Mais um despertar fora de horas, novo táxi chamado pela Tram e mais uma corrida nocturna pela cidade. Estava um pouco preocupado. Por um lado, não tinha Dongs suficientes para o bilhete, mas convinha-me, mesmo assim, livrar-me dos que restaram. Por outro lado só existe um autocarro por dia para Pnom Penh e portanto tinha mesmo que ser este. O facto de a partida se dar de um local obscuro ainda antes do so se levantar não contribuia para me tranquilizar. Mas correu bem. O taxista deixou-nos literalmente em frente do autocarro que dizia claramente Kampuchea. E o escritório era mesmo ali em frente. O local era de facto sombrio, fomos atendidos por uma senhora de mau humor que no fim lá levou os Dongs sobrantes e aceitou que se completasse o pagamento com dólares.
Mandaram-nos esperar e esperámos, enquanto observávamos um grupo de que acondicionavam caixotes no porão do pequeno autocarro… ao pontapé. A coisa não estava a correr bem, e a patada era tanta que alguns dos volumes já tinham a pele rasgada. Chegavam outros passageiros, e, uh-oh, mais carga. Enfim, ficou tudo pronto e a hora de partir chegou. O dia ainda não tinha nascido.
Ao entrar na viatura foi-me distribuido um papelinho. Mistério. Fiquei a olhar para aquilo sem saber o que fazer, mas quando a hora chegou o vizinho do lado aprestou-se a esclarecer: tratava-se de uma senha de pequeno-almoço, a usar na paragem efectuada num restaurante mais à frente. Os companheiros de viagem deliciaram-se com os seus noodles e outros manjares, adequados para a sua primeira refeição mas decididamente pesadotes para os meus hábitos alimentares. Andei por ali, a fazer tempo, enquanto toda a gente dava ao dente. Decidi comprar uma Fanta, disposto a pagar por ela, mas a bendita senha cobriu-me essa despesa.
A viagem prossegue, ainda em terras vietnamitas. O autocarro vai cheio, com malta de um e de outro país; nós somos os únicos forasteiros. Na TV passa algo que deve ser muito divertido porque toda a gente ri a bom rir, mas, pensando bem, talvez não fosse assim tão cómico, porque estava ali um grupo que, como fui observando pela viagem fora, conseguia retirar divertimento das coisas mais bizarras. Um exemplo? A gargalhada geral e os apontares de dedo entusiasmados que um camião carregado de lixo para reciclar colheu quando passou por nós na fronteira.
Como é costume sudeder nestas viagens relativamente longas (esta levou seis ou sete horas) foi-se desenvolvendo um espírito de comunidade e lá para o meio do trajecto já éramos todos bons amigos.
Chegou a fronteira, que, pelo menos em mim, desperta sempre alguma ansiedade. Os guardas raramente primam pela simpatia, e pode sempre surgir um problema mais ou menos grave. É, de forma geral, um processo desagradável.
O auxiliar do condutor recolheu todos os passaportes para o carimbo de saída do Vietname. Depois, deu-nos os nossos para a entrada no Cambodja. Esperámos todos um bocado até receber autorização para iniciar a travessia. A estrada estava congestionada,muitos detalhes para observar. Mulheres trocam dinheiro, discutem, há zaragata. Camiões carregados aguardam. Pessoas a pé cruzam, para um e para o outro lado.
Vamos tratar do visto. Um guarda mal encarado pede-nos os documentos, passa-nos um formulário para preenchermos, pede-nos o dinheiro. Manda-nos sair dali, e fico sempre apreensivo quando perco contacto visiual com o passaporte.
Esperamos no autocarro. Chega o ajudante do motorista, pomo-nos em marcha. Passados uns minutos o tipo levanta-se e começa a distribuir passaportes, e é um alivio quando recebo o meu, devidamente carimbado. Esta já está.
Dali até Pnomh Penh faz-se bem. A vista não é especialmente interessante. É claro que em paragens exóticas há sempre algo para ver, mas há vezes em que o cenário é mais cativante e esta nãoé uma dessas vezes. Aproximamo-nos da capital cambodjana. Os companheiros de viagem cada vez vão mais animados, o trânsito intensifica-se até se tornar caótico e o que se vê lá fora é desagradável. Há obras na estrada, a poeira é inacreditavelmente densa, tudo em redor está sujo, coberto por este pó. Não é um cartão de visita dos melhores, mas felizmente as primeiras impressões não serão duradouras.
Finalmente o autocarro detém-se. Não estamos na periferia mas também não estamos no centro. A cerca de 3 km. Está calor, claro. Chega a hora de regatear o preço do tuk-tuk. Levo a indicação que deverei pagar 2 a 3 USD e quero ir pelo mínimo. Os tipos fazem finca pé, mas eu ainda mais, e decidimos simplesmente caminhar. Parece estúpido, andar 3 km sob este calor por causa de 0,40 Eur a cada um, mas passado um tempo no país entramos no valor real do dinheiro no local. Era o mesmo na Síria e Jordânia com os condutores de táxi. Bem, mas felizmente desta vez safei-me. Um “puto” vem atrás de nós e diz que aceita os 2 USD. Certifico-me, como manda a cartilha, de que ele concorda com o destino, com o preço, para os dois (e não por pessoa). OK. Ele diz que é o primeiro dia no trabalho, que acabou de comprar o tuk-tuk. Está cheio de energia positiva e o inglês dele é muito razoável, como de resto o é o de todos os cambodjanos que lidam com estrangeiros, ao contrário do que sucede nos países vizinhos.
A má impressão de Pnomh Penh é deixada para trás, quando passamos por largas avenidas, bem cuidadas, com jardins verdes e monumentos dourados. Estamos a chegar ao hostel. Decido dar mesmo os 3 USD ao rapaz.
A localização do Wilkomen Hostel não que podia ser melhor. É que não podia mesmo. Super-satisfeito com a escolha e recomendando o estabelecimento a todos os que se satisfazem com o estilo de hostel, no caso, com quarto privado – com TV, frigorifico, ventoinha, ar condicionado e ainda serviço de quarto.
Saímos à rua para explorar um pouco, atingimos a zona do palácio real. Estou a adorar a cidade. Passamos pelo Museu Nacional, que já está encerrado, mas é mesmo assim possível deambular pelos jardins, contornar o edíficio e apreciar as esculturas por lá espalhadas.
A tarde avança, o dia ameaça chegar ao fim. Queremos experimenter o famoso FCC – Foreign Correspondents Club. O nome emana romanticismo, vêm à ideia cenas do grande filme Killing Fields. O clube não existia em 1975, quando se desenrola a acção da película, mas podia perfeitamente já aqui estar, porque o ambiente remete mesmo para aqueles dias dramáticos, quando os Khmer Vermelhos tomaram o poder no país. Não sei se Sidney Schanberg, uma das figuras centrais do filme – inspirado em factos reais – alguma vez visitou o clube, mas outro dos elementos principais do filme, o fotojornalista Al Rockoff, cujo papel foi desempenhado por John Malkovich, foi (e, creio, é) um “habitué” do FCC.
Apesar de não existir nessa altura, o FCC foi durante muito tempo o real ponto de encontro dos jornalistas estrangeiros acreditados no Cambodja. Nestas mesas viveram-se momentos de crise, discutiram-se as políticas governamentais, suou-se muito, viveu-se mais. E ali estávamos, a participar, a sentir todo aquele ambiente. No balcão sobre a rua tomámos uma bebida, enquanto a noite caía sobre a cidade.
Quando deixámos o FCC fomos jantar, a um pequeno restaurante-café de aspecto imaculado que despertou simpatia quando, um pouco antes, circulávamos pelas ruas. Foi excelente (de tal forma que voltámos noutro dia). Barato, comida gostosa, serviço amável, e, como sempre sucedeu no Cambodja a este nível, com o pessoal a falar excelente inglês… muito bom.