Acho que posso começar este artigo com uma frase significativa: este foi o melhor dia de toda a viagem pela Islândia. Acordámos, até nem muito cedo. Convém recordar que o serão tinha entrado pela noite dentro e que entre dois despejámos garrafa e meia de whisky. Felizmente não sou dado a ressacas e com uns copos de água em jejum o ligeiro mal-estar fui vencido com facilidade.

Portanto estávamos ali nós, o Sveinn e a Ana, prontos para um dia em grande. Já na véspera, um pouco alcoolizado, o nosso amigo tinha dito que pela manhã nos ia levar a ver a casa do Pai Natal. Na altura não levei a sério, pensei que os vapores da bebida teriam algo a ver com a proposta. Mas não. Basicamente assim que abriu os olhos o tipo começou a preparar-se para cumprir a promessa. Oferecemos-lhe dos nossos cereais, tomámos o pequeno-almoço com ele (não me lembro o que a Ana andava a fazer por esta altura). E em menos de nada estávamos na rua.

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Primeiro era preciso devolver o carro que a Ana tinha alugado na véspera. Depois, regressar a casa para agarrar algumas coisas que nos tínhamos esquecido. E então, rumo à casa do Pai Natal. A estrada é lindíssima. Há manchas de água, pequenos lagos ou simplesmente poças enormes formadas pelo degelo e pelas chuvas, que reflectem as montanhas e o céu com muito azul. Sim, porque desde a véspera a evolução das condições climatéricas tinha sido dramática. Nem parecia o mesmo sítio.

De tal forma que não conseguia evitar parar o carro a cada dois quilómetros para mais uma mão cheia de fotografias. E isto foi sendo assim durante os cerca de 20 km até à casa. E não é que existe mesmo? Brincadeiras à parte, o local é o fruto da imaginação de um homem, que decidiu criar uma loja dedicada a artigos de Natal, só que aberto todo o ano. Ali pôs uma enorme porção de fantasia, aplicada em medidas adequadas em toda a propriedade.

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Há uma torre encantada com pinturas alusivas a contos infantis, personagens de estórias que recheiam o nosso imaginário infantil. E há gnomos e outras figuras do mundo do faz-de-conta, pequenas casas de turfa, casinhas para pássaros, casas de banho muito especiais, objectos mágicos.

No interior, a loja. Tudo e mais alguma coisa que se possa associar com o Natal, num espectáculo de côr, uma viagem pelo mundo da pura estética, em arranjos harmoniosos de formas e tons. Ao balcão o proprietário, sempre feliz, dispensa um sorriso a cada pessoa que entra. Pergunto-lhe o que lhe passou pela ideia quando decidiu começar tudo aquilo. Simplesmente achou que fazia falta. Que o Natal devia ser todos os dias e não apenas em Dezembro. Compreendo melhor o encantamento do Sveinn e porquê que ele traz ali a sua filha e os seus couchsurfers.

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No regresso fizemos um pequeno desvio para ver uma outra igreja coberta de turfa. O cenário é magnífico. Idílico. Como sempre, existe um pequeno cemitério junto à capela, e ambos estão próximos de uma quinta abandonada. No seu pátio encontro um cemitério de tractores e alfaias agrícolas. É impressionante ver como os pneus aparecem brilhantes e imaculados no meio das carcaças ferrugentas. A borracha não se degrada com a chuva, ganha até outra vida.

Entretanto os meus amigos entretinham-se a ver os nomes nas campas e a falar sobre a forma diferente de propagação genealógica daquela cultura: enquanto no nosso mundo os filhos adquirem os nomes de família dos progenitores, na Islândia simplifica-se. O filho ganha como apelido o primeiro nome do pai, junto com a palavra “filho”. O filho do João Filho de Esteves passa a ser, por exemplo, Miguel Filho de João. É a história dos Gundrunson e Mikaelson e Joahanson. Sendo que com as meninas, a palavra adquirida é “filha”, ou seja, Dottir. Espero que me tenha explicado bem.

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Dali nem fomos a casa. Passámos pelo meio de Akureyri sem parar, directos a Dalvik. Era o que eu queria. Uma aldeia piscatória. O tipo de local que fazia parte do meu imaginário destas terras do norte. E que nunca sairam do tal imaginário porque, apesar de achar interessante o que vi esteve longe do que idealizava. Talvez nas costas do Leste, nas zonas mais remotas. Mas não ali.

A estrada para Dalvik apanha-se logo após Akureyri. Uma saída à direita. E para quem leu o relato do dia transacto, que se note… teria sido aqui que sairiamos (se saissemos) caso tivessemos mesmo contornado a península ao fechar do dia. Por aquela estrada vejo o Inverno regressar. Como as coisas mudam! O céu continua basicamente azul, mas a envolvência cobre-se de branco e não é uma alvura de neve, como me habituei a ver noutras paragens da Europa. Não, o branco tem algo de polar, reflexos de azul, não sei.

Conduzo ao lado de um longo fiorde, o Eyjafjörður, que se estende por uns 50 km. Se estivesse sozinho ter-me-ia metido por alguns daqueles estradões de terra batida que se esgueiram a partir do asfalto, direitos a pequenos grupelhos de casas. Mas com eles limito-me a prosseguir em direcção ao objectivo combinado.

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Dalvik é uma aldeia. Ou uma vila. Ou uma pequena cidadezinha. Isolada, provinciana. Tem um supermercado e pouco mais. Sobretudo é uma terra de pesca. No porto vêem-se os pequenos barcos de pesca à linha e duas traineiras de consideráveis dimensões.

Não podíamos ter melhor companhia para nos guiar por estas paragens. Sveinn não é só um islandês. É um islandês que trabalhou boa parte da sua vida como pescador. Sabe tudo sobre a actividade, tem resposta para todas as nossas perguntas, explica-nos o funcionamento daquelas máquinas com todo o detalhe. Fala-nos das suas experiências, das suas aventuras de mar. Dos velhos dizeres dos homens da pesca. Na Islândia, quando se fala de alguém que nunca andou naquela vida, diz-se que “nunca mijou para o mar”. Sveinn fê-lo, e de que maneira. Passou meses no alto mar, a operar a maquinaria, a amanhar peixe. Explica-nos a diferença entre as traineiras como a que se vê na foto acima, equipadas com câmaras congeladoras, onde o peixe é mantido até ao regresso a terra, e as que simplesmente conservam o pescado dispondo-o em paletes que se empilham como peças de lego, separadas por camadas de gelo. E as horas que ele passou a fazer simplesmente isso… peixe… gelo… outra palete… peixe, gelo… de novo.

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Já estávamos em Dalvik mas ainda era cedo. Ou relativamente cedo, porque as horas na Islândia são sempre subjectivas. Há algo muito forte em nós que nos leva a considerar o tempo com base na luz solar, só que em meados de Maio, naquelas latitudes, não se consegue funcionar assim. Já são seis da tarde mas parece meio-dia.

Decidimos prosseguir com a nossa viagem, península acima. A aldeia seguinte chama-se Ólafsfjörður e Sveinn devota-lhe um asco visceral. Esta é uma terra que até há bem pouco tempo vivia no mais profundo isolamento, basicamente ligada ao resto do mundo apenas por mar. Mas há uns anos foi inaugurado um túnel que permite agora um acesso rodoviário fácil. Para desgosto do meu amigo, que preferia as pessoas de Ólafsfjörður lá fechadas.

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Uma coisa tenho que conceder: é uma terra feia. Quando chegamos parece um deserto. Será pela hora avançada, mas mesmo assim é um cenário triste. São ruas paralelas de casas que parecem barracões. E o branco todo em redor. Sente-se que mesmo com o tal túnel é uma comunidade em decadência, que já viu melhores dias, quando a pesca oferecia outros proventos. E por falar nisso, atravessar aquele e o seguinte túnel foram das experiências mais angustiantes que já tive ao volante de um carro. E já fiz muita coisa ao longo dos anos. Detesto estar ali fechado, é uma sensação de claustrofobia, o som das enormes hélices de ventilação, como se de tantas em tantas centenas de metros nos passasse por cima um helicóptero. E o cruzar com outros carros, tendo que lhes dar passagem, usando as escapatórias criadas aqui e acolá.

E como a conversa do “alentejano” que sempre diz que é já ali a seguir, o Sveinn vai dizendo que já que ali estamos podemos ir até à próxima localidade que é já a seguir. Desta vez é mesmo a última porque basicamente não há mais nada a seguir. É a ponta da península, a antiga capital do herring, que tal como Ólafsfjörður já viu dias melhores mas que mesmo assim mantém um brilho que falta à aldeia vizinha. Chama-se Siglufjörður e para lá chegar, mais um túnel.

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Foi amor à primeira vista. A tarde já vai longa, e este local recebe muita sombra, colocado como está no sopé da montanha. Ao longe a localidade não se vê… são umas sombras que se parecem com rochas. Mas aproximamo-nos e repara-se que existem luzes. Aliás, luzinhas, pequeninas. E quando me apercebo que é mesmo uma aglomerado de casas, parece uma aldeias dos postais de Natal. Uma aldeia de bonecos, de fantasia. Só que é realidade. Está ali mesmo defronte.

Paro o carro para fotografar e uma mulher vem-se aproximando, a correr. Faz desporto. É uma figura única, não se vê mais ninguém. Passa por mim e com toda a naturalidade cumprimenta-me.

Exploramos Siglufjörður, mas de carro, que o frio não convida a outros passeios. Rua após rua. Muito interessante, apesar de mais bonito visto ao longe. E pronto. Estamos cansados e com fome. Ainda tentamos os cachorros-quentes na estação de serviço, mas tinham acabado de fechar. Acabamos por parar no regresso, em Dalvik, onde comemos os famosos cachorros-quentes, a única coisa na Islândia que é relativamente barata (e de péssima qualidade, já agora).

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No regresso o silêncio impera no carro. É sempre assim no fim de um dia bem passado, quando o cansaço cobra a factura. A luz está deslumbrante. É uma espécie de pôr-de-sol que na realidade não se põe, mas do outro lado do fiorde a montanha está completamente côr-de-laranja.

Entretanto, na cidade, a casa do Sveinn encheu-se. Hoje vamos ser muitos à mesa. Para além de nós haverão mais quatro couchsurfers. Paramos ainda no supermercado antes de ir para casa. Na realidade, mesmo antes, o Sveinn diz que me quer mostrar uma coisa, uma surpresa. Que tipo deliciosamente marado: o que ele tem para me mostrar é um colchão abandonado com vista para o mar.

Depois de tudo isto o Sveinn ainda tem energia para preparar para todos nós uma sobremesa deliciosa. E como sempre, a conversa entra noite dentro, agora com mais pessoas a participar.

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