Ser português tem destas coisas. Desprezado por vezes, despertando indiferença noutras alturas. Mas… quando do outro lado está um fã de futebol a reacção é sempre efusiva. Goste-se ou não de futebol, ele existe e é importante para o estado de espírito de muitas pessoas em vastas áreas do Planeta. E quando isso acontece a qualidade do futebol nacional vem em nosso auxílio, ajudando a quebrar o gelo, criando assuntos de conversa, construindo empatias com que o viajante só tem a ganhar.
Há muito tempo era o Eusébio. Depois foi o Figo. Nos últimos tempos o nome é Cristiano Ronaldo. Para quase todo o lado que vá o viajante português ouve estes nomes assim que os interlocutores se apercebem da sua proveniência. Porto, Benfica e Sporting também são mencionados. E depois há os especialistas, que vão mais fundo, cientes da existência de um Paços de Ferreira ou de uma Académica.
A vida de um viajante está cheia destes episódios. Tiblissi, 2010. Estou num bar onde toda a gente já está muito animada. Como sou mais velho e, sendo português, me pareço um pouco com os locais, não desperto grande interesse. Os meus companheiros de viagem, um sueco e um norte-americano, são as estrelas da noite. Mas um georgiano aproxima-se, pergunta-me se é verdade que sou português e perante a confirmação começa a falar de futebol como se não houvesse amanhã. Qual é o meu clube? Sporting. Ah bom… e de repente apercebo-me que o tipo conhece bastante melhor o plantel sportinguista do que eu. Sabe de todas as transferências, para onde foram os jogadores que saíram e de onde vieram os que chegaram.
Curdistão Turco, 2013. A Selecção Nacional portuguesa é a equipa do coração dos curdos. Porquê? Porque as cores do nosso equipamento, o vermelho e o verde, seriam também as de uma Selecção Curda, se esse sonho se pudesse concretizar. Então quando há competições temos milhões de curdos a torcer por nós, apesar de poucos portugueses o saberem. Aprendi isto com um dos milhentos primos do meu anfitrião em Batman (sim, é o nome de uma cidade). Mais um que conhecia o Sporting melhor que eu e que já tinha colocado uma aposta a dinheiro que nesse ano a equipa de Alvalade ganharia a Liga Portuguesa. Deu-se mal, mas deixou-me um sorriso nos lábios.
Síria, Novembro de 2011. Estamos na fase preliminar da sangrenta guerra civil. O táxi onde sigo num circuito de 48 horas pelas províncias do norte é parado vezes sem fim nas barragens de estrada. A cena repete-se. O nosso condutor fala-lhes em árabe mas há duas palavras que se compreendem bem: “turistas” e “Portugal”. E a resposta é quase sempre a mesma. Ao som de “Portugal” os canos das AK-47 afastam-se do meu nariz, os passaportes deixam de importar e levantam-se os polegares. “Portugal!? Friends. Cristiano Ronaldo. Very good! Enjoy Syria! Friends!”. Muitas vezes nem tocam nos passaportes, outras, seguram-nos mas entretidos com os louvores esquecem-se de os abrir antes de os devolverem.
Cuba, 2014. Aqui e acolá há pessoas com camisolas ou calções da Selecção Nacional. Em Santa Clara um “tout” com uma blusa de Portugal chega-se junto a mim. Se preciso de alojamento… de onde sou…. e eu: sou desse país que aí tens nas costas. Foi uma festa. Como quase sempre em Cuba a abordagem com intentos financeiros é facilmente convertida numa conversa de amigos. No dia seguinte, já de noite, do outro lado do passeio alguém pergunta o mesmo… de onde sou… ? De Portugal? “Te gusta Cristiano Ronaldo?”. E eu… “No! Es un coño! Mucho mejor es Messi!”. E o tipo, que atravessa a rua a correr, braços abertos, exclamando algo como “Dá-me um abraço amigo, assim é que é!”. E ficámos no paleio durante um bocado, sobre tudo e sobre nada, e decididamente não só sobre futebol.
Ucrânia, 2012. Um comboio nocturno de Simferopol, na Crimeia, para Odessa. O serão anima-se à medida que vai correndo o vodka e a cerveja. Apesar de não falarem mais do que duas palavras de inglês já vou desenvolvendo grandes amizades com os meus companheiros de compartimento. E nisto entra um tipo e pergunta: “Tu é que és o português?”. Fabuloso. Não fazia ideia de que já era famoso naquele comboio, até porque só tinha saído do compartimento para me abastecer de cerveja com a “picas” (sim, elas é que vende latas geladinhas). E pronto. Ele pediu-me para o acompanhar para podermos falar mais à vontade e lá me jurou amor eterno pela Selecção Portuguesa, que a seguir à ucraniana era sempre a sua. Estava-se à beira do Europeu que se disputou na Polónia e na Ucrânia.
Jordânia, 2011. Num anfiteatro erigido pelos romanos na capital do país, Amman, um grupo de miúdos senta-se à sombra. Dividem-se entre os “Messis” e os “Cristianos Ronaldos”. Mais tarde, num café cheio de homens, a multidão exalta-se com as incidências de um jogo da liga espanhola. Apesar do campeonato português não despertar ali grande interesse, os jogadores lusitanos são bem conhecidos. Na Jordânia a prática do futebol não atinge uma qualidade por aí além. Talvez pela falta de estruturas, talvez pelo clima. Mas os treinadores de sofá abundam e o entusiasmo é total.
São Tomé e Príncipe, 2012. É semana de Liga dos Campeões. Na Terça-feira, num café anexo a um hotel barato, um grupo de homens vibra com as incidências do jogo do Porto. Metade deles encoraja os jogadores, comentários de especialistas, treinadores de bancada. Golo de Jackson. Explosão de alegria. A outra metade, vai encolhendo os ombros, espicaçando os amigos, vertendo veneno nas conversas. Regresso no dia seguinte. Joga o Benfica. Nada mudou, só as metades, que foram invertidas. Os entusiasmados da véspera fazem cara de desprezo. Os outros, saltam e desesperam com as jogadas no relvado. É verdade que São Tomé está ligado a Portugal. Mas não deixa de ser curioso sentir aquela atmosfera tão portuguesa quando se está sobre a linha do equador.
Bulgária, 2011. Pela negativa também se despertam emoções. Uma vez, na Bulgária, ia num autocarro local, entra um tipo já muito embriagado com uma garrafa de vodka na mão. Passou-ma logo para um trago. Conversa aqui, conversa acolá, de forma figurada, porque ele só falava búlgaro, foi-me dando de beber e perguntando coisas, enquanto eu ia respondendo com sorrisos e encolher de ombros. Até que quis saber de onde eu era. De Portugal. Explosão de fúria. Portugal. Muito mau. Entre a resmunguice entre dentes percebi a razão. Na semana anterior, quer o Sporting quer o o Porto tinham infligido severas derrotas a duas equipas búlgaras.
De resto, fora de Portugal, Cristiano Ronaldo não é especialmente popular – e como eu os compreendo. Mesmo o estilo de jogo português tem bastantes críticos. Muito defensivo, pouco espectacular. Mergulhos dramáticos para o relvado. Há alguma razão nisto. Nunca foi motivo de conflito.
Etiópia, 2018. Sento-me junto às quedas de água do Nilo Azul. É fim-de-semana e há muitos grupos de etíopes que visitam o local. Um deles meter conversa. Logo o futebol se torna o centro do diálogo. O tipo conhece o jogo por dentro e por fora, acompanha todas as ligas nacionais, desde a Argentina até à Dinamarquesa. E, claro, sendo eu português conversamos longamente sobre as incidências do nosso campeonato. E sobre a falta de competitividade do futebol na Etiópia.
Azerbeijão, 2019. Estou a ficar em casa de um local em Sheki. Grande hospitalidade e muito interesse pela presença deste estrangeiro por parte dos seus amigos. Passamos horas a conversar num café, consumido chá atrás de chá. Os assuntos são variados mas nenhum desperta tanta paixão como o futebol. O meu anfitrião nem é muito dado ao desporto, mas os dois amigos vibram com a conversa. Conhecem o futebol português quase como uma adepto de cá. Jogadores, equipas, transferências, resultados. Falo-lhes de Bruno Fernandes, garanto-lhes que será o próximo grande jogador português a nível mundial. Ao serão, vimos todos um jogo do Benfica, num telemóvel, com o streaming aos soluços. Uns meses mais tarde, quando ele se transfere para o Manchester United e entra a matar, eles procuram-me logo no Facebook para me felicitar pela minha análise certeira.
Belize, 2016. Vou dormir num hostel na pequena cidade de San Ignacio, próximo da fronteira com a Guatemala. A noite já caiu, tenho fome, saio à procura de algo para comer. Encontro uma tasca vazia. Entro, peço um feijão com arroz e uma cerveja. O rapaz que atende serve-me, pergunta de onde sou. Entretanto chega outro cliente, conhecido da casa. Falamos, claro, de futebol, e o jovem cintila ao falar de Cristiano Ronaldo. Não é segredo que não sou fã desse jogador e digo-lhe isso mesmo. O rapaz murcha, amua, varre o chão, deixa de me falar. O outro cliente olha para mim e diz algo como “… eh lá, o que te foste arranjar, o puto adora o Cristiano Ronaldo, é fanático do Cristiano Ronaldo”. No fim, lá me falou outra vez, mas de entusiasmo muito arrefecido.
E é isto. Quando a tribo do futebol cobre o Planeta, dá jeito ou no mínimo é curioso ser-se de um clã vitorioso: Portugal.
Viva Ricardo, Mais um excelente artigo com um ponto de vista “diferente”. Gostei de ler, claro. Obrigado pela partilha.