Este seria o dia de uma extravagância: ficar numa antiga casa, repleta de história e certamente uns quantos furos acima do meu orçamento habitual para uma dormida. A Casa Menezes fica numa zona remota e contudo próximo de um eixo rodoviário principal, ligeiramente a sul de Panjim. Qualquer autocarro que fosse para Margão seria bom para nos deixar nas imediações e assim foi.
Pequeno-almoço tomado no Abrigo do Botelho, ouvidos os últimos conselhos do Roy, lá partimos, mais uma vez por aquele percurso já tão familiar, até à estação de autocarros. Da paragem mais próxima até à Casa Menezes ainda foi uma boa caminhada. Chegados esperámos um pouco pelo David, jovem proprietário da casa, que nos leva a uma visita guiada pela mansão. Aquelas paredes transpiram história. E não só as paredes… a cama do meu quarto tem 500 anos. Quase que faz impressão dormir sobre uma peça de mobiliário que teria cabimento em qualquer museu.
A estadia teria sido perfeita se não fosse a estrada com algum, que é como quem diz, demasiado, movimento mesmo em frente à casa e bastante próximo do meu quarto, que era o mais próximo daquela parte do edifício. Demasiado barulho, quer dos carros, quer do ladrar dos cães e ainda das crianças que por ali brincavam. No meu imaginário uma casa assim pede um silêncio cortado pelo vento e pela passarada, talvez alguns animais, sim, mas aquele nível de ruído estragou parcialmente a experiência.
Do outro lado da estrada encontra-se o restaurante, bar e piscina da Casa Menezes, um espaço de que gostei bastante, com um gerente exemplar, boa comida e bons preços. Íamos com fome por isso não tardou a experimentarmos ali o famoso Vindaloo, um abastardamento do português “Vinha de Alhos”. É um prato muito apreciado em Goa, algo picante, mas que muito me agradou. À sobremesa, uma boa fatia de Bebinca, um doce dos deuses também muito característico de Goa.
Depois da refeição, um período de repouso, no conforto relativo do quarto (ainda, o barulho), para depois, com a descida da temperatura partir para uma pequena caminhada exploratória das redondezas.
Área pacata, com algumas bonitas casas à beira da estrada. Como povoação não há muito em Batim. Logo ao virar da próxima curva encontra-se a igreja, onde alguns homens entorpecidos pelo calor simulam umas obras de renovação, que hão-de ser concluídas mas que, digo eu, seriam melhor feitas fora das horas em que o calor torna impossível um trabalho físico efectivo.
Prossigo, pela estrada agora sossegada, tornada vazia graças ao repouso que ainda tem lugar entre o almoço e a parte final da tarde. Dentro em breve os carros e sobretudo as motorizadas regressarão, mas para já o peão é rei. Ou seja, eu.
Tinha visto no mapa a existência de um cemitério, que encontro, mas que não me impressiona. Ali é uma área ainda mais calma, sem grande densidade de habitações. Passo junto à oficina de um carpinteiro. Alguns homens trabalham a madeira. Caminho mais umas centenas de metros, mas já não tenho muita vontade de prosseguir, começa-me a parecer que não chegarei a parte alguma, que o mapa está desactualizado e que se prosseguir terei que regressar pelo mesmo caminho, o que não é particularmente excitante.
Por isso, depois de encontrar uma segunda igreja, dotada com um amplo espaço para eventos no exterior, decido mesmo retornar e iniciar a caminhada de volta a casa. Não se vai passar muito mais nem tal era previsto. Este dia tinha sido pensado para relaxar e apreciar uma casa especial, daí o maior impacto na memória negativa do barulho relativo das imediações.
Esticado naquela cama multisecular fui lendo, embalado pela ventoinha. Algumas coisas da biblioteca do anfitrião, já dotada com o maravilhoso volume que faz o levantamento do património arquitectónico de Panjim, o que significa que em algumas áreas é um inventário casa a casa, mas também o meu livro.
De repente, chega-nos música aos ouvidos, uma música melodiosa, agradável, que parece ser interpretada ao vivo. Vem do lado de lá da estrada, deve ser do restaurante da casa. Saímos, como animais encantados por aquelas notas e pela voz de mel e vamos até lá.
Uma jovem canta, acompanhada apenas por um música. Talvez o seu pai? Não sei. Gosto de pensar que sim, por alguma razão. E fico por ali, tenho que ficar. Será um serão inesperadamente agradável. Seguem-se as interpretações. Algumas em inglês, de que gostei menos. Algumas no idioma local, com alguma magia. Mas para mim o ponto alto foi mesmo quando, para grande espanto, começo a ouvir…
Cartas de amor
Quem as não tem
Cartas de amor
Pedaços de dor
Sentida d’alguém
Cartas de amor, andorinhas
Que num vai e vem, levam bem
Saudades minhas
E isto, para partilhar, gravei, e assim ficou (já seguem o canal de Youtube do Cruzamundos):