Hoje o dia foi bastante social. Saímos de manhã com a Mishka, a moça eslovaca que veio à procura do seu El Dorado num dos expoentes máximos da qualidade de vida ocidental, o pote de ouro do capitalismo moderno, a terra de miragens para tantos europeus de lá da antiga Cortina de Ferro. E, como tantas e tantas vezes sucede, a Mishka já compreendeu que não existem fadas nem pais natais, nem oásis de felicidade por detrás de uma pilha de dinheiro fácil. E por isso, vai regressar a casa. Mas enquanto isso não sucede, aluga um quartozinho à Aase, faz-lhe boa companhia, e, por extensão, a nós também.
Iamos fazer um pouco de Geocaching por pontos variados da cidade, e, depois, visitar pela segunda vez Christiania. À tarde, encontro com a nossa anfitriã para uma incursão a um dos seus locais favoritos, o Parque dos Veados. Enquanto andamos pelas ruas de Copenhaga conversamos, sobre a vida dela, antes, hoje, no futuro. E nisto o primeiro episódio notável do dia. Andamos de volta de uma geocache, que parece não estar no local que devia estar… sai um tipo de uma pequena oficina ou escritório, meia cave, e olha para nós… disfarçar… assobiar para o ar… não é nada conosco, este interesse pela tubagem de escoamento de água do edifício só nos interessa porque…. olhem, porque é um hobby nosso, que coisa, não tem nada a ver com isso. Mas o tipo não estava ali para desistir. Aproxima-se de nós… “Geocaching?”. Sim, pronto, Ok. E então qual era a situação? Ele era o criador da cache desaparecida e sabia exactamente o que lhe tinha acontecido… tinha escorregado pelo cano, e alojando-se lá em baixo, onde mãos humanas não conseguiam chegar. Perante a nossa evidente decepção, ele, olha, pensa, hesita… arranca quase a correr para o interior das suas instalações e regressa passado alguns segundos com o maior pé-de-cabra que já alguma vez vi. E vai de quase desmantelar o cano, que rangeu, queixou-se, mas não se destruiu… cedeu contudo o suficiente para se conseguir recuperar a caixinha que se abrigava nas profundezas. Sucesso!
Depois de mais algumas incursões, que nos levaram a pontos tão diversos como a parede do edíficio onde ainda hoje a loja, incrustada, uma bala de canhão disparada pelos ingleses durante o seu infame cerco a Copenhaga, no inicio do século XIX, e aos terrenos do observatório astronómico da cidade, acabámos por nos deter um pouco mais no Jardim Botânico. Para lá chegar contámos com a ajuda do jardineiro que arrancava ervas daninhas junto ao observatório. Terra diferente esta, onde até os jardineiros falam o mais perfeito inglês e ajudam, com um sorriso, o desorientado turista.
O jardim botânico foi uma decepção limitada. Não tem nada de mal, simplesmente esperava algo melhor, mais bonito. Os vasos decorativos que flutuam, bucolicamente, no dos lagos, acabaram por ser a imagem que fica na memória. Isso e a deusa que olha, não sei se atónita se zombeteira, o sexo do…. bem… o melhor mesmo é verem a fotografia.
Depois, visitámos o hospital. Não por necessidades pessoais imediatas, mas porque na sua vasta área se abrigavam mais algumas caches. Isto foi de mais para a Mishka, um pouco tradicional de pensamento, que não compreendia razão alguma para se colocar pé num hospital para além de uma real emergência. E assim, separámo-nos momentaneamente… enquanto íamos às nossas caixinhas, ela foi visitar uma amiga que trabalhava ali perto.
Uma hora mais tarde, de novo reunidos, dirigimo-nos a Christiania, que a nossa amiga eslovaca não conhecia. Se há uns dias atrás demos uma vista de olhos pela periferia, hoje fomos direitos ao núcleo do espaço. Christiania, tal como uma cidade medieval, tem vários “portões” de acesso. Utilizámos um dos principais, e rapidamente chegámos à “Pusher’s street”, onde se transacionam drogas leves com fartura. Em alguns pontos, colocados estrategicamente, os “olheiros”, encarregados de avistar potenciais ameaças policiais e de implementar a lei da não-fotografia. Há histórias de turistas distraídos que saíram algo mal-tratados depois de tentarem recolher inocentes imagens daquele bulício. Não que se tivesse chegado à agressão física, mas a rapaziada não é muito delicada quando tem que repetir pela enésima vez que não estão dispostos a admitir fotografias de si ou dos seus amigos em plena actividade ilícita.
Para além da bancas repletas de haxixe, erva, marijuana & etc, há outras barraquinhas, com mercadoria mais pacífica. Fazedores de tatuagens, bugigangas ornamentais, “souvenirs”, cachimbos e acessórios e tudo o mais que se possa imaginar. É, por si, uma feira ao ar livre digna de visita.
No final da “Pusher’s street”, uma espécie de “beer garden”, local muito apreciado para disfrutar plenamente das compras que se acabaram de fazer. E que bem que se estaria ali, a puxar uma passa num charro “fresco”, com uma cervejinha, num dia esplendoroso como aquele. Do terraço mais elevado da esplanada, tem-se mesmo acesso à vista sobre o braço de mar que por ali entra. E é nessa direcção que vamos. Queremos andar paralelos à água, ver mais casas bizarras, mais detalhes únicos. A coisa corre bem, de tal forma que a próxima cache que encontramos está disfarçada de cogumelo mágico, encostada a uma árvore. Para escrevermos o registo, sentamo-nos num banco ocupada por uma “mana” com a alma já muito em cima, que olha para nós com aquela expressão de “peace and love” bem espelhada por um sorriso de orelha a orelha. Fossem todos os “muggles” (1) assim!
Mais à frente abandonamos a companhia da água, deixando para trás uma praiazinha onde um “bacano”, também ele com a alma elevada, tocava guitarra por sinal, muito bem), enquanto sorria, sozinho, perante a paisagem. Entrámos num outro padrão urbano. Já tínhamos visto a Christiania dos blocos de apartamentos, ou seja, o seu núcleo histórico, formado nas antigas casernas do exército. Depois, passámos pela área comercial, seguindo a rota das “vivendas”. E agora era a vez das zona de casas com elevada densidade de construção, a fazer lembrar os parques de campismo da Costa da Caparica no pico do Verão.
Christiania é um local verdadeiramente interessante. Não só pela multiplicidade visual, pela inusitado a cada esquina, mas também pelo que não é directamente observável. As regras da comunidade devem ser complexas. Ouvi dizer que há tanto interesse neste local que é quase impossível vir-se para aqui viver. Só mesmo arranjando-se um namorado/a local, e mesmo assim, a comunidade tem que aprovar o candidato. Existem diversas actividades organizadas. É preciso cuidar dos cavalos do “clube hípico” e das hortas comunitárias. É preciso ensinar as crianças na escola de ensino básico que é administrada pelos habitantes. E cuidar dos espaços comuns. E tantas outras coisas. Pelo que me foi dito, todas estas tarefas são desempenhadas por (quase) todos os membros, em regime rotativo.
Entretanto acelarámos passo, porque a hora de nos encontrarmos com a Aase para a visita ao Parque dos Veados aproximava-se rapidamente. Na estação de Klapenborg estava uma Aase já algo impaciente pelos 10 minutos de espera. O final da tarde aproximava-se e o parque é enorme. São 11 km2, bastante mais do que o que estava previsto no plano inicial, decidido em 1669 pelo rei Frederico III, quando deu ordens para que um lote nesta área fosse vedado e para lá fossem encaminhados os veados que viviam livremente na região. O plano nunca foi concluido, porque o rei haveria de falecer um ano volvido. Mas o seu filho e sucessor, Cristiano V, que passara algum tempo na corte de Luís XIV de França, queria caçar com o recurso a matilhas de cães, e para isso precisava de mais espaço. Assim, deu continuidade ao projecto do seu pai, aumentado de 3 para 16 km2 a área prevista para o parque, dando ordens aos habitantes das aldeias que ali existiam para desmantelar as suas propriedades e reconstrui-las em zonas devastadas pelas guerras recentes. Como compensação, uma isenção de impostos válida por um período de três anos.
Andámos pelo parque, sob a liderança conhecedora da Aase. Ela sabe do que fala, conhece o parque e os veados, sabe onde encontrar os mais imponentes destes animais. Lê-lhe os comportamentos, adivinha-lhes os movimentos. E de facto, “caçar” veados com uma câmara fotográfica, assim, à solta, é uma sensação e pêras. Parece que tudo o que avistei durante a tarde foram fêmeas, que se reagrupam depois da época do acasalamento, não permitindo a presença de machos nesta sua manada subitamente celibatária, e alguns machos jovens, em busca de uma existência própria, que ainda há de chegar. É preciso ter algum cuidado nestas andanças, porque esta bicharada às vezes tem inesperados acessos de fúria, e há registo de ataques, alguns com consequências graves. Os animais mais perigosos são os machos velhos, frustrados pela sua decadência física e social, que podem desenvolver uma propensão para o ataque inesperado.
Se no dia anterior os famosos pãezinhos tinham alegrado os nossos estômagos, hoje foi dia de bolo, com o esplendor documentado na foto abaixo.
(1) Muggle – Designação originada no universo Harry Potter, para descrever todos aqueles que são estranhos ao mundo da magia. Em Geocaching utiliza-se para designar os que não estão por dentro do jogo.