Há uns dias, ao ler sobre a minha viagem pela Geórgia, um amigo perguntava: “Ricardo, mas como é que consegues comunicar com as pessoas quando andas por sítios assim? Não te faz confusão? Eu não seria capaz de ir numa viagem assim”. Esta é uma questão recorrente. E de repente ocorreu-me que seria interessante escrever umas linhas sobre este “problema”.

Vou começar por uma confissão: também eu tenho os meus receios comunicacionais. A Ásia Central fascina-me há muito. Tadjiquistão, Kazaquistão, Turqueministão, Azerbeijão, Uzbequistão, Quirgistão. Fragmentos de um império caído defronte dos meus olhos, paragens remotas, exóticas, cheias de mistérios. Gentes diferentes, paisagens magníficas, esmagadoras. Mas, ate agora, dominando esta curiosidade sem fim, esta enorme atracção, há o medo. O que é estar num autocarro algures na estepe asiática e de repente, em vez de prosseguir para o destino esperado, ver a máquina deter-se numa pequena cidade desconhecida e toda a gente sair. O que é que uma pessoa faz num momento assim, se à vista não existe ninguém que fale algo para além da língua local e de russo? Suponho que são estes momentos que inspiram o receio dos viajantes menos experientes, e aqui é preciso ressalvar algo: apesar de já não ser um rapaz novo, sou um cruzamundos imberbe. Há “putos” com vinte e poucos anos que já andam pela estrada há uma eternidade e percorreram mais léguas do que alguma vez poderei imaginar para mim. E é assim que não me preocupo especialmente com este travão que me tem impedido de partir para algumas aventuras.  Há tempo. Para amadurecer e aprender.

Agora que estão partilhados medos, tem a palavra a razão. E a verdade é que há sempre uma solução. Quando me questi0nam sobre estas coisas da linguagem, costumo dizer que depois de tanta viagem, apenas uma vez uma barreira linguística me atalhou caminho. Foi em Kiev. Queria comprar um bilhete de comboio para a Crimeia, levava a lição estudada. Mas a matrona loura do outro lado do vidro estava decidida a fazer-me a vida complicada. Começou com perguntas. Olhei em redor em busca de uma cara jovem que pudesse servir de intérprete improvisado. Nada. Apenas faces calejadas por anos e anos de vodka e trabalho duro. Tive que desistir, virar as costas e arranjar outro plano para o dia seguinte.

Noutras ocasiões a história foi diferente: trepar pelos subúrbios que ocupam as colinas íngremes de Sarajevo, já noite feita, completamente perdido, à procura da casa de um anfitrião que nem morada tinha, e por ali acima ir “perguntando” aos residentes que encontrava… os detalhes ficam para um outro artigo mas a verdade é que cheguei ao destino, com muita ajuda de caras amigas mas sem encontrar ninguém que falasse inglês e sem saber uma palavra de bósnio. Mais para o norte, em Brcko, fiquei com um casal de sérvios (foto do artigo) que de inglês sabiam o que se aprende no primeiro ano da escola. Mas passámos a noite à conversa. Como!? Sim, naquele adorável serão aprendi algumas coisas sobre a região, sobre o que é viver numa área multi-étnica da Bósnia… e em troca expliquei o que se sente quando se viaja, contei histórias e aventuras. Mas… como? Simplesmente usando o Google Translator (neste artigo em inglês narro a experiência em detalhe). Na Albânia passei um par de horas a embriagar-me lentamente com uma mão cheia de mafiosos locais, discutindo “bola” e o mundo, entre dois amigos norte-americanos que sabiam algo de albanês, o italiano que quase todos sabem por lá e não é muito distante do português, e a ajuda de um traficante de droga oficialmente reformado que tinha vivido no Reino Unido (estória também contada num texto em inglês).  Lembro-me de um amigo ucraniano me contar como, acampando nas imediações de uma pequena aldeia espanhola e precisando de uma cebola para o cozinhado que preparava, se ter aproximado da localidade. Deu de caras com uma velhota. Dirigiu-se a ela, e com as mãos abraçou uma pequena esfera imaginária. Depois, palma de mão aberta e retesada, em forma de faca, simulou o movimento rápido com que cortamos vegetais ou frutas. Por fim, levantou o indicador, colocou-lhe a ponta no canto do olho e desenhou uma lágrima descendo pela face. Dois minutos depois tinha um punhado de cebolas nos bolsos, oferecidos com um enorme sorriso.

Portanto, é possível. Tornam-se necessários alguns atributos, mas não o conhecimento comum de uma língua. Boa vontade mútua. Imaginação. Desenrascanço. Alguma experiência. Ideias vagas de algumas línguas… uma palavra aqui, uma palavra acolá. Porque, vejamos. Não sei falar nenhuma língua eslava, mas conheço uma mão cheia de palavras. E com esse recurso limitado, já compreendi coisas e sai de problemas numa dúzia de países onde se falam línguas desse grupo. Um exemplo: ia de comboio de Mostar para Sarajevo. Num compartimento cheio de jovens norte-americanos tão cheios de si próprios que às tantas perdi a paciência e fui fazer tempo para o corredor. A porta do compartimento abre-se e um deles sai, dizendo para os outros que ia perguntar se Sarajevo era a próxima paragem. Chegou-se ao pé de um homem e perguntou-lhe em inglês, sem mais. Recebeu de volta uma expressão sisuda e um encolher de ombros. Voltou para dentro anunciando o falhando da sua missão: “- Eles não falam inglês”. Hum? E é preciso? Deixei passar alguns minutos, aproximei-me do mesmo indivíduo, abri um bom sorriso e disse: “Dobry den”, que é “bom dia” em checo e que soa bastante próximo do que se diz por aquelas paragens. O olhar que me deitou era tudo menos mal-encarado. Prossegui, fazendo um semi-circulo com o indicador, naquele gesto quase universal de “próximo”,  injectei a palavra “nadrazi” que em checo é estação de comboios e que não será precisamente o mesmo nem em bósnio, nem em sérvio nem em croata, mas que foi entendido, e terminei com outra palavra avulsa “Sarajevo”. Recebi logo a resposta. “Da”, que é sim em quase todas as línguas eslavas.

E é assim, meus amigos. Eu sei que custa, mas não há que ter medo. Descontracção é a chave. Viajar e gostar de o fazer depende disso. Sair da nossa área de conforto significa que vão surgir problemas, agressões ao nosso sentido de normalidade. Algumas pessoas estão dispostas a lidar com estas situações. Outras, não. Mas para a maioria dos viajantes, é tudo uma questão de limites. Eu tenho os meus: A Ásia Central, por exemplo. Mas não são os que eram no passado. Aprendi, ganhei outra coragem para lidar com problemas inesperados e situações novas. E creio que, com mais ou menos facilidade, a maioria das pessoas pode fazê-lo.

2 COMENTÁRIOS

  1. Parabéns pelos teus artigos, rapagão. Obrigdo, por me teres dado a conhecer este teu blog. Tenho passado bons momentos a ler as tuas crónicas. E ao lê-las percebo perfeitamente as razões de te teres junto ao grupo dos candidatos a eternamente nómadas. São de facto emoções e momentos como os que descreves que dão o tempero à vida. Mas no teu caso deu muito, muito mais. O gosto por continuar a fotografar,… o gosto pela escrita… a generosidade de partilhar tudo isso com quem gostaria, mas que por esta ou aquela razão não te pode imitar…

    Continua, rapagão.
    Abraço amigo,

    Jorge Farinha

  2. Já agora…

    “A pouco e pouco, aprendi que nenhum viajante vê o que outros viajantes, ao passarem pelos mesmos lugares, vêem. O olhar de cada um, sobre as coisas do mundo, é único, não se confunde com nenhum outro.
    Viajar, se não cura a melancolia, pelo menos, purifica. Afasta o espírito do que é supérfluo e inútil; e o corpo reencontra a harmonia perdida – entre o homem e a terra.
    O viajante aprendeu, assim, a cantar a terra, a noite e a luz, os astros, as águas e a treva, os peixes, os pássaros e as plantas. Aprendeu a nomear o mundo.
    Separou com uma linha de água o que nele havia de sedentário daquilo que era nómada; sabe que o homem não foi feito para ficar quieto. A sedentarização empobrece-o, seca-lhe o sangue, mata-lhe a alma — estagna o pensamento.
    Por tudo isto, o viajante escolheu o lado nómada da linha de água. Vive ali, e canta — sabendo que a vida não terá sido um abismo, se conseguir que o seu canto, ou estilhaços dele, o una de novo ao Universo.”
    Al Bert

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