O comboio largou-nos às cinco da manhã na estação central de Saigão. Para trás ficaram mais de mil quilómetros, percorridos, numa longa cavalgada que se iniciou em Danang, em cerca de quinze horas. Estamos no pico da noite mas o calor na sala de espera é infernal. Apesar das ventoinhas na rua está um pouco mais fresco. Não há que ter macaquinhos na cabeça sobre chegar a Saigão a estas horas impróprias. Não só a segurança é garantida (como em qualquer parte do Vietname) como tudo o que se precise se vai encontrar: táxis, transportes públicos, comida…
No nosso caso, com uma reserva num hostel lá para o centro da cidade, só resta esperar. Decidimos que pelas oito nos pomos em marcha, nas calmas, de forma a nos apresentarmos no Khoi Hostel a horas mais decentes e esperar que nos guardem as mochilas até podermos entrar para o quarto. Ainda durmo mais um bom bocado, esticado ao comprido nos bancos – extraordinariamente confortáveis e adequados – do terminal.
Nasce o dia e continuamos a fazer tempo. Batendo as oito horas, pegamos nas trouxas e saimos para o exterior em busca de um táxi. Avistamos um da Mai Linh, que, como foi dito noutra crónica, é uma das companhias que oferece algumas garantias de bom serviço, e demos-lhe a morada. Sem problemas. Evoluimos no trânsito já denso durante um bom bocado. No GPS vou observando o percurso, que é o correcto. Mais uma vez o condutor do táxi não me deixou ficar mal. Trajecto bem escolhido, preço justo, condução primorosa.
O problema chega agora: já estava avisado para isto, o hostel está muito bem escondidinho, e nem o GPS me consegue ajudar. Andamos para trás e para a frente, de roda do mercado nas imediações do qual se encontra o nosso pouso. Mas onde…? Acabamos por entrar num beco que tem um outro hotel e, em desespero de causa, perguntamos na recepção por indicações. A menina não conhece mas diz logo para não nos preocuparmos que não sairemos dali sem a devida ajuda. Senta-se ao computador, faz as suas investigações, troca umas impressões com um colega mais velho que entretanto ali passa, e, satisfeita com as conclusões alça de um mapa e diz-nos exactamente onde é e como lá chegar. Afinal estava ali tão perto…. e tão longe. Com as devidas explicações chegamos lá de imediato.
Mais uma vez, como quase sempre sucedeu nesta viagem (sendo que a excepção foi em Vientiene) fomos muito bem recebidos no nosso hostel. A moça da recepção desfez-se em desculpas por não podermos ocupar o quarto e entretanto uma senhora mais velha traz-nos um pequeno almoço a que não teriamos direito, claro. Um gesto simpático, perpetuado em mil pequenos detalhes durante o tempo que aqui ficámos. Não amei especialmente Saigão, mas se voltasse, tornaria a escolher o Khoi Hostel, pela localização, pela qualidade do quarto (estamos a falar de um hostel com uma diária de meia dúzia de Euros incluindo pequeno-almoço) mas sobretudo pelo pessoal.
Tratadas das formalidades, de estômago forrad0, damos as mochilas à guarda da menina e vamos para a rua, explorar. Saigão. com os seus sete milhões de habitantes, é uma cidade grande, mas não das maiores por onde já passei. Contudo, a intensidade do seu palpitar é algo que nunca vi. As multidões e sobretudo o trânsito podem ser asfixiantes. Começo a compreender porque é que muitos consideram que o bem mais precioso na India é privacidade. Em Saigão não há um segundo em que me sinta sozinho, existe sempre uma pequena multidão, onde quer que vá. Não encontro aquela ruazinha mais sossegada, o canto do jardim onde não se vê ninguém… não… gente, gente por todo o lado, andando, para trás, para a frente, estacionários, de todas as idades. E gente que interage, aqui com o “jezinho”. Numa caminhada de meia-hora sou abordado por uma mão cheia de pessoas. Umas querem fazer negócio – pode ser a venda de côco ou de transporte – enquanto outras desejam apenas ajudar, sem mais. Perguntam-me para onde quero ir, e logo indicam a direcção, mostram no mapa.
A construção é moderna. Tirando os vietnamitas que me rodeiam, podia estar em Lisboa, na Av. 5 de Outubro ou na Defensores de Chaves. Em Hanoi este tipo de ambiente só se encontrava fora do centro, mas em Saigão é o inverso. Há cafés e lojas à ocidental, em contraste com o comércio tradicional da zona central de Hanoi. Ali perto há festa no parque. Uma feira de turismo, com stands regionais que promovem as respectivas zonas, operadores, representantes da hotelaria. Talvez por necessidade, para obter uma frescura que não falta a Hanoi em boa parte do ano, Saigão tem uma cultura de parques e jardins bem mais intensa. Um pouco por todo o lado há manchas verdes, muito verdes, muito bem irrigadas, que transmitem uma preciosa frescura no ambiente.
O primeiro objectivo da manhã é o Palácio da Independência, que ganhou o seu nome por ali ter tido lugar a cerimónia da independência do Vietname, no caso, do Sul. À chegada, era apenas uma vaga referência de um local a visitar. Quando deixámos Saigão, manteve-se como a experiência mais notável daqueles dois dias. Compramos os bilhetes – preço simbólico – e uma garrafa de água e entramos no recinto. No vasto relvado há um evento com crianças, tudo muito “comunista”, dentro do espírito dos “pioneiros” (um movimento equivalente ao dos escoteiros com forte influência política, muito comum nos países comunistas), com bandeiras vermelhas por todo o lado, imagens de Ho Chi Min, meninos e meninas com uniformes, que sobem ao palco para receber louvores e medalhas. Mesmo ali ao lado está um tanque de guerra em exposição. Alegadamente o tal que ofereceu a imagem icónica da queda do Vietnam do Sul, ou seja, do momento final da longa guerra, quando entrou neste mesmo palácio derrubando com violência o portão central.
Actualmente o palácio é um museu. Extraordinário. Todas as salas foram basicamente deixadas como o eram em meados dos anos 70 e o visitante não consegue evitar sentir-se levado numa viagem pelo tempo, até aquela época. O que no meu caso pessoal é especialmente marcante, porque aquela é a minha época, as minhas primeiras memórias, o mundo que me formou. De resto, a “exposição”, está impecável! Tudo tem elucidativas legendas, com textos bem redigidos e devidamente traduzidos, por vezes com imagens da altura, histórias narradas de forma cativante, sem propaganda barata. Durante o tempo que andei por ali, o fascínio esteve sempre presente. Basicamente todo o palácio está aberto ao visitante e as surpresas sucedem-se. Salas de reuniões, salas de banquetes, zona de quartos VIP, escritórios de trabalho… no topo do edíficio, uma sala criada por um presidente para reflexão espiritual e adoptada pelo seu sucessor como salão de festas. Um piano encontra-se sobre um chão de soalho que grandes bailes terá testemunhado. Ali ao lado um helicóptero de origem norte-americana está pousado no telhado. Um pequeno cartaz explica que o presidente sul-vietnamita tinha sempre um destes ao dispôr, no heliporto do topo do palácio.
Dali a vista sobre a cidade é magnífica. Tenho dificuldade em arredar pé, mas o relógio não pára. Descemos as escadas de serviço e acabamos na cave, onde se encontrava o bunker utilizado para gerir a guerra, na perspectiva sul-vietnamita. Mais uma série de salas e corredores, tudo bem explicadinho…. o centro de telecomunicações, a sala da guarda, o paiol de armas, o gabinete de emergência do presidente, mais um quarto anexo. Aqui em baixo está muito fresco, o que me faz simpatizar ainda mais com aquele momento. Entretanto o Palácio está encerrado a novos visitantes. Como todos os museus no país, encerra para almoço. Mas a nós que já lá estávamos dentro deixaram prosseguir a visita. E ainda bem. Numa sala está a ser projectado um filme sobre a história do edíficio, construido numa versão anterior que foi seriamente danificada pelas bombas largadas por um piloto traidor ao seu regime, numa tentativa de assassinar o presidente. A ala direita foi completamente destruida nesse atentado e o presidente seguinte decidiu construir um novo palácio, este, que hoje aqui vemos. Gostei tanto de tudo isto que fiz uma coisa rara: comprei um livro sobre o Palácio da Independência, na loja de “souvenirs”. Por menos de 2 Eur.
Quando deixamos o edíficio principal, não se vê ninguém nos jardins. O portão está encerrado e apenas uma discreta porta de serviço se mantém aberta, para os que pretendam sair o possam fazer. Vamos continuar a caminhada pelas ruas de Saigão, agora sem um destino bem definido. Ainda é relativamente cedo, damos uma vista de olhos pelo exterior da catedral católica, ali perto, e pelo monumental posto de correios centra construido pelos franceses e que ainda hoje é um dos pontos de grande charme de Saigão. É bela por dentro e por fora e uma visita é recomendada. Ainda funciona como central de correios, com algumas lojas vocacionadas para o turista a ocupar as galerias laterais. No fundo, bem alto, um bonito retrato de Ho Chi Min. A fachada é chamativa, bem ornamentada, com o relógio em local de destaque, e uma área ajardinada marcada por esculturas que chamam a atenção.
Vamos ao museu militar, que é conhecido em inglês como o War Remnants Museum anteriormente denominado, de forma politicamente mais incorrecta, Museum of American War Crimes. Detesto aquilo. Profundamente. Está referenciado como um dos pontos a não perder nesta antiga capital. E ninguém perde. Todos os turistas se concentram ali, há gente por todo o lado, uma multidão. A exposição exterior é desinteressante, com peças sem valor algum. E no interior não tenho paciência para mais do que uns minutos no piso térreo. Ao contrário do museu do Palácio, de onde acabo de vir, este é uma caixinha de propaganda barata, reverenciada por hordas de turistas ocidentais. Felizmente que o bilhete é barato (mas de longe mais caro do que qualquer outro museu que tenha visitado no Vietname) e não me custa a abandonar o local antes de consumar a visita. Um grande NÃO.
Não estamos muito longe do hostel. Talvez 2 km. Vamos tomar posse do quarto. Passamos em frente a uma Pizza Hut que fica referenciada. E pronto, estamos instalados, descansamos um pouco, mas apenas um pouco. Há muita energia, quero ver mais, descobrir outras coisas. À chegada do final da tarde saimos para a rua. Na teoria iamos só sentir o ambiente daquela hora, esticar um pouco as pernas, mas acabamos por dar um muito longo passeio, talvez 10 ou 12 km, pelas avenidas de Saigão. Que dizer… estava agradável!
Começamos por subir aquela que se poderá consider a avenida principal. Comércio e gente por todo o lado. Muita. Mas anda-se bem, atentando nos detalhes, nas pessoas. Passamos em frente a uma casa de gelados. Olhamos, hesitando. Está uma família sentada a deliciar-se com taças de gelado e o homem diz-nos em inglês que estão muito bons, se quisermos experimentar não nos vamos arrepender. Sorrimos mas prosseguimos. Quero ver mais! Entramos agora na área finória da cidade. Todas as cadeias comerciais de renome se encontram aqui presentes. Calvin Klein, Swarosvski, Hugo Boss e afins. E hoteis. De onde vimos também os há, mas mais com sabor a hostel, é o turismo de pé descalço enquanto aqui a fruta é outra. Respira-se outro ar, claramente. Não muito longe encontramos a casa da ópera, e os hoteis Rex e Caravelle, dinossauros renovados que ocopavam lugares de destaque nos tempos em que o Vietname do Sul era influenciado pelos EUA. Aqui se reuniam políticos, homens da CIA, oficiais do exército, jornalistas. Toda a gente que era alguém tomava o café no Rex, que agora tem como vizinho… quem mais… Ho Chi Min, que o observa, do alto do seu pedestal, no jardim fronteiro.
Dali caminhamos em direcção ao rio, mas o dia está feito… agora é regressar, calmamente que estamos longe. A noite vai caindo mas o trânsito não abranda. Passamos por largas avenidas, forradas a comércio. Voltamos a passar em frente ao mercado central e por esta altura a fome já está a apertar. O plano inicial era jantar na Pizza Hut mas não vai dar. É preciso combustível agora. Está ali um restaurante árabe. Subimos ao terraço e somos muito bem servidos. Não será a refeição mais económica nem mais generosamente servida, mas o momento é agradável. Nesta fase da visita ao Vietname já contamos o dinheiro, tentando gerir o que há até à passagem da fronteira com o Cambodja. Pedimos hummus para dois. Soube bem mas, suspeito, mais pela fome aguda do que pela qualidade. Passado um pouco dois casais de arrogantes holandeses sentam-se noutra mesa. Já está escuro, é de noite.
Quando saimos, atravessamos um parque que fervilha de vida. Há carradas de gente a fazer desporto, sozinhos ou em grupo. E a dançar. Muita gente que usufrui daquele espaço público. Está um ambiente muito agradável. Encontramos o caminho para o hostel.
O dia acaba em grande, quando descubro que na TV do quarto posso ver o que equivale à nossa Sport TV. E hoje é dia de Premiere League! Maravilha! Puxo a TV mais para perto da cama, vou lá abaixo e volto com quatro latas de cerveja. Foi fechar o dia com chave de ouro!