pessoas, lá em baixo, parecem pequenas formigas. Mal consigo imaginar o esforço que será exigido para atingir o cume do enorme monte do lado, e como será a recompensa oferecida lá de cima. Apesar de Fuerteventura não ter actividade vulcânica desde tempos imemoriais sente-se bem ali a verdadeira origem da ilha.
Para terminar a manhã com a Cathy fomos explorar um pequeno vale escavado pelo caudal das águas da chuva. Um detalhe aparentemente desinteressante mas na realidade encantador, que muito nos divertiu. Ali, no terreno arenoso, no qual se sente uma humidade diferente, nascem caules verdes que não se avistam com facilidade noutros pontos da ilha. E avistam-se destroços estranhos, arrastados pelas enxurradas.
Deixámos a nossa amiga em casa e tentámos decidir o que fazer com o resto do dia. Não é simples. Onde ir? Tudo o que nos falta ver é em cantos opostos à nossa localização e apesar de ainda termos gasolina no depósito não convinha nada ter que tornar a abastecer. Pensei a ir a Los Molinos e Ajuy. Mas apesar de serem a possibilidade mais próxima em linha recta uma vista de olhos ao mapa desencorajou-me. O acesso por estrada não é linear. Acabei por me decidir pela zona de Pared, na parte mais estreita da ilha, que tem menos de 5 km de costa a contra-costa. E dei-me por satisfeito de o ter feito. Apenas lamentei, mais tarde, a falta de tempo para explorar aquela região, que terá obrigatoriamente que ser revista numa próxima incursão a Fuerteventura. Mas detalhes mais adiante, para já o percurso até lá.
A primeira paragem deu-se nas imediações do aeroporto. Queria explorar uma vasta planície que se estende a sul das pistas de aterragem, onde aliás tinha tentado ir na véspera sem encontrar o devido acesso. Mas agora, com algum trabalho de casa realizado, a tarefa revelou-se bem mais simples e dei com a coisa à primeira. Carro parqueado, fomos andando até ao mar. A memória que ficará deste momento é a total ausência de stress. Sinto como que se aquele pedaço da tarde se tivesse passado em câmara lenta. Observámos o movimento do aeroporto, que, ao longe, parece desenrolar-se a ritmo igualmente pausado. Vimos um par de aeronaves da Monarch rolar pela pista até se elevarem nos céus e rumarem para Norte, certamente direitos a Inglaterra. Depois, a nossa curiosidade virou-se para uma estranha estrutura junto à água. Avançámos até lá para descobrir este misterioso “bunker” num equilíbrio periclitante cuja permanência no local não consigo compreender. Tudo indicaria que as águas o levassem para longe, mas contudo ele mantém-se lá. É um aglomerado de cimento e pedras, claramente de uso militar. Como a maré está vazia podemos entrar e ver o seu interior. Parece um ninho de metralhadoras ou um posto de observação de artilharia. A subida cíclica das águas impedirá o acesso. Mas para já podemos estar à vontade. Mais tarde vimos que existem postos idênticos ao longo da costa, em direcção ao aeroporto. Mas não numa posição tão inusitada.
Ainda a pensar na história daquela “coisa”, andamos junto ao mar até chegarmos a uma pequena praia idílica, vazia. Só não me dispo e entro na água porque pela primeira vez nas Canárias vejo a areia coberta por algas – algo que me repugna seriamente – e mais algumas a flutuar.
A paragem seguinte é no topo do cerro Degollada de Montaña Branca, por onde trepa uma urbanização em curso. Lá de cima a vista é fabulosa. Mas os últimos troços indicam um abandono do projecto que contudo não é suficiente para denegrir o local. E dali para Pared.
Esta é uma zona remota. Sente-se pela ausência de tráfego, pela ampla paisagem, pela calmaria. Encontro um lugarejo (28° 12.395’N 14° 13.384’W) que me conquista. São casas em boas condições, com forte presença europeia. Não muitas. Entre 10 a 20 casas. Mas naquele fim de mundo imagino-me a criar, a escrever, a ler, dias a fios, com uma inspiração bebida do mar que abraça o local. A 500 metros uma bela praia, onde, vimos mais tarde, um grupo de aventureiros se prepara para pernoitar. Talvez surfistas. E o Sol prepara-se, também ele para se deitar. É a última grande memória que guardo desta viagem. Temos que regressar. O caminho é longo e fiquei de preparar um arroz doce para a Cathy, mulher gulosa. Mais tarde encontramos outra Couchsurfer que ficará no apartamento esta noite.