1 de Março de 2023

Esta manhã já não esperei ver o Abdul à porta. Olhei para o lado oposto da estrada. Nada. Esperei um pouco e um pouco foi suficiente para ele aparecer lá. Nova travessia da via, hoje mais complicada, por alguma razão há muito mais trânsito do que na véspera.

O tuk-tuk está imaculado como sempre. Instalo-me atrás e encomendo o serviço. Lahore Museum. E lá vamos, após o solene anúncio-confirmação do destino: “Lahorrrreee Museum”.

Este homem a conduzir é um espectáculo. Profissional ao máximo, com um misto de eficiência, segurança, rapidez e conforto para o passageiro. Em iguais partes. Mas debaixo daquele aspecto de santidade esconde-se um pequeno diabo que pragueja contra os outros, como qualquer taxista de Brooklyn. Em Urdu, claro, a sua língua, e as suas pragas soam-me como música. Delicioso!

Na véspera, ao serão, quando disse ao Khan para esquecer isso de me arranjar um carro para me conduzir por Lahore, que tinha arranjado as coisas com o meu condutor de tuk-tuk, ele até mudou de cor. Que não, por isto e por aquilo, segurança, aldrabice e mais não sei quê. Insisti, disse-lhe para estar calmo que não me safava mal a avaliar pessoas. E ele insistia também, que não podia ser, que era melhor um carro, que jeito tinha. Até que lhe mostrei uma foto que tinha tirado ao Abdul. Aí convenceu-se. Olhou rapidamente e disse: “Ah, é um bom homem”. Não sei como chegou a essa conclusão tão rapidamente mas suspeito que terá sido o estilo tradicional e devoto do Abdul.

Bem, então chegámos ao museu e combinámos uma recolha. Não ali, mas numa das portas da Lahore antiga. Ele entendeu bem, e mais ou menos à hora combinada lá estaria. Com alguns soluços esta comunicação improvisada correu sempre bem.

Visitei o Museu de Lahore, instalado num edifício histórico, construído pelos britânicos em 1887 como homenagem à rainha Vitória. É o maior museu do Paquistão e sem ser fabuloso visita-se bem, com interesse e gosto. Sendo o maior não é mesmo assim muito grande. A colecção é um misto temático, com algumas exposições dedicadas à história militar, outras a artefactos religiosos. Há um pouco de tudo.

Terminada a visita sentei-me um pouco no exterior a descansar e a estudar o caminho para a cidade antiga. Umas centenas de metros que percorri sem problemas, com os olhos muito abertos, a observar tudo o que conseguia. Tive que atravessar algumas ruas com trânsito bem intenso, mas faz-se bem. Já agora… a população de Lahore é de quase 14 milhões e é actualmente  a cidade mais poluída do mundo. Mas não se sente isto assim. Nada comparado com Dhaka. Aliás, depois de Dhaka isto aqui sabe a uma tranquila aldeia Suíça com o ar cristalino dos Alpes.

Vejo uma venda de livros de rua, vou-me aproximando da cidade antiga, as ruas tornam-se mais estreitas e sujas. Muito comércio e uma multidão considerável. A maioria das viaturas que circulam são tuk-tuks e motas. Alguns carros e também umas quantas carroças puxadas por animais.

Chego ao portão da cidadela. Será ali que daqui a pouco me reencontrarei com o Abdul mas agora é tempo de o cruzar e explorar um pouco do que me espera ali dentro.

Fascinante. É como uma viagem no tempo, um ingresso num imaginário de histórias como já não se contam, narrativas que herdei do meu pai, reforçadas com os álbuns de banda desenhada que me preencheram a juventude.

É como que um bazar sem fim, muito sujo, claro, com cheiros intensos a espaços. Mas colorido, vibrante, cheio de vida. Há lojas e bancas de tudo. Incluindo peixe e carne fresca. Tão fresca como levam a crer os carneiros ainda vivos alinhados à entrada.

A modernidade revela-se apenas nos veículos motorizados e nos telemóveis. Tirando estes intrusos bem poderia estar na Lahore oitocentista!

Está na hora de voltar. Sento-me num longo banco de pedra centenário mesmo no portão de entrada, que é como que um pequeno túnel, onde outrora se encontraria a guarda de serviço, controlando o movimento de pessoas e bens. Ali posso observar sem dar nas vistas e deixo-me estar durante um bom bocado.

O Abdul dá-me uma boa seca. Espero, espero e espero, até que lá vem. Bom, sigamos para a próxima aventura. A segunda e última paragem do dia será o complexo do túmulo do imperador Jahangir. É um pouco mais distante e há que atravessar o rio. Nem o Abdul sabe exactamente onde é, e não aproximação pede indicações a umas pessoas.

Lá estamos. Dá-me um tempo para visitar. Curto. Regateamos uma extensão. Penso que tal como ontem ele está limitado no tempo por alguma razão.

Gostei muito de visitar este local. Dos pontos altos da viagem no Paquistão. Cruzo-me com o tal grupo grande de portugueses que anda por estas paragens. São de facto bastantes, como me tinha dito o tipo na mesquita. Mas vão-se embora e não há muita gente no complexo. Tenho tudo quase por minha conta.

Os edifícios tumulares são lindos e respira-se ali uma tranquilidade que não julgaria possível numa cidade deste tamanho.

Um tipo com um boné com a bandeira de Portugal mete conversa comigo. Diz que é guia e quer vender-me os meus serviços. Claro que não. Conversamos um pouco, o pouco que é possível com o meu não existente Urdu e o inglês limitado dele.

Os jardins estão mais bem arranjados do que os famosos Shalamar, que visitei na véspera. E não há apenas o túmulo do rei por estes lados. Há também o da rainha e depois outros túmulos menores. Um lugar de facto fascinante e muito sossegado, uma visita indispensável a quem venha até Lahore.

À saída lá estava o Abdul. Gosto mais quando ele espera. Assim não me deixa a mim a esperar. Regresso a casa.

Comi no espaço de restauração universitário, onde me diverti tanto como no dia em que cheguei. Para apimentar as coisas ainda tive direito a um pequeno drama, com um estudante muito irado a atacar fisicamente outro, que pela expressão devia ter algum peso na consciência. O climax da cena deu-se quando voou uma das cadeiras de plástico, mas a cena ficou-se por ali.

Para o serão o meu anfitrião tinha-me convidado para um passeio com um colega. Algo que eles fazem como um ritual, mas que hoje teria este convidado de honra. Uma boa parte da conversa foi em Urdu e limitei-me a caminhar com eles, na escuridão, pelos campos relvados da Faculdade de Desporto. Depois passou-se para inglês e debatemos questões alargadas, essencialmente filosóficas. Foi deveras interessante.

 

 

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