Não posso dizer que o dia acordou radioso, por duas razões: a primeira é que os dias não acordam por esta parte do ano… fazem directas atrás de directas… nós é que acordamos; a segunda é que de qualquer modo havia uma ameaça de chuva no céu, simplesmente estava-se a aguentar. E enquanto se aguentava pusemos os tarecos no carro, despedimo-nos do dono da quinta que encontrámos por acaso e fomo-nos.
A nossa quinta adorada vista ao longe (chama-se Skálakot e é conhecida pela excelência dos seus cavalos):
Grande hesitação: a chuva vem ou não vem? Começámos por um lugar onde não tinhamos que nos afastar muito do carro, ou pelo menos assim pensava. O glaciar de Sólheimajökull (caramba!!). Localiza-se ali na zona, bastante acessível, ou pelo menos na sua franja. Não será o mais espectacular da Islândia mas foi o que se conseguiu arranjar. O passeio foi catita, deixado o carro para trás e depois de se fazer uns quilómetros numa estrada de gravilha bastante mal-tratada que, aliás, estava a ser arranjada por um tipo sozinho (!!).
Chegámos à orla do glaciar a tempo de ver uma excursão avançar lá para cima, com botas de pitons e guia. Basicamente não há muito a dizer. O gelo vem mais sujo que sujo, poluido pelas cinzas vulcânicas que absorve na sua lenta marcha e como se isso não fosse suficiente, ainda arrasta partículas de basalto que, devido ao enorme peso, vai arrancando, por fricção, do solo. Gostei de tocar no gelo, compreendendo o percurso que aquela água em estado sólido fez. Imaginei os avanços e recuos deste glaciar, tão dinâmico, e que actualmente derrete a elevado ritmo (o tamanho de um estádio de futebol todos os anos).
Agora estava na hora da decisão. Vamos ao avião ou não vamos? Vamos. Já lá estavam dois carros estacionados, à beira da estrada principal, junto do acesso aos destroços. Seriam então cerca de 3 km em linha recta. O que sucede é que naquele meio, linha recta é mesmo linha recta. É um deserto plano. Só há que seguir o indicado do GPS e caminhar a direito. Tanto melhor.
O local é concorrido. Iam carros, vinham carros. E bem que os viamos, passar, umas centenas de metros mais ao lado, no trilho “oficial”. E note-se, carros. Não só jipes. Se calhar podiamos ter feito vista grossa ao sinal de proibição e trazer o nosso pequenino. Mas que se lixe. A verdade é que apesar das núvens ameaçadoras não choveu. E foi dos melhores momentos destes dias da Islândia.
Soube bem esticar as pernas pela segunda vez no mesmo dia (e não seria a última), sentindo aquele solo tão diferente debaixo das solas das botas. Para melhorar a experiência fomos dar com um ribeiro que corria para o mar, junto ao qual caminhámos durante umas centenas de metros. Ao fim de meia-hora a andar era possível ver o carro, lá ao fundo, muito pequenino, um simples ponto no horizonte.
E então apareceu a silhueta distante da carcaça do avião. Uma sombra indistinta de início, ganhando contornos à medida que nos aproximávamos. Tratam-se dos restos de um DC-3 da Marinha dos EUA que foi forçado a uma aterragem ali mesmo depois de aparentemente o piloto ter esvaziado por engano os depósitos de combustível. Ocorreu a 24 de Novembro de 1973. Nenhum dos membros da tripulação sofreu ferimentos. Os norte-americanos não se deram ao trabalho de recolher a estrutura e há rumores de que um agricultor local acabou por vender as partes que faltam no mercado negro.
Quando chegámos aos destroços um casal deixava a área, provavelmente as pessoas de um dos carros que tinhamos visto quando parqueámos. De forma que ficámos com aquilo tudo para nós. Foi fotografar até fartar, espreitar tudo, sentir o local, ver como o mar estava próximo e como teria sido o susto daquela rapaziada, e depois o alivio, de terem conseguido pousar sem danos pessoais mesmo ali, practicamente na praia.
Ao fim de uns dez ou quinze minutos demos a visita como concluida e assim que nos afastámos logo chegou uma carrinha cheia de turistas. Timing perfeito! O retorno foi tão ou mais agradável do que a caminhada de ida. A cada passo a certeza renovada de que não iriamos apanhar uma valente molha. E com os carros lá ao fundo a servirem de farol para a rota mais curta. Nisto vimos uma viatura a aproximar-se, não na “estrada” mas em linha recta, como nós andávamos. E não é que era um simples “ligeiro” com dois turistas muito decididos lá dentro? Quer dizer… a estrada só serve para veículos de todo o terreno… mas pelos vistos nem o deserto oferece problemas a simples carro.
Mais informações e fotografias sobre o acidente do DC-3 aqui. E em vez de estar aqui a explicar como lá chegar, posso simplesmente passar este link de alguém que já preparou a matéria toda.
Este seria um dia de poucas mas boas coisas. Entretanto recebi um SMS da Anna a dizer que tinha tido que ir à capital a uma reunião de emergência e portanto não nos poderia fazer a companhia como combinado. Paciência. Vamos na mesma a banhos.
Antes pássamos a Selfoss, uma pequena cidade que mesmo assim será das maiores da Islândia (é a nona com… 6500 habitantes). Por qualquer razão deu-nos para explorar a localidade. Muito simpática, mesmo num dia que agora e ali era algo desagradável, com céu encoberto e vento. Reparei num clube de xadrez e sorri. É bom ver pessoas que trabalham pelos seus hobbies. E apreciei o rio que passa ali perto, muito rápido. A igreja com vista para o curso de água e os campos em redor.
Há tanto comércio… deve servir as comunidades isoladas, as pessoas que ali vão às compras. Vi um mercadinho – por acaso estava fechado – com barraquinhas muito simpáticas, todas coloridas. Havia painéis explicativos com a história e as estórias de Selfoss. Parece que vivem por ali muitos emigrantes que vão para a Islândia para trabalhar na agricultura, na recolha de frutos e isso. A nossa anfitriã dava aulas de islandês para estrangeiros – para estes estrangeiros – nos seus tempos livres.
A zona geotermal era junto à sua aldeia, só um pouco mais à frente. Ali o céu já estava mais animador, predominantemente azul. O problema era o vento, que pelo menos para já soprava muito forte.
Pus-me a caminho, decidido. Este foi o dia das marchas. E esta foi das fortes. A distância não é muita, cerca de 4 km para cada lado. Mas são intensos, para lá quase sempre a subir, de forma mais ingreme aqui, menos ingreme acolá. Passando por dentro de água, por lama. À minha frente uma miúda de ténis brancos imaculados. Vou vendo quando é que desiste, mas era tesa. De cada vez que nos aproximávamos de uma zona de lama e água pensava que seria agora, mas nunca foi. Sempre com o seu passito firme, pim-pim, até ao fim.
Este foi outro dos melhores momentos da viagem. Depois do choque inicial, o vento abrandou. Cheguei a ter calor, a abrir o casaco. O trilho naquele momento parecia uma rota de peregrinação. Pessoas para cá, pessoas para lá. Depois abrandou. Talvez alguns tivessem desistido, e por alguma razão o movimento em sentido inverso também se deteve.
É um percurso onde se vê de tudo, riquissimo de variedade. Olhando para trás, o mar, lá longe, em baixo. Logo após a primeira colina avista-se uma queda de água que em Portugal seria atração nacional mas que ali ninguém lhe conhece o nome. Depois, porque se ganha altitude, começa a surgir algum gelo e neve nos pontos mais altos ou mais sombrios.
Foi caminhar, e caminhar, inalando fundo aquele ar fresco e limpo. Fui-me aproximando do destino e soube-o quando ao chegar a mais um alto vi o vale lá em baixo. Um vale cheio de colunas de vapor, emanadas pelas lagoas de água escaldante. No meio corre um pequeno ribeiro. O cheiro a enxofre predomina.
Agora é a descer. Vejo com desprazer que estão a ser construidas plataformas de madeira para aceder à água da ribeira. Estão a estragar aquilo. Que tristeza.
Quando me aproximo reparo nas pessoas que se banham naquelas águas. É quentinha! Há grupos maiores, de jovens, e casais. Muitos. Não sei se alguém será mesmo islandês. Pois então quando procuro aproximar-me do curso de água, uma pequena catástofore… o que parecia ser uma relva agradável é na realidade um campo de lama. Dou um passo e fico com lama pelo meio da perna. O pé de trás também se enterra mas apenas um pouco. Durante uns segundos batalhei com aquilo, estava a ver que não conseguia tirar a perna sem ajuda e sem perder a bota lá em baixo. Mas consegui. Deu para perceber a angústia das areias movediças.
Agora estou num bonito estado. Vai ser um regresso interessante. Molhado e sujo, durante quatro quilómetros. Estou mesmo aborrecido… penso se aquelas botas terão salvação. Quando chego ao carro mudo de roupa, chinelos nos pezinhos e tudo para dentro de um saco de plástico. Pelo caminho queimei a perna por causa da fricção. Tenho um anel de uns quatro dedos de altura em cada perna, acima do tornozelo.
A lama das calças levou 3 lavagens a sair. As botas estão bem de saúde.
Dali foi seguir directo para Reykjavik. Os dias da Islândia estão a chegar ao fim. O percurso de cerca de 60 km fez-se sem incidentes. A estrada é larga, quase sempre com duas faixas de rodagem de cada lado. Uma auto-estrada, portanto.
Na capital chegamos à casa onde tinhamos já estado. Vamos ficar com o David e a sua companheira islandesa. Ligámos todos bem, penso eu. E tivemos um jantar delicioso, com carninha tenra. Que sorte que eles são profissionais de cozinha! Foi conversa até altas horas da noite. Temos tanto em comum! E pronto… chegou a hora de dormir. Eles no dia seguinte têm que sair muito cedo para mais uma comissão de uma semana na cozinha de um hotel bem longe.
Os posts da sua viagem à Islandia ficaram bem bacanas. Amo esse país e gostaria de fazer uma sugestao, se me permite: nos seus planos de viagem futuros, se possível, reinclua a Islandia, porém no inverno! As belezas locais sao indescritivelmente extremas, é surreal… como um conto-de-fadas… Acima de tudo, se admira e se respeita os poderes extremos da natureza, após uma experiencia como esta… 🙂
O meu problema com o Inverno não é o frio nem a neve. O meu problema com o Inverno na Islândia é a noite permanente e as estradas fechadas. Fora de questão para mim, de modo algum 🙂