Sem dúvida alguma o dia mais preenchido da aventura do Cáucaso. Para hoje estava planeada a viagem até Stepansminda, onde procuraríamos alojamento numa casa particular. Lemos muito na Internet sobre os preços justos, sobre o que se poderia esperar. Aparentemente a ideia seria apanhar a “marshrutka” (o conceito será explicado oportunamente) para a aldeia, e ai, na praça central, aceitar uma proposta adequada de alojamento, geralmente feita pelos particulares que lá se deslocam para vender o seu produto aos viajantes recém-chegados.

 

 

Só que à última da hora o Dan, na sua enorme generosidade, decidiu levar-nos ele próprio até lá. Além disso, arranjou-nos alojamento. Os tios de um seu colaborador na embaixada tinham disponibilidade para receber hóspedes de tempos a tempos. O preço não foi estabelecido, e foi-nos dito que daríamos o que quiséssemos, sendo aconselhado, pelo sobrinho, um valor de referência de 35 Euros. Eu não sei bem o que o sobrinho faria na embaixada, e não sei se quero saber… foi-nos descrito como um motorista, ex-forças especiais georgianas…….

 

 

De Tiblissi a Stepansminda são cerca de 100 km. Mas para ultrapassar esta distância são precisas umas sete horas. Esta realidade, a que não estamos habituados colidiu aliás com quase todos os planos traçados. A Geórgia é um país esplêndido, considerado pelo Lonely Planet como o mais bonito do mundo. Mas para o explorar são precisas largas semanas, precisamente pelas dificuldades de deslocação. As estradas são precárias, constantemente obstruídas por rebanhos em migração e bloqueadas por avalanches de neve e pedras. Muitos dos locais mais interessantes são apenas acessíveis durante o Verão. E apenas percorrendo aqueles caminhos se compreende inteiramente porquê que são necessárias sete horas para ultrapassar cem quilómetros.

 

 

Pouco depois de deixarmos a confusão da capital para trás começaram a aparecer no asfalto os primeiros rebanhos. A Geórgia é uma nação de pastores. As migrações sazonais dos rebanhos são míticas, e alguns estrangeiros, ocidentais, viajam até estas paragens na expectativas de poderem viver a aventura de acompanhar estes homens que se deslocam num nomadismo total, guiando a fonte do seu sustento pelas montanhas consoante a estação do ano. Ora apesar de não desdenharem as escarpas pedregosas quando necessário, estão bem cientes que as estradas, se existirem e convierem, são o meio mais seguro e rápido de viajarem com o seu gado. O que significa que os condutores se vêem obrigados a partilhar o mal-tratado asfalto com estes invasores. Os rebanhos são quase sempre mistos, envolvendo  gado bovino e caprino, um pelotão de cães e alguns homens, a pé ou montados a cavalo. E surgem a qualquer momento, a meio de uma curva ou depois de um ângulo sem visibilidade. Os automobilistas georgianos sabem bem como lidar com estas situações. O nosso amigo americano, não: abordamos um rebanho… rolar devagar, ser paciente, esperar que os animais se movam, com ou sem a intervenção dos pastores… e esperar… e andar devagarinho durante centenas de metros; nisto, surge uma carrinha local… não sei como mas parece que os bichos sabem que é melhor sair da frente mais depressa… a carrinha passa pelo mar de lã andante, passa por nós, apita, apita, passa pelo resto dos animais… e nós continuamos, ali presos,  devagar devagarinho, vendo a viatura georgiana que se afasta, já lá em baixo, na estrada sinuosa.

Pelo caminho efectuamos algumas paragens.  Ainda bem que não sou eu que vou ao volante, porque nesse caso chegaríamos a Stepansminda passados alguns dias: cada metro de todos os quilómetros que percorremos é fascinante e desperta em mim uma vontade enorme de fotografar. O Dan, sabido, gere o tempo de melhor forma, detendo o carro apenas num par de pontos estratégicos. Primeiro, apreciamos um belo lago, rodeado de íngremes encostas montanhosas.  De resto, a Geórgia é essência do conceito de montanha. Neste pequeno país encontram-se sete picos acima dos 4.800 metros. O que significa que se considerarmos a Geórgia como sendo parte da Europa, o Mont Blanc, como pico mais elevado do continente, já era. Depois, paramos num mosteiro fortificado à beira da estrada, onde alguns vendedores ambulantes tentam impingir a sua mercadoria, basicamente composta por elementos tradicionais de pastoreio.

 


 

Depois, a ascensão tornou-se mais pronunciada. Os primeiros sinais de neve. Nova paragem. A paisagem envolvente é deveras impressionante, com os glaciares que descem dos cumes, gigantescos, onde pinheiros que normalmente pareceriam enormes parecem  mera pelugem. Passa por nós um camião de grande envergadura, expelindo gases negros, num esforço evidente para vencer o ângulo de subida. Mais  para a frente as condições deterioram-se. Tibilissi está a 50 km mas parece pertencer a outro mundo. Tomámos o pequeno-almoço em t-shirt e agora a temperatura desceu para uns -5. Há gelo e neve por todo o lado e a luz do sol não chega aqui, filtrada por um manto escuro de nuvens que fez noite do dia. Damos com um velho monumento comunista, feito de mosaicos. Adoraria estar aqui  a fotografar num outro dia, com uma luz digna, mas é hoje que tenho a oportunidade e sou obrigado a fazer o melhor possível, pelo meio da chuva que agora cai bem grossa e do frio penetrante.

 

Já não estamos longe, mas o frio continua. A altitude é e será de cerca de 2.000 metros. Subimos bastante mas descemos apenas um pouco desde a passagem das montanhas. Stepansminda está a esta cota, um pouco à frente. Há que encontrar os tios do contacto do Dan. Fazemos uma primeira passagem, que acaba na praça central da aldeia. Logo somos assediados por um homem que nos quer vender alojamento e transporte. Declinamos, claro. Entretanto o Dan fez uns telefonemas. Temos que voltar para trás, e o tio estará à nossa espera na estrada principal. O senhor Cesar estava lá de facto. Apresentou-nos a esposa e a casa. A neta, Nino, tinha vindo para os ajudar com os hóspedes, fazendo disparar a testosterona dos meus amigos. Bem, mesa posta, comunicação básica. O Dan vai comer qualquer coisa conosco antes de fazer o caminho de volta. Tentamos convencê-lo a ficar, mas algo de muito importante tinha que ser feito em Tibilissi. Quer eu quer o Clabbe ficamos com a clara impressão que o urgente assunto de Estado tem mais a ver com rabo de saias, mas se assim tem de ser, pois que seja.

 


Os destroços de um carro, arrastado por uma avalanche. Todos os anos há dezenas de mortos em acidentes deste tipo.

 

Lá fora o tempo continua xoxo, cinzento, com uma chuva miudinha que cai sem parar. Dentro de casa a velha salamandra de ferro forjado mantém o espaço aquecido, e na mesa vão surgindo as iguarias que as mulheres preparam. Elas não são “admitidas” para a refeição. Apenas estão ali para servir os homens e comem na cozinha, no espaço adjacente, que vislumbramos quando somos levados a lavar as mãos. Há sopa de feijão, queijo branco e manteiga, pão simples e recheado com uma massa de legumes. Tudo, mas tudo mesmo, feito com a produção do amigo Cesar. Há também chá e chacha, uma licor forte, aparentado do nosso bagaço, da qual é costume despejar três copos antes da refeição. Para sofrimento do Clabbe que detesta bebidas brancas, e que não consegue fintar o velho Cesar nas 4 ou 5 refeições que tomamos em sua casa. Mais delícias terão surgido, mas a memória atraiçoa-me. Lembro-me que foram expostas a perder de vista, levantando as expectativas para as refeições seguintes… goradas, pois dai para a frente basicamente foi-nos servido o manjar inicial devidamente requentado.

 


 

Com o estômago reconfortado por uma das refeições que será lembrada como das melhores de sempre, assistimos à partida do Dan. Ficou uma espécie de vazio no ar. Relaxámos um pouco. E o que fazer agora? A tarde já ia um pouco avançada mas não podíamos ficar ali a olhar um para o outro até ao dia seguinte. Como é evidente a comunicação com os anfitriões era complicada. O Clabbe tinha ficado com a ideia de que podíamos utilizar o jipe estacionado à porta. Não era bem assim. Podíamos era pedir ao Cesar que nos conduzisse. E foi isso mesmo que fizemos. Queriamos ir já à Igreja da Trindade, um dos objectivos de topo de toda a viagem, e que empresta a sua imagem  como uma das mais características da Geórgia.

 

 

E fomos. Primeiro atravessámos a aldeia. O velho Cesar acenava aqui e acolá, obviamente conhecendo toda a gente da comunidade. Depois, iniciou-se a subida, que muitos turistas fazem a pé, o que para nós não seria de todo possível por limitações de tempo. O nosso condutor aparente setenta e muitos anos, mas as mãozinhas para a condução todo-o-terreno não lhe faltam. A ascenção estava cheia de obstáculos traiçoeiros mas ele ultrapassava-os sem hesitação, no máximo estudando-os durante um par de segundos, enquanto se aproximava. Na rádio, a música local trazia um toque extra à atmosfera de aventura. E de repente, lá estava ela, a igreja, tantas vezes vista em fotografias nas semanas que antecederam a partida. E digo-vos desde já: até hoje é o local mais belo e impressionante que visitei, sem qualquer dúvida. Espanta-me, e muito, que não esteja enquadrada no Património da Humanidade Classificado pela UNESCO, o que não funciona nada em prol daquela instituição.

 

 

As imagens falam por si. Por detrás do edifício, lá ao longe, ergue-se uma barreira montanhosa, que faz parecer que estamos quase ao nível do mar quando na realidade já estamos a 2.500 metros. No prado, uma pequena manada de cavalos selvagens pasta. Muito antes, encontramos uma cruz cristã. E faltam as palavras… ficam as fotografias:

 

 

 

Caminhamos desde ali até à igreja, com o Cesar, atento, conduzindo o jipe a baixa velocidade, não fôssemos mudar de ideias e querer entrar. O vento soprava, frio, com o vigor que se esperaria aquela altitude. E chegámos ao topo. Lá em baixo as casinhas de Stepansminda são pontos na paisagem. Ficamos surpreendidos por um cortejo de jovens de ambos os sexos que chegam, a pé, pela escarpa. Aparentemente haverá por ali um trilho que encurta a distância da caminhada. O Clabbe entra na igreja e sai pouco depois. O mesmo fazem os jovens, que se entusiasmam com a oportunidade de tirar uma foto com o gigante sueco. E depois descemos, vamos embora.

O dia esgotou-se a comer, de novo até rebentar. Mas alguma confusão surgiu de seguida. Afinal não havia um quarto para cada um de nós. Recebi instruções para me mudar para a sala, onde tentei ver a final da Liga dos Campeões… sem sucesso. Meti-me na cama improvisada e fiquei apenas a ver as fotografias do dia, no pequeno computador. A noite foi estranha. Estava já de luz fechada, a tentar dormir, quando alguém entrou na sala… fingi estar a dormir e a pessoa foi-se. Era certamente a esposa do Cesar. O Clabbe estava entusiasmado com a ideia de que o ocupante surpresa do quarto que seria para mim pudesse ser a Nino. Mas não foi. E já era bastante tarde quando a vista fantasma entrou no meu espaço. De resto a noite foi complicada. O colchão era pior do que mau. Acabei por transitar para o chão depois de acordar sucessivas vezes.

 

 

 

 

 

 

3 COMENTÁRIOS

  1. que belo lugar!
    estou em istambul pegando a estrada daqui uma semana em direção a georgia para chegar a armênia .será que consigo chegar a Stepansminda mesmo sem ter muitos contatos?

    abraços

    • Nas calmas. Há ligação directa, naquelas carrinhas malucas cheias de gente e condutor louco. Vai estar é por sua conta e risco. O problema é que essa ligação demora várias horas. Aliás, nós de regresso a Tiblissi tomámos uma dessas carrinhas. Uma vez na localidade, não vão faltar pessoas a oferecer alojamento e transporte até à igreja lá em cima.

  2. então vou tranquilo .quer dizer nem tão tranquilo com essas carrinhas malucas !mas parece valer muito a pena chegar até essas montanhas

    teria muitas perguntas a fazer uma vez que essa rota(turquia – georgia- armenia) não me parece muito feita . tenho conseguido poucos relatos em questão

    mas agradeço muito pela informação sobre Stepansminda

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