Às cinco da manhã estávamos a pé e conosco a pobre Tram, e já veremos porquê. Tudo começou uns dias antes… a principal razão para incluir Can Tho no plano de viagem foi a sua posição relativamente fora do trilho turístico, que, no caso do Vietnam se resume assim: estabelecer base em Hanoi e de lá fazer uma viagem de um ou mais dias às montanhas de Sapa onde se vêem os mais belos arrozais do mundo e, dependendo da qualidade do organizador, se pode ter contacto com as chamadas “minorias”, grupos étnicos culturalmente distintos que vivem na região; depois, é “obrigatória” a visita ao arquipélago de Ha Long, onde se pernoita num barco. Segue-se então para sul, com paragem em Danang – Hue – Zona desmilitarizada (onde se deram as batalhas mais violentas da guerra do Vietnam) e Hoi An; mais uma viagem, para Saigão, com eventual desvio até à cidadezinha de montanha de Dalat e pronto, está feita a volta típico do Vietnam. Can Tho não consta, apesar de algumas pessoas irem até lá com base em Saigão. E porque não consta, porque consegui logo uma anfitriã CS, porque li maravilhas do seu mercado flutuante, foi mesmo lá que acabámos a nossa aventura vietnamita.
Falei em mercado flutuante. E o que é isto? Como o nome indica é um mercado que tem lugar na água. Os agricultores, sobretudo os que vivem em zonas mais remotas, carregam os barcos com o produto do seu labor e deslocam-se até estes pontos, onde se encontram com comerciantes e outros potenciais compradores. No fundo é o conceito dos nossos mercados abastecedores, mas a verdade é que resultam em cenas tremendamente pictorescas. Só que, por vezes, os genuínos mercados metamorfosearam-se, deixaram quase de o ser na realidade e tornaram-se numa encenação para turistas. Só que o de Can Tho, pela informação recolhida, não, era mesmo “the real thing”.
Ora antes de irmos dei uma vista de olhos pela Internet. Como visitar este mercado? De barco, claro. E encontrei uma empresa muito referenciada que oferecia o pacote completo: vinha um táxi buscar-nos, levava-nos ao nosso barqueiro privado e a partir dai tinhamos duas opções: ou iamos apenas ao mercado principal, o que levaria umas quatro horas e custaria cerca de 20 Eur por cada um, ou escolhiamos um programa mais prolongado que incluia um segundo mercado, menor, mais à frente, e passeios por canais e recantos menos conhecidos do Mekong, por de 30 e poucos Eur cada. Tentador. Ainda é dinheiro quando se viaja em “budget”, mas um dia não são dias e a oprtunidade não surgiria a cada mês.
Indeciso entre um e outro, inclui a questão num e-mail à Tran com várias outras perguntas. Oh deuses, e se em boa hora o fiz! Ela respondeu que não me preocupasse com nada, que ela trataria de arranjar as coisas e que prepararia o passeio grande por um valor não superior a 14 Eur por pessoa. Ou seja, quanto mais não fosse, em termos de dinheiro por quase um terço do valor que considerávamos pagar. Mas o melhor estava para vir. Até que ponto, só no fim da narrativa se compreenderá, mas adianto que tivemos a melhor experiência no delta do Mekong com que me atreveria sonhar. Obrigado Tran! Sois um anjo que nos caiu do céu. Por tudo.
Portanto, alvorada a meio da noite, ela chama-nos um táxi, instrui-o, monta-se na scooter e desaparece. Quando o carro se detém já está à nossa espera, na companhia de uma senhora que não pareceria extremamente idosa se não fosse uma enorme corcunda que lhe tolhe os movimentos. Cavaqueiam quando chegamos e logo nos apresenta à nossa barqueira para o dia. Repete-me os valores… devo dar-lhe 200.000 Dongs por cada um. Acrescenta que no Vietnam as gorjetas não são esperadas, mas que perante um serviço de excepcional qualidade é aceitável dar mais um pouco. A noite ainda cobre o rio quando entramos para o barquito onde caberiam no máximo quatro pessoas. Ali ao lado um casal de ocidentais prepara-se para uma experiência idêntica. Fizeram bem.
Ao afastarmo-nos do pequeno pontão uma mancha cor-de-laranja começa a elevar-se no horizonte que fica para trás. De repente, sinto-me puxado para o filme Apocalypse Now. As águas do Mekong serviram-lhe de local de boa parte da acção e era ali que agora estava, com a vantagem de navegar no verdadeiro Delta, enquanto Copolla filmou na Tailândia. Passam barcos por nós, pouco mais que silhuetas mal iluminadas pela ainda escassa luz que vai surgindo. De um lado e de outro da margem estendem-se os braços periféricos de Can Tho, que são longos.
Apenas mais para a frente, e sobretudo depois de passarmos o mercado, tenho um vislumbre da ruralidade associada ao rio, que marca a vida destas pessoas com os seus ciclos. Mas não um só minuto, rectifico, um só segundo, neste longo passeio de cerca de oito horas, que não me ofereça algo para observar com intenso prazer. A testemunhá-lo estão as quase mil fotografias que tirei neste dia. Um recorde absoluto, de longe.
Ao longe percebe-se o início do famoso mercado, incluido no famoso livro One Thousand Things To See Before You Die. A nossa barqueira faz-nos sinal que estamos a chegar. Corta o motor, alterna uns toques de acelaração com manuseio dos remos, que se cruzam, num estilo muito bizarro que nunca tinha visto. Há ali centenas de embarcações. As maiores, de uns 10 a 15 metros, estão carregadas de bens agrícolas. São barcas bojudas, por vezes com uma expressão pintada na proa, que inclui uma boca e olhos. Neles estão fixas altas estacas que têm no seu topo uma amostra do produto ali comercalizado; desta forma os potenciais interessados podem navegar directamente para junto de quem vende o que procuram e passar à fase de negociação.
Depois há embarcações mais pequenas, sobretudo de compradores, gente que tem uma lojita ou um simples pedaço de chão onde colocará os bens aqui adquiridos à disposição do cliente final. Por todo o lado vêem frutas e legumes a mudar de mãos. Da vigia de uma barca vão voando melancias que logo são agarradas e colocadas numa pilha crescente no fundo da embarcação compradora.
E por fim, na cauda desta espécie de cadeia alimentar, há os pequenitos, barquitos com um lugar ou dois adaptados para o micro-comércio. Uns vendem pão, outros bebida e produtos menores. Avisto mesmo um taludeiro flutuante!
A nossa barqueira acosta aqui e acolá, fazendo as suas compras. Negoceia, entre outras coisas, alguns ananáses que coloca junto a si. A comunicação entre nós é basicamente inexistente, mas nunca se sentiu a necessidade de mais. Nas margens há lojinhas que complementam o comércio sobre as águas. “Bombas de gasolina” para barcos, cafés e restaurantes flutuantes, amarrados a terra firme. A senhora dirige a embarcação até ao fim do mercado, depois, com um tacto notável, vira-a e faz uma segunda passagem, o que implicará obrigatoriamente ainda uma terceira. Não nos podemos queixar. Vimos aquele fenómeno com toda a calma.
Deixamos o emaranhado de barcos para trás, cruzamo-nos com uns quantos que obviamente se dirigem para aquela orgia comercial, carregados de produtos, a maioria, com um casal a bordo. Agora sim, à beira da água vão-se desenrolando as cenas mais bucólicas que a imaginação pode desenhar. Durante umas centenas de metros um vietnamita pedala calmamente na sua bicicleta, e, por coincidência, evolui a uma velocidade equivalente à nossa, como se nos acompanhasse intencionalmente. De uma casa sai uma mulher que lava algo nas águas, com a ajuda de um alguidar. Há pessoas que repousam, nas suas redes, um símbolo de uma vida desprovida de stress. As habitações fundem-se com o meio, há uma relação simbiótica com o Mekong; algumas flutuam, de forma a acompanhar as variações no nível das águas; outras estão fixas mas construidas em pontos altos, sobre estacas. Todas elas têm o seu pequeno cais privado, alguns com as respectivas embarcações presas.
Entre duas cabanas esgueira-se uma mulher vietnamita que poderia ser a personificação da elegância, com um pijama encarnado vestido e o tradicional chapéu cónico que protege com igual eficiência do sol e da chuva. A barqueira toca-nos nos ombros… enquanto dirigia (e enquanto dos deliciávamos com tudo aquilo), tinha arranjado um ananás. Uma gentil oferta a melhorar o que aparentemente já não podia ser melhorado.
Como escolhi os chinelos para este dia, já vou descalço, esparramado, com uma perna sobre a amura, palma do pé a receber os salpicos frescos da água levantada pela nossa proa. Um quadro de felicidade pura.
Navegamos e navegamos. Passamos por incontáveis casas e barcos. Alguns são ultrapassados por nós, outros vêm na direcção oposta. De outros viajantes, apenas sinais vagos. Nada que nos roube a sensação de exclusividade de estar ali.
Mais à frente ela deixa o corpo principal do Mekong e mete por um afluente e logo ali encontramos o segundo mercado, que de facto é bem mais pequenito. Em tudo. No número de barcos, na variedade de bens e no tamanho das embarcações. Mas, à sua maneira, é mais pictoresco. Há ali um sentido de intimidade, de coisa de pequena comunidade. As pessoas estão mais juntas, os barquitos formam um emaranhado estranho, que torna qualquer saida uma manobra complicada. Estamos mais perto de quem comercia e portanto as fotografias saem de outra forma, de detalhes, de primeiros planos. Ela deixa-nos estara ali um pouco parados. É evidentemente o meio do passeio, o ponto mais afastado, e por isso há lugar a um intervalo. Juntam-se-nos outros como nós, grupos de dois turistas com um barqueiro. É o único momento do dia em que há uma pequena concentração de visitantes.
Ela começa a movimentar-se para abandonar o local. Foi maravilhoso. Naquele momento já penso em termos de passado. Foi. Agora acabou e é o tempo de regressar para irmos à nossa vida. Não podia estar mais enganado. Seria um exagero dizer que só agora é que o passeio tinha começado, mas a verdade é que a aventura estava longe de terminada. É que ao contrário do que pensávamos ela levou-nos por outros caminhos, que é como quem diz, outros cursos de água, pequenos afluentes e canais que formam uma intrincada rede, funcionando como um sistema de estradas.
Se a primeira parte do passeio tinha sido pautada pela presença humana, o regresso é feito em contacto com a natureza. As casas são raras e quando aparecem estão bem dissimuladas entre a vegetação, desaparecendo logo depois. Não há quase movimento fluvial. Vamos vendo apenas outro barco como o nosso que leva mais ou menos o mesmo trajecto, transportando duas jovens francesas.
Aquele é um outro Mekong, natural, feito de muito verde… a selva cobre as margens e os limbos criam vastos tapetes à superfície da água. A tempos vêem-se arrozais. Em determinado momento a barqueira acosta e faz-nos sinal para sairmos e caminharmos um pouco. Que bela ideia. Na sua humildade aquela mulher tem um profissionalismo requintado. Tudo foi feito para que tirássemos o melhor do passeio, e com total sucesso. Fomos então por um trilho, pelo meio de todo aquele verde… há um extenso arrozal do lado esquerdo, enquanto pela direita segue o canal que tinhamos tomado. Passamos junto a uma casita de agricultores, vemos instrumentos de trabalho e todas aquelas coisas que são iguais em qualquer quintinha do mundo. Sabe bem esticar as pernas e ao mesmo tempo ter acesso efémero aquele ambiente, de forma natural, expontânea.
Mais para a frente há mais casinhas. É uma pequena aldeia. Encontramos um restaurante, criado talvez a pensar nos turistas. Pelo menos os preços são-no. Mas não me entendam mal. Não é nenhuma roubalheira, com os pratos a rondar talvez os 3 ou 4 Eur. Contudo, estes valores estão claramente acima do normal para um restaurante para nacionais. Sinto-me tentado a comer qualquer coisa, mas os Dongs são practicamente à conta. Satisfaço-me com uma enorme cerveja fresca, que me sabe tão bem.. tão bem como raramente uma cerveja me soube. E levamos uma garrafa de água grande, bem geladinha. Uma maravilha, um oásis de ventoinhas, redes-cama e bebidas frescas. Não dei grande lucro à casa mas fiquei fã e só pela experiência recomendo. Foi ali que nos apercebemos pela primeira vez de um hábito que depois observámos ainda mais intensamente no Cambodja rural: os “cafés” e tascas têm mesas e bancos sim senhora, mas muitos bancos são subsituidos por redes-cama, para deixar correr a modorra depois da refeição.
Voltámos ao barco e dai para a frente foi de facto o regresso. Já bastava, cansados que estávamos de tanta fantasia sensorial. Sem posterior história paguei à senhora, que ficou aflita quando lhe sugeri acertar as contas em US Dólares (como me dava jeito). Aflita mas não zangada ou agressiva. De forma que logo lhe tirei delicadamente as notas verdes que lhe propunha e as substitui por equivalentes locais acrescidas de um extra de 10% que lhe fez abrir um enorme sorriso. Não será esquecida.
Regressámos a casa, para descansar um pouco. O portão estava fechado mas, mais que isso, completamente obstruido por mesas e cadeiras do café-restaurante do lado. E agora? Vendo a nossa hesitação uma senhora de lá chamou-nos e fez-nos entrar no páteo traseiro da casa depois de atravessar as salas interiores e a cozinha do restaurante. Como soubémos mais tarde, o negócio também é da familia da nossa anfitriã.
E então demos por nós dentro de casa, de forma involuntariamente furtiva, vendo (quase) toda a familia dormir por todo o lado e em todas as posições. A Tran abriu os olhos e viu-nos, quando escapávamos sorrateiramente lá para cima. Sussurrámos um pouco, combinámos um encontro, como na véspera, para o final da tarde.
E assim foi. Um bocado de repouso de que não sentia grande necessidade, e de novo a caminho para o centro. Hoje foi tempo de explorar um pouco melhor as ruas do núcleo histórico. Não há muito que narrar, é um cenária que só se entende com a observação directa. Mas resume-se ao que descrevi na entrada anterior. Edíficios do tempo dos franceses, que sem serem abertamente históricos despertam alguma curiosidade. Comércio de rua e de loja local. Restaurantes, muitas especialidades do rio. O jardim simpático, com miudagem local que para ali vai sociabilizar, famílias que passeiam, um ou outro turista que passa, assediado pelas “vendedoras” de passeios de barco. E tudo isto devidamente controlado pelo grande Ho Chi Min.
Ainda há tempo para dar uma vista de olhos no museu militar local, até porque é mesmo ali defronte e a entrada é gratuita. Somos recebidos por duas militares de enorme sorriso, e uma delas logo liga as luzes para que iniciemos a visita e depois somos deixados a sós para que possamos apreciar as várias salas da exposição ao nosso ritmo e sem pressão. Não vou dizer que adorei, porque não estaria a ser sincero. Mas como museu militar, na sua modéstia, acabou por ser o mais interessante dos três que visitei no Vietname.
Agora sim, estamos cansados. Quando a Tran chega e nos pergunta o que queremos fazer, perguntamos-lhe se conhece algum local sossegado, privado, onde possamos simplesmente conversar e beber algo fresco e saudável. Conhece, e percebe-se que estamos em harmonia, que é mesmo aquilo que lhe apetece. Como se tornou costume, indica-nos detalhadamente como lá chegar e parte na motorizada para nos esperar no local.
Convida-nos a entrar num bar de porta fechada, creio que não por uma questão de selecção de clientes mas para criar um ambiente mais intimo, isolando a sala do bulício da rua. Com a breca, era mesmo isto que eu queria. É um café de estilo europeu. Ou bar, se lhe quisermos assim. Quem lá trabalha é jovem e é evidente que a nossa amiga é cliente habitual. Escolhemos uma mesa, peço um batido de leechia (?) que está uma delicia… vem coberto com natas o que para o meu paladar resulta mesmo muito bem. E pronto, ficamos ali para ai uma hora à conversa, num ambiente literalmente fresco, com aquela bebidinha e estórias para contar e ouvir. Mais um pedaço do puzzle perfeito que foi este 31 de Março de 2014.
A Tran tem algo para fazer e, depois de nos indicar um atalho para casa, afasta-se no seu veículo. De caminho paramos de novo na padaria. No dia seguinte temos uma longa viagem e são precisos mantimentos. De novo o serviço VIP, com o tabuleiro de recolha e aconselhamento personalizado. Ah! Mas não é por estarmos a caminho de casa que o dia vai terminar. Ainda estava reservada uma actividade para fechar em grande.
Na véspera tinha ficado impressionado com a animação na zona da Tran. Cafés, muitos, cheios, de gente entusiasmada, a falar, beber e comer. Comércio de rua, igualmente cheio de dinâmica. Muitos “sport bares” a passar jogos de futebol europeu. Enfim, muita, muita vida. Mas de todos os locais o mais interessante foi o arraial montado no espaço exterior do concessionário da Mercedes. Parece que todos os dias, quando o último funcionário da marca alemã encerra as portas, uma festa volante instala-se no seu terreno, que é coberto de mesas e de cadeiras (muitas, mas mesmo muitas) que se enchem por completo. E depois, ao final da noite, toca de arrumar que os homens da Mercedes pela manhã estão ai. E olhem, tinha que experimentar. Lá me abanquei numa mesa, apenas para um par de cervejas, que muita confusão criou no pessoal. Se calhar não é normal. Espero que não seja mesmo indelicado, como seria entrar num restaurante português só para uma bebida. Mas também aqui o tratamento foi de VIP, de forma mais discreta, até porque aquela gente não tem maõs a medir, mas mesmo assim, senti-me especial.
Depois foi dormir, que a casa era ao virar da esquina e daí a umas horas, de novo pelas 5, teriamos que estar a pé para apanhar o autocarro para Pnomh Penh, capital do Cambodja.