7 de Maio
Apesar de teoricamente ter ainda toda a manhã para usar, não o faço. Aliás, acordo já tarde, a chegar às 11 horas. Depois da molha da véspera, o dia lá fora continua cinzentão. Vou arrumando os tarecos, vagarosamente. Restam-me 27 Litas, cerca de 8 Euros, que planeio “partir” no supermercado, com abastecimentos para a jornada de oito horas de comboio que me aguarda. O Tomas diz que tem de sair mas estará de volta antes do meio-dia para me levar à estação. Digo que não é de todo necessário, são apenas 3 ou 4 km que posso caminhar sem qualquer problema, mas ele insiste. É o tempo certo para ir às compras, onde compro o suficiente para me manter por dois ou três dias com aqueles 8 Euros.
Está um dia depressivo, ideal para deixar um local, para marcar uma transição nesta viagem, dizendo adeus à Lituânia e iniciando a curta fase polaca. A metereologia prevê aguaceiros para Varsóvia, mas só hoje, Para os próximos dias as temperaturas vão subir a pique e o sol vai brilhar.
A viagem faz-se em duas etapas. A primeira, num comboio lituano, até à cidade mais próxima da fronteira, Sestokai. Ali é necessário mudar para uma composição polaca. Os carris tem uma bitola diferente. A velha medida soviética impera nos países bálticos, enquanto a Polónia usa o padrão europeu. A carruagem é muito idêntica à que nos transportou de Vilnius para Kaunas, e a viagem faz-se sem incidentes. Os meus pés estão gelados e molhados, e vou rezando para que não me tragam uma gripe. Uma hora e meia depois estou em Sestokai. Tempo de usar a casa de banho da estação e ver chegar o comboio polaco, cuja locomotiva manobra para se colocar na extremidade oposta da composição, pronta para puxar aquela série de vagões de volta a Varsóvia.
O meu lugar é no primeiro compartimento da primeira carruagem. Estão duas miuditas à conversa, em pé, em inglês. Dá para apanhar que uma é bielorússa e a outra, claramente ocidental, vai passar uns dias a Varsóvia como parte de uma viagem maior. Claramente não gostaram da minha chegada, mas continuam na sua tagarelice de ocasião. Bem, a certo ponto decidem mudar-se para o compartimento da bielorussa, com uma certa ajuda minha, que ajuda a vencer o constrangimento da ocidental, receosa de desafiar a boa ordem dos lugares atribuidos. Ainda mal se tinham sentado, dois compartimentos atrás do meu, quando ouço aquela palavra mágica: “couchsurfing”. Grito eu deste lado: “are you a couchsurfer?”. Claro que por esta altura já estou levantado e pronto para meter o nariz no novo espaço delas. Afinal são ambas “couchsurfers”, ou, melhor dizendo, projectos de tal. A ocidental é finlandesa e só experimentou uma vez, em Riga. A outra nem sei, porque se o mau inglês já saía com alguma timidez para a nova amiga, para mim nem ouvi-lo. E pronto, depois de alguma troca de impressões despeço-me e regresso ao meu reino para as próximas seis horas. E que belo quinhão me saiu em sorte. Bem aquecido, compartimento por minha conta, com cadeiras confortáveis. Uma maravilha. Deu para colocar a escrita em dia, processar fotografias, ver uns episódios de Lie to Me, acabar um livro, iniciar outro, e ainda tirar uma soneca.
O comboio entra em Varsóvia atravessando o Vístula. Do lado direito, o sol põe-se, alaranjando um céu; para a esquerda vê-se o novo estádio nacional, construído para o Euro 2012, onde ainda se dão os últimos retoques.
Tal como combinado encontro-me com o Darek junto da bilheteira número um. Depois dos silêncios do anterior anfitrião, apercebo-me desde logo que a minha vida nos próximos dois dias vai ser muito diferente. O polaco é cheio de energia e ideias, tem uma tonelada de sugestões a fazer, um milhar de opções que coloca em cima da mesa. Sinto-me tonto, talvez pelo contraste.
O meu lar para os dias de Varsóvia não podia estar melhor localizado e o quarto, que o Darek vai partilhar comigo, é agradável. Cravo-lhe logo uma lavagem de roupa e, uma vez instalado, saímos para jantar. E é aqui que a porca torce o rabo. Quando me perguntam porque não gosto especialmente do meu próprio povo, a razão que costuma colocar no topo, a par do que chamo “miserabilismo lusitano”, é a inação que é característica dos portugueses, e da qual apenas nos apercebemos quando começamos a contactar com outras realidades, ganhando assim um termo de comparação que para muitos não chegará nunca. Sair depois das horas de trabalho numa cidade portuguesa é uma travessia no deserto; tirando os pontos quentes da noite urbana, não se vê vivalma, e sente-se que as gentes se centram no seu lar, terminada a jornada de trabalho. Ora bem, se em Portugal é assim, a sociedade polaca consegue a proeza de aprimorar esta letargia. Um sítio bem à maneira para beber uma cerveja? Os que há fecham pelas 22 horas. Jantar? Muito complicado. Está tudo fechado, e de resto a oferta não é especialmente entusiasmante. Mal consigo acreditar. Estou no centro do centro de Varsóvia e não posso beber uma cerveja num ambiente agradável.
Acabamos por ir a um restaurante decepcionante. Caro, com comida regional que, como já pressentia, não me interessa de todo. Se me sinto identificado com a cultura da Europa Central e de Leste, o gastronomia é uma das poucas exclusões nesta boa relação. Simplesmente nada me agrada no estilo de cozinhar destas paragens, sendo que a sua ofensa mais grave é a ausência total do conceito de sobremesa. Fico-me por uma salada, que bem preciso, e que, juntamente com duas cervejas, me custará 10 Euros. Regressamos a casa, que se vai fazendo tarde. O Darek regressou esta manhã de uma longa viagem pelos Balcâs Ocidentais, que se estendeu à Moldávia e Ucrânia, e, por mais energia que habitualmente tenha, começa a ficar cansado. Ficamos mesmo assim na conversa até depois da uma da manhã.