25 de Dezembro
E pronto. Chegou ao fim. Foi uma viagem muito gratificante mas também muito desgastante. Talvez por isso anseio pelo retorno. Por agora sinto-me saciado, chega de aventuras. Sei que vou ter uma saudade imensa de tudo isto, mas também sei que só a vou sentir mais tarde. Para já não estou insatisfeito com a perspectiva de regressar a casa. Por isso não sinto tristeza quando abro os olhos, ciente que será o último despertar em Cuba.
É dia de Natal. Durante a noite o vento uivou nas janelas. Estas, ao contrário do que é costume no país, têm vidros. Pareceu um temporal, acordei diversas vezes, mesmo com tampões de ouvidos. E mesmo agora, já de dia, a borrasca continua. Soa como uma tempestade a sério, mas com o belo muro a trinta centímetros da janela não faço ideia do que vou encontrar lá fora.
Deixo-me estar um pouco na cama. É dia de relaxar. A partida é mais logo, pelas 4 da tarde, aqui do Malécon. Falta muito e há pouco a fazer. Finalmente visto-me e vou à varanda. O mar está agitado mas está longe da tempestade que o vento nas janelas parecia indiciar. Aliás, não está nenhum vendaval. O uivar contínuo era apenas uma corrente de ar exterior.
A marginal está vazia. Um ou outro cidadão anda por ali nas actividades de sempre, mas o trânsito automóvel é uma raridade. As pessoas estiveram a festejar com as famílias e não vão sair à rua num feriado, especialmente se o tempo não está agradável.
Vamos lá dar uma volta. Afinal não só é o último dia como é o único em que o mar está alteroso. Espectacular. Fomos para uma última passagem pela cidade velha. É mesmo um dia diferente. Tanta coisa fechada. E pensar que me tinham dito que o Natal e tal, não era grande coisa, só umas quantas pessoas é que o comemoravam, O tanas! É tão ou mais importante que em Portugal.
A rua Obispo está tranquila. Nunca a tinha visto assim, aliás, tinha-me habituado a evitá-la porque a multidão me fazia comichões. Felizmente a loja para cubanos que tinhamos descoberto logo no primeiro dia está aberta. Compramos uma saca de bolinhos. Mantimentos para a viagem e para as esperas nos aeroportos.
Nas águas do porto há vagas. Mais subtis, sem rebentação, mas os pequenos barquinhos de pesca oscilam, e de que maneira, com a ondulação que entra pela barra e vai até algum lugar.
No terminal de cruzeiros o velho navio russo lá está, ainda. Ferrugento, decadente. Custa a acreditar que é mesmo um navio de cruzeiro. Que tipo de turistas transportará?
Vou voltar ao Malécon. É como se estivesse a atravessar uma enorme mansão, fechando as portas atrás de mim. Literalmente, estou a encerrar a estadia em Havana e em Cuba. No forte da barra o mar está mesmo zangado. Por todo o lado mantos de água em espuma ultrapassam o paredão. Não é perigoso, nem mesmo há o risco de uma molha desde que se mantenha uma distância segura. Num ponto onde não há rebentações um senhor de postura digna está sentado com as pernas para o lado de fora, contemplando, imóvel, sem mais. Não sei há quanto tempo ali estava e quanto tempo ainda permaneceu. Parecia uma estátua, uma em que ainda não tivesse reparado.
Na base de uma estátua verdadeira um sem-abrigo dormia, enrolado, completamente indiferente às colunas de água que se levantavam a poucos metros dele. Não muito longe, numa pequena mancha de pedra seca, feita ilha num mar de poças, um cãozito dormitava também. Por detrás uma turista tirava fotos à fúria do oceano, arriscando uma lição que não chegou a acontecer.
Depois de uma última passagem pela pizzaria fomos andando até à zona da casa, mas não entrámos. À falta de melhor sentámo-nos no lancil do passeio a ver as vagas, os carros e os passeantes. Gosto sempre de esperar pela desgraça alheia quando há possibilidades de molhas de surpresa. Naquele dia vi molhas, mas nenhuma de surpresa. Por alguma razão muitas pessoas simplesmente não se importam. Um corredor parou, mesmo na zona de maior risco, intrigado com algo que viu no chão. E, para minha grande surpresa, tirou de uma câmara ou de um telemóvel e pôs-se a fotografar algo. Aqui e acolá. Foi coberto com uma coluna descendente de água. Não sei como o device não ficou destruído, mas não ficou, porque as fotografias continuaram. Naquele bocadinho o homem levou com a rebentação de três ou quatro ondas, sempre indiferente.
Bem, duas e meia da tarde. Vamos buscar as mochilas que a Tamara tinha guardado para nós. Ainda falta uma hora e meia para a hora combinada com o Joel. Mas queriamos passar pela Casa Blanca para nos despedir. Da casa e das pessoas.
Foi uma emoção. Abraços, beijinhos, exclamações. Estavam lá as duas, e a mãe, de uma delas e do ausente proprietário. Prepararam um chá e ficámos por ali, a falar. Um pouco antes das quatro toca a campainha da porta. Era já o amigo taxista, que vinha adiantado. Não, não. Ainda não estamos preparado. Uma despedida precipitada não é aceitável. Pedimos para lhe dizerem que ainda é cedo, que à hora combinada vamos para baixo.
Mais emoção, de novo abraços, duas ou três frases, e outro abraço. E beijinhos. Em Cuba é um, na face. Mas ali foram muitos “uns”. Adeus Casa Blanca. Quando chegar a Portugal vou deixar as referências mais positivas que alguma vez escrevi. No Trip Advisor e em todo o lado. Olha, por exemplo, no Cruzamundos!
Descemos as escadas, virámos a esquina e lá estava ele, limpando orgulhosamente o carro com um pano. Aproveitei para tirar umas fotografias à turista, com pose e tudo, agora que tinha um carro americano de alguém de confiança e a quem estava a pagar. Dois dedos de conversa e lá fomos. No caminho fizemos um amigo. Ele próprio, Joel. Naquele pedacinho contou-nos tudo, mostrou-nos fotos da familia no telemóvel, retratos frescos, tirados na véspera, durante a consoadas, vivida apenas a três mas com alegria.
Numa rotunda iamos levando com um carro em cima. Joel, furioso, apita. Resmunga contra os loucos. Diz que evita fazer serviço nesta parte da cidade – as vias rápidas que deixam Havana, a caminho do aeroporto e de outras paragens – por causa dos lunáticos. Mais à frente pára ao lado do outro e gesticula, zangado. Vejo que o incauto é um provinciano, provavelmente pouco habituado ao tráfego da grande cidade.
Joel diz que é uma pena só nos termos conhecido no último dia. Adoraria mostrar-nos algumas coisas escondidas da verdadeira Havana, convidar-nos para jantar com a família, lá em casa. E sinto que está ser sincero. Que, ao invés de uma oportunidade de negócio, teria verdadeiro gosto de conhecer gente de outras paragens. Como o compreendo, é assim que me sinto, agora menos, que se tornou vulgar. Mas antes era assim. Como disse sobre outras pessoas, mais tarde escreverei sobre o Joel num artigo da rubrica Pessoas do Mundo.
Já estamos a chegar ao aeroporto. Ele deixa-nos. Tinha alguma apreensão nos processos de partida mas tudo corre muito bem. O José Marti funciona de forma exemplar. Checkin ao balcão, rápido. Depois, pagar as taxas aeroportuárias, ou a taxa de saída, como se diz. Rápido. O único espinho na experiência foi um jovenzito fanfarrão da segurança do aeroporto, que com modos arrogantes me diz que ali não se trocam Pesos Cubanos. Ainda são uns 30 Eur nessa moeda que temos. Mas a senhora que nos atende diz que sim, pode trocar. Mesmo em frente ao nariz do tolinho. Enfim. Tudo acabou bem.
Passagem pelo controle de bagagem. Serviço amigável e rápido. Salas de espera agradáveis. E pronto. A bordo. Foi basicamente um voo nocturno. Não tive paciência para ver filmes mas o tempo passou bem. As cadeiras espaçosas, comida, boa vizinhança. As cerca de dez horas não foram o calvário que receava. Depois, mais uma mão cheia de horas em Gatwick. E finalmente para Portugal, para Lisboa. Ainda precisaria de mais 48 horas para chegar a casa, entre visita à familia e o comboio para sul. Acabou.
Acabei de ler um artigo no Público sobre uma Havana diferente. Deixo aqui o texto porque pode ser que te interesse.
Nos telhados de Havana há uma cidade pendurada no ar.
http://www.publico.pt/mundo/noticia/nos-telhados-de-havana-uma-cidade-pendurada-no-ar-1689979
Excelente! Thanks!
Ricardo, excelente relato e viagem maravilhosa!
Depois de lá ter estado, que balanço faz do uso dos autocarros cubanos em termos da sua comodidade, pontualidade, preços e por aí fora? (penso que terá usado sempre a companhia viazul)
Obrigado e continuação de boas viagens!
Oi Bruno! É assim… o estrangeiro, em principio, só pode usar a Viazul. A Viazul funciona mais ou menos como uma companhia europeia. Anda a horas, os preços são idênticos aos que se practicam em Portugal. No website da empresa podem-se consultar os preços. Agora, o importante é o seguinte: em Havana o terminal é para trás do sol posto, o que é um bocado incoveniente. E além disso convém comprar os bilhetes de véspera. As boas notícias é que em qualquer estação Viazul se podem comprar bilhetes para qualquer percurso da rede Viazul.
Esqueci de falar do conforto. É médio, apesar de de facto nem costumar reparar nesse aspecto. São autocarros velhos para os nossos padrões, luxuosos para os standards cubanos. Têm ar condicionado, o que para mim não surge como uma vantagem, não gosto nada de choques térmicos.