A noite foi passada em casa do meu amigo André, em Lisboa. Em Alvalade, onde por assim dizer nasci e decididamente cresci. Num dos quartos da casa que há muitos, muitos anos conheci tão bem, quase como se fosse a minha. Uma base conveniente, próxima do aeroporto de Lisboa, facilmente alcançável de Metro.

No dia seguinte, pela manhã, havia o primeiro voo. Lisboa – Londres Heathrow. Depois, uma escala sem história. Praticamente o dia todo à espera. Pronto, a tarde apenas, OK. Por volta das 23:00, com mais de uma hora de atraso, iniciava-se ao longo voo. Quase nove horas no ar, mais uma série de outras horas, ganhas pela travessia sucessiva de fusos horários.

A aterragem na capital da Índia deu-se já depois do almoço. Uma noite mal passada, claro, oh como detesto voos nocturnos! O avião ia quase vazio. Assim que o jantar foi servido e sorvido, as pessoas começaram a ocupar linhas inteiras de bancos, fazendo delas camas. E eu, mesmo com algum atraso, acabei por fazer o mesmo e encontrei o meu espaço para o resto da noite. Deu para dormir alguma coisa.

A chegada foi simples. Passagem pelas formalidades de entrada na Índia, troca de dinheiro, linha especial de metro, mudança de estações e, finalmente, a saída para a verdadeira Índia, em Jangpura.

Meteu medo. É o inesperado, o desconhecido, e a materialização do real, que choca com o esperado, com as expectativas formadas por anos de input, filmes, estórias, relatos na primeira pessoa ou não.

Calor não estava. Pelo contrário, mas a isso já lá vamos. O que estava era húmido. E como europeus merecemos uma atenção dispensável por parte dos condutores de tuk-tuk acumulados à saída das escadas do metro. Acho que foi mais uma questão de atitude porque à medida que os dias se passavam, essa atenção foi-se esbatendo até se tornar inexistente. Um fenómeno muito curioso que me ensinou algo.

Caminhada até à casa do anfitrião Couchsurfing. Uma situação esquisita, uma das mais bizarras que tive entre as centenas de interacções que tive nesta comunidade. O tipo era advogado e aquilo não era bem a casa dele, era um apartamento que existia por razões indeterminadas, um simples património alugado, meio escritório meio residência não sei de quem e porquê. Por lá passava o dia um empregado que tratava de tudo e no caso nos abriu a porta e indicou um quarto a modos que desagradável. O poiso para os dois dias seguintes.

A caminhada até lá foi um pouco tensa. Aquela tensão que sinto nas primeiras horas num país totalmente desconhecido. Não usufruí, mas com o passar dos dias  (foram só dois mas pareceram muitos mais) passei a apreciar aquele trajecto.

O que nunca consegui gostar foi do quarto, da casa, do ambiente estranho. O anfitrião talvez aparecesse mais tarde, e isso era tudo o que sabia. E entretanto conformei-me: aquele primeiro dia na Índia seria perdido. Estava cansado, de forma alguma preparado para sair para a cidade e começar a explorar. Mas o mais importante de tudo, estava um frio como nunca senti. Nem na Islândia. Era um frio que vinha por baixo e apesar de estar vestido com tudo – e assim me mantive durante vários dias – e coberto com duas ou três mantas, mais a mantinha que trouxe do avião, continuava gelado. Comecei ali a chocar a constipação que me perseguiu durante toda a viagem e que a meio me mandou para a cama com uma gripe a valer.

Ficou escuro. Íamos sair. Era preciso comer. E quando chegámos à porta do prédio, o empregado diz-nos que o “mestre” iria chegar a qualquer momento e para esperarmos.

Lá veio, passageiro de um carro que parecia ser conduzido por um outro empregado. Não houve aquela química inicial, nem sei se algum outro couchsurfer conseguirá tê-la com ele. Entrámos todos juntos, jantar adiado. Mais tarde chegaram amigos dele. Gente de poder. Começou a ser servida bebida e o álcool derreteu o gelo, ou lá o que quer que fosse aquilo, pelo menos temporariamente.

O anfitrião encomendou comida pelo telefone para nós, que chegou, deliciosa. Que maravilha. De repente um dia que estava a correr muito mal terminou bastante bem. Diverti-me imenso com aquele grupo de amigos, com quem deu para rir, ter conversas sérias e aprender. Um deles era proprietário de uma das maiores universidades privadas da Índia. “Apenas” isto. O outro estava também no mesmo ramo e parecia português, olhava para ele e via-o com uma roupa de forcado, encorpado, face de ribatejano.

Acabou em grande, lá se despediram, ficámos sós de novo, no apartamento gelado, e seguiu-se uma noite de sofrimento, cumprimentos do frio inesquecível de Nova Delhi.

 

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