16 de Dezembro
Sair para a rua às 6:53, precisamente. Por alguma razão o sol parece nascer aqui mais cedo do que em Havana. Já é de dia mas as ruas estão desertas. A minha relação com Cienfuegos continua por baixo. Aborrecem-me os edíficios descoloridos. É como se um demónio tivesse visitado a cidade e roubado as cores. E perante isto houve uma pequena alteração numa decisão tomada: o passeio de barco até Castillo de Jagua vinha muito aconselhado. Tinha sido descartado por uma questão de gestão de tempo. 24 horas em Cienfuegos pareceu pouco, claramente curto para dispensar uma manhã inteira em tal passeio. Mas como estavam as coisas, porque não….
Assim como assim a partida do ferry era do centro, não custava ir até lá espreitar, ver as horas de partida e de regresso. A informação que constava no Rough Guide to Cuba era animadora. Saia-se cedinho mas não de madrugada e havia um barco de volta ao fim da manhã.
Passámos ainda pela praça José Marti. Deslavada como tudo o resto. Decididamente, quero muito ir naquela viagem de barco. Para o porto! E boas notícias: sim, os horários mantêm-se. Há um barco às 8 horas. Naquele momento os passageiros da viagem no sentido oposto desembarcam. Algumas pessoas aguardam a partida para Castillo de Jagua. No que me toca, sem sei bem ao que vou. Tinha dado uma vista de olhos, ainda antes de partir de Portugal, e não encontrei grande interesse nesta pequena viagem. Pareceu-me uma quantidade de tempo exagerada para visitar um forte espanhol de finais do século XVIII.
Agora aguardava pela hora da partida e começava a empolgar-me. Estava a dar-me gosto observar as outras pessoas ali presentes, os “táxis” puxados a cavalo que largavam passageiros defronte do “terminal” e ficavam a aguardar clientela. O pessoal começou a fazer fila. Aproveitámos para perguntar ao vizinho da linha quanto custaria o bilhete. 0,50 Pesos para eles, mas para nós se calhar era 0,50 CUC. Quando chegou a minha hora de entrar pus as moedas na mão do cobrador que nem olhou, despejou-as no saco. Foi daquelas alturas que tive a certeza que poderia ter passado por cubano, mas que se dane, é pouco dinheiro na mesma.
À hora certa saimos. Nisto Cuba foi uma surpresa: as coisas funcionam muito melhor e de forma mais organizada do que esperava. É um país menos nonsense do que as narrativas de outros viajantes me fizeram crer.
Está a correr bem. É mais um dia magnifico, perfeito para a jornada. Um rebocador cruza-se conosco, a caminho do pequeno porto, onde existem 4 ou 5 outros barcos do mesmo tipo. Mas para que querem eles estes rebocadores de alto-mar… mais robustos e mais numerosos dos que vi em Havana. A embarcação vai cheia. Infelizmente as coisas mudaram e já não se pode viajar no tombadilho. Agora, só mesmo no interior ou no pequeno espaço da proa, onde arranjámos uma posição.
Passado um bocado a coisa torna-se um pouco monótona. O trajecto leva cerca de uma hora mas já começa a saber a mais do mesmo. A paisagem não muda, o mar é igual. Mas estava escrito que não me ia aborrecer porque tinha acabado de pensar isto quando a embarcação reduz as rotações do motor e se torna evidente que vai encostar a um ancoradouro de uma ilha. Que interessante! Se ficasse mais tempo em Cienfuegos no dia seguinte tornaria a fazer a viagem e passava as duas horas antes por aqui.
Três homens aguardam, com um cesto de plástico carregado do que penso ser peixe. Algumas pessoas desembarcam. Há uma pequena comunidade nesta ilha. E depois, outra paragem, desta vez na costa, numa aldeia. Vejo pelicanos. Navegamos agora muito próximos da margem. A viagem começa a fazer-me lembrar do dia no delta do Mekong, perto de Can Tho, Vietnam. Com os olhos muito abertos vejo os detalhes da vida por ali. As casas, a carroça de cavalos que ali passa… um homem que pesca.
O barco encosta mais duas ou três vezes e sinto que estamos a chegar. Logo somos avisados pelos outros passageiros que se vamos visitar a fortaleza a próxima será a nossa. Não, não é a última (ao contrário do que pensava), mas é a adequada. E pronto. Saltamos para terra firme, o nosso transporte segue caminho e somos ali deixados, a olhar para a envolvência. A aldeia tem um toque de Mediterrâneo. Pequena e isolada, com águas cristalinas em redor. As pessoas que ali sairam diluem-se, seguindo as suas vidas. E o caminho é evidente. Caminho acima.
Lá está a fortaleza, construida para proteger a região dos ataques piratas. Noutra geração, até mesmo antes da minha, o imaginário era povoado por histórias de piratas. Os sabres curvos eram brinquedos costumeiros da criançada, e os petizes mascaravam-se de piratas de perna de pau para as festas de Carnaval. Um imaginário que se foi diluindo até quase desaparecer, apesar dos filmes protagonizados por Johnny Depp, que não terão feito muito para inverter o rumo das coisas, apesar do seu sucesso mediático.
Aqui por estas águas andaram os bucaneiros, corsários e piratas mais famosos de todos os tempos. O Capitão Morgan e Francis Drake visitaram a baía de Cienfuegos. Eles e dezenas de “colegas” de várias nacionalidades: franceses, ingleses, holandeses. Fartos de tantos hóspedes indesejáveis as autoridades espanholas construiram esta fortaleza, que depois de vários embates terá conseguido manter-se como baluarte de segurança das populações… ou isso ou simplesmente a época dos piratas terminou, de morte natural.
Passamos junto à sua porta. Primeiro vamos bater o povoado e depois logo decidimos, consoante as horas e o preço, se a visitaremos por dentro. Não havia muito mais a explorar. Umas poucas casas, coloridas, a fazer lembrar São Tomé. Dois cavalos que pastavam ali no centro, junto a um parque infantil degradado. Uma igreja e um edíficio que parecia ser uma escola. Uma paridade mais uma vez a fazer lembrar o país africano. Andámos mais um pouco mas tornou-se evidente que estávamos já a deixar a aldeia. Voltámos para trás. Vamos lá então visitar a fortaleza.
Depois de passar pela ponte levadiça chegámos à recepção, onde a simpática funcionária nos vendeu os bilhetes (3 CUC) e nos deu umas dicas sobre os destaques do forte, deixando-nos depois para explorar as instalações. Muito bom. A fortaleza foi restaurada e transformada em museu em 2003 e foi um belo trabalho.
Gostei de tudo. Da capela, da prisão, da cisterna de água, das salas com exposições muito bem organizadas e interessantes (com especial foco para a actividade pirata, documentada com mapas e uma fita cronológica comparada, registando eventos locais – incluindo todos os ataques piratas, devidamente identificados – e globais). Para terminar, como uma cereja no topo do bolo, quase de forma literal, subimos à plataforma superior, uma espécie de terraço que abraça a torre mais alta – também ela visitável. E de novo mais um momento daqueles que ficam na memória, aquele pedacinho sossegado, com a carícia do sol morno e a aragem marítima que massajava. Ainda não eram dez da manhã e já tanto tinha acontecido!
O barco de regresso sai às 10 horas. Faz-se tempo de regressar. Tivemos uma hora por aqui e soube a pouco. Vamos sem pressas, até porque vimos outras pessoas que certamente se dirigem para o ancoradouro e vão completamente descontraidas. A maioria dos passageiros saberá as pequenas manhas, estou certo que só saem de casa ou de onde estiverem quando virem a embarcação passar, tempos perfeitamente medidos, feitos de anos de rotina.
Chegamos dez minutos antes. No início apenas duas mulheres aguardam o barco. Depois vão-se juntando mais. Outra embarcação, menor, chega para logo de seguida partir, carregada de passageiros. Esta apenas atravessa a foz da baia. A nossa continua por aparecer. Quinze minutos de atraso. Não é normal, de todo. Sinto o nervosismo nos outros, os olhares na direcção certa, as miradas para os relógios. Há falatório. De novo penso que Cuba funciona melhor do que a fama. Um pequeno atraso e as pessoas reagem. É sinal de que o anormal não é normal.
Meia hora depois vejo o ferry carregar os passsageiros no porto final, que se avista entre as casas. E logo está ali para nos levar. Para lá as cenas repetem-se, agora já sem a excitação da novidade. Os três pescadores que tinham entrado com o balde saem no mesmo ponto. A brisa acentuou-se e há ondulação. Primeiro molho as botas, depois as calças e por fim recebo um duche completo. Os cubanos já se tinham chegado atrás mas mesmo assim há alguns que não se parecem importar nada com a água que os pulveriza.
Chegamos a Cienfuegos às 11:20 e a temperatura entretantou aumentou. Junto ao terminal há muitos hipo-táxis. Gente sobe e desce, há alvoroço. Deixamos o porto para trás, caminhando junto à água. Ainda não tinhamos estado ali. Descobrimos um agradável pontão. Dois rapazes pescam ali. E o calor aperta. Ali perto há uma feira de artesanato e uma esplanada chamativa que, contudo, está cheia de turistas.
A fome vai chegando. Vamos fazer uma segunda visita às nossas amigas da véspera. Desta vez encomendo duas sandes de omolete. Ao contrário de ontem, a casa está cheia. O batido, tão bom como antes, e logo me apresso a encomendar o segundo. Ah que conforto. Soube-me mesmo bem.
Passeamos um pouco pela via pedestre que há ali no centro de Cienfuegos, ligando o Paseo à Praça José Marti. É onde se encontra o comércio de maior prestígio. E desta vez vejo a praça central com outros olhos. A luz está mais agradável, já oferece alguma cor. Como sucede nas praças principais das cidades cubanas cada edíficio é por si um motivo de atracção. Ali em redor há a magnífica câmara municipal, o histórico teatro Tomas Terry, o liceu, esplendoroso, para onde aquela hora entravam os alunos devidamente uniformizados. E, no centro, um bem-cuidado parque urbano, com flores e pérgolas e um coreto. Em redor, outros edíficios, igualmente pictorescos. E ruas, que saem dali em planta de quadricula, com casas de importância menor mas também antigas. Em Cienfuegos há cerca de 400 edíficios anteriores ao século XX, o que para uma cidade do seu tamanho é um número impressionante. Diz-se que detém a maior concentração de edíficios neo-classicistas das Caraíbas e terá por isso sido considerado Património Mundial da Humanidade pela UNESCO.
Afastamo-nos um pouco, tentando absorver algo da vida local. Vamos dar a um velho parque onde repousam umas locomotivas de ar abandonado. Do outro lado uma classe de raparigas está numa aula de basquetebol. A mim vai chegando a preguiça e a exaustão. Já não me apetece caminhar. Estou cansado e está calor. Acima de tudo, sinto que já tenho a minha dose de Cienfuegos. A partir daquele momento estou a fazer tempo para partir.
O que me apetecia mesmo era sentar-me num barzinho local a bebericar um rum. Ver. Simplesmente sentar-me e ver as pessoas que passam. Depois de mais uma volta pelo Paseo, reparando nas lojas e nos murais, pensando que aquilo tem tudo a ver com o cenário de uma telenovela brasileira com a acção passada no século XIX, encontrei a esplanada que procurava. Sim, é verdade, os preços são em CUC e há três turistas sentados. Mas também há gentes locais e a posição relativamente afastada – no Paseo mas já à saída de Cienfuegos – oferece-me algumas garantias.
Entro e pergunto pelo rum. Uma “linea” de Mano Blanca custa 0,50 CUC. Ontem paguei 2 CUC pelo mesmo. Está a melhorar. Venha de lá então essa bebida. Sentei-me no exterior e foi muito agradável. O tráfego automóvel é fascinante. Passam carros dos anos 50 e as carretas puxadas por cavalos. Passam camiões antigos transformados em transportes públicos. E tractores. E as tais motas com sidecars e viaturas adaptadas. Ali no cruzamento onde o bar se encontra, por alguma razão, não páram de passar pesados, cada um mais notável que o anterior. Um espectáculo.
Duas e meia. Vou andando, nas calmas. Continuo em regime de matar tempo. Mais uma passagem pelo Paseo. Se ficasse mais dias em Cienfuegos morreria de tédio. Já estou perto de casa, onde nos guardaram as mochilas até à hora de partirmos. Deito-me no muro junto à água, à sombra, que o calor está forte. Preguiça, descontração. Tique-taque. O relógio vai andando devagar. OK, vamos lá buscar as tralhas. Comemos qualquer coisa na cafetaria da porta ao lado. E vamos embora, caminhando os dois quilómetros ou algo assim até aos autocarros.
Saimos de Cienfuegos ao final da tarde. A noite vai caindo quando deixamos a cidade para trás. E depois, fica escuro. O que guardo na memória são as luzinhas das casas à beira da estrada e da enorme solidão que será viver ali. Ou melhor, seria, para mim. Para os habitantes deve ser normal. Cada uma com a sua televisão. Num país pobre, aqui no meio de nenhures, mas o televisor não falta. Vejo que passamos perto do oceano, muito perto mesmo, com alguns troços a correr de forma marginal, a uns escassos pares de metros da água. É uma viagem curta. Menos de duas horas e estamos em Trinidad, que marcará o meio desta viagem por Cuba, e que foi escolhida para uma estadia mais alargada, para repousar.
O Miguel Angel aguarda-nos à saída do autocarro. Chegámos. Caminhamos para casa. A comunicação com ele não é fácil. Como se não tivéssemos nada a dizer um ao outro. Isso não me agrada, e apesar de continuar a sentir o mesmo durante os quatro dias seguintes, a verdade é que foi sempre prestável e informativo. A casa é maravilhosa, melhor ainda que nas fotos. Esta, como a Casa Blanca de Havana, foram as únicas que escolhi e reservei remotamente. Por serem diferentes para [muito] melhor, do que a multidão de casas particulares disponiveis.
Depois de nos instalarmos e de dois dedos de conversa com a mãe do Miguel com o próprio Miguel, lá em cima, no belo terraço da casa, fomos dar uma volta. Muitos jineteros, do tipo simpático e moderno. Tinhamos alguma fome e queriamos encontrar uma cafetaria. Os restaurantes tinham bom aspecto, muito bom mesmo, mas às tantas não é só o dinheiro. Ganha-se uma rotina e acho que nem que me oferecessem um jantar num daqueles magnificos restaurantes eu aceitaria. Deixou de ser o meu mundo.
Um jinetero indicou-nos uma cafetaria e lá comemos uma sandes de omelete e um, aliás, dois, copos de sumo. Tornou-se num pouco habitual dos dias de Trinidad.