14 de Dezembro
O dia começou com um pequeno problema. É que até à véspera havia a indecisão sobre o que fazer a seguir a Havana. Talvez visitar Cienfuegos? Hesitava. Talvez ficar mais um dia pela capital? O problema é que já me tinha enganado a contar as noites e tinha reservado menos uma que a necessária. OK, esse erro podia ser corrigido, havia disponibilidade de alojamento mas mais uma é que não. Pois então parece que teria mesmo que ser Cienfuegos.
Só que aqui entrou em cena um novo problema. A empresa rodoviária que liga de forma eficiente as cidades cubanas, a Viazul, tem as suas instalações num local bastante incoveniente, impossível (que é como quem diz….) de ir a pé. Serão uns 8 km a partir da nossa localização. Para cada lado. Para piorar as coisas, até há pouco tempo era possível reservar bilhetes na agência estatal de turismo, que tem escritórios por todo o lado. Mas já não. É mesmo necessário ir à Viazul. Um táxi custará 10 CUC. Muito, mas muito, desagradável. A Maite dá-nos uma opção: usar um táxi colectivo até um ponto mais próximo e caminhar o resto. Preço: 0,30 Eur. Isso já é falar!
De forma que ficámos em casa até mais tarde, e então saimos para o desafio de um táxi comum, que, como tantas vezes sucede, só foi mesmo desafio a primeira vez, e depois tornou-se rotina. Manda-se parar a viatura, pergunta-se se nos pode largar aqui ou acolá e se sim é só entrar. E assim foi. A primeira deu negativa. À segunda foi logo. No banco de trás. Interessante. À frente o condutor e um casal jovem, todos muito escurinhos. Na rádio passava música cubana, para temperar a experiência. E lá fomos, vendo paragens conhecidas noutra perspectiva, rua de San Lázaro acima, passar junto à universidade, depois perto do hotel Habana Libre, e pelo Vedado adentro até ao destino.
Paga a corrida, é meter os sapatos ao caminho. Ainda é uma boa distância mas não sabemos exactamente quanto. No fim corre tudo bem. Foi um passeio não tão agradável mas sem dúvida interessante, demos com a Viazul, comprámos os bilhetes não só para Cienfuegos mas também de lá para Trinidad. Na hora de voltar vimos uma paragem de autocarros mesmo ali. Hummm interessante. Perguntámos a um rapaz que autocarro nos levaria para o centro. O 27. OK, agora é esperar. Demorou, acho que porque tinha acabado de passar um. Demorou mas veio, moderadamente cheio. Preço do bilhete: 1 Peso. 0,03 Eur. Excelente. Foi mais uma experiência notável. Passámos pelo Vedado mas depois de uma curva pareceu-me que nos iamos começar a afastar do local que queriamos. Certamente que o autocarro acabaria em Havana Vieja, como tinhamos perguntado ao moço – e de facto mais tarde reparámos no mesmo 27 a passar por lá – mas para já queriamos mesmo era mais uma dose de gelados na Coppelia.
Bom, teriamos que andar uns 2 km. Sem problemas. Há que merecer estas coisas. Já familiarizados com os sítios, chegámos num instante e lá foi mais uma dose. Aliás, duas, que desta vez segui o exemplo dos locais e pedi logo dois pratos de gelado. Uma brutalidade, mas que dizer… quando me dão gelado virtualmente de borla tenho dificuldade em resistir. Era Domingo, havia mais gente, mas por um triz não existia fila. Na véspera não me tinham deixado fotografar a querida Coppelia mas hoje tirei lá um par de imagens, discretamente, e antes de deixar Cuba haveria de fotografar mais à medida que ganhava confiança. Mais uma pratada de “fresa“.
O dia estava a correr optimamente. Fomos e viemos à Viazul gastando 0,33 Eur em vez de 20 CUC. Os bilhetes de autocarro no saco. E agora, mais uma dose de gelado.
Terminado o deleite doce, começámos a caminhar. Havia uma série de pequenos objectivos não muito longe, entre o Vedado e Centro Habana. Uma passagem pela entrada da universidade, com a sua escadaria e estilo munumental. Uma vista de olhos ao edíficio do Museu Napoleonico. Encontrámos um mercado de rua por acaso, e calhou mesmo bem, deu para comprar uma saca de bolachas de água e sal e para meter o nariz nos produtos locais.
Por fim, uma passagem pelo callejon de Hamel. E o que é isto? Uma pequena rua de cerca de 50 metros, com as paredes envolventes cobertas de graffities e alguns bares. Os cubanos progressistas parecem orgulhosos deste local. Ao longo dos dias que andámos por Havana não foram poucas as pessoas que nos recomendaram uma visita aqui ao “callejon”. Já tinhamos aqui passado, creio que no primeiro dia na cidade, apenas para ver as pinturas murais e ser incomodados por um jinetero. Hoje era diferente. Era Domingo e aos Domingos o callejon anima-se. Durante todo o dia há espectáculos musicais e de dança, a entrada é livre, as actividades são expontâneas. Na realidade esperava uma enchente de turistas estrangeiros. Quer dizer, se no espaço de poucos dias ouvi falar nisto várias vezes, suponho que quase todos os visitantes na cidade estarão ao corrente do que aqui se passa. Mas não. Havia pessoas na conta certa. Chegámos no momento em que as actividades se iam iniciar e ficámos um pouco, mais observando os outros espectadores do que propriamente vendo o que se passava, porque o espaço é reduzido e não me apetecia nada estar no meio da confusão maior.
Como o mundo é pequeno, encontrámos o casal que na véspera nos tinha falado aqui do callejon. Trocámos dois dedos de conversa, dissémos um até à próxima e seguimos caminho. Achei esta actividade demasiado famosa para o que na realidade é. Se calhar isto sou eu a ser provinciano, mas não vi nada de especial.
Por esta altura o corpo começava a queixar-se dos abusos sucessivos durante vários dias. Estava muito cansado e, por causa disso, irritadiço. Queria ver mais mas não dava. Ainda espreitei uns pontos que estavam na minha lista, especialmente edíficios históricos na zona próxima do Capitólio. Uns não encontrei e os que vi enfastiaram-me. Estava decididamente na hora de regressar a casa.
Era perto do meio-dia e a caminhada de regresso foi frutuosa. Era Domingo e as pessoas enchiam as ruas, num acto social que usa o espaço amplo da via pública, em vez das habitações congestionadas. Toda a gente está cá fora, nas mais diversas actividades. Putos jogam à bola, e os vizinhos cortam na casaca. Homens jogam dominó, alguns preparam uns grelhados. Há vendedores ambulantes propondo frutas, bolos, amendoins. Estes momentos, em que os habitantes de Havana saiam em massa à rua, tornaram-se os favoritos na capital cubana. Vimos isto ao fim de cada tarde, quando as pessoas regressavam a casa e descontraiam depois de um dia de trabalho, mas neste Domingo a dinâmica de bairro revelou-se ainda mais intensa.
Depois de uma paragem para comer umas sandes de omelete e depois para visitar a melhor pizzaria de rua de Havana, perto da rua de San Lázaro e não muito longe da “nossa” Casa Blanca, chegámos para o merecido descanso. Ainda era cedo no dia mas para nós já se fazia bem tarde. Já tinhamos feito muito, caminhado quilómetros e estado activos horas a fio.
Foram duas horas, para repousar e começar a ajeitar as coisas para a partida do dia seguinte. Bebi uma Cola cubana, uma réplica de Coca-Cola, bem fresquinha, retirada do mini-bar do quarto. Mas era impossível estar muito tempo entre paredes. Esta cidade é simplesmente interessante demais! Pelas 16 horas saimos outra vez, de novo Malécon acima. Na parte interior, a do porto, a animação era muita. Tanta gente! Uns pescavam, outros namoravam. Pares e familias, gaiatos, turistas e jineteros, tudo por ali. Um homem tocava guitarra e cantava, e como cantava bem. Mesmo ao lado um par de adolescentes lançava papagaio, com um entusiasmo que tocava o coração.
Sentámo-nos na amurada a absrover tudo aquilo. Um jinetero veio falar comigo e como quase sempre, depois da nega foram dois dedos de conversa. O guitarrista parou de tocar, arrumou o instrumento no estojo e veio também ao meu encontro. Tivemos uma troca de ideias muito interessante. Tinha vivido em Munique, e agora estava de volta a Havana. Pergntou-nos se não procurávamos uma “casa particular”. Chegou tarde! Que pena. Adoraria ficar com este tipo que tão bem fazia música e que aliás foi logo dizendo que na estadia estava incluida música da boa, a dele. Mas já me tinha apalavrado com uma outra casa, muito fraquinha, mas enfim, foi-nos recomendada pelas moças da Casa Blanca.
O música afastou-se quando chegou outro jinetero, este um bocado para o parvo, de quem me vi livre assim que pude. Tarde de mais, já estávamos sozinhos. Fomos andando, não antes de sermos convidados pelos jovens para lançar os papagaios. Maravilhoso momento. Mas ainda não tinha terminado. Mais à frente um homem por ali sentado, de ar triste, meteu conversa. Não sei porquê senti que era mais uma proposta de negócio qualquer. Mas não era. Ia para seguir caminho quando ele disse que era errado vir ao Malécon e andar naquela pressa. E parei.
Gregório era professor universitário. Masters na área de biologia. E ganhava 30 Eur por mês. Era um homem profundamente amargo. Desiludido com o seu país e triste com a vida. Falava fluentemente português, uma herança dos anos da guerra em Angola. Ficámos à conversa até que o sol se pôs e começou a arrefecer. Quando nos despediamos pergnou se o podia ajudar com alguma coisa. Leia-se, dinheiro. Podia. Algo que nunca, mas nunca faço. Mas senti-me empurrado a quebrar a regra. Dei-lhe 1 CUC, explicando que era pouco, mas para nós ainda era algum, que andávamos no mundo com uns poucos Euros, que tinham que ser esticados para a próxima viagem… e para a seguinte… e para a outra. Compreendeu, emocionou-se. Deu-me um abraço. Gregório. Mais sobre ele em breve num artigo na rubrica Pessoas do Mundo.