Este seria o grande dia de toda a viagem, aquele em que visitaria a fortaleza, a Citadelle Laferrière, local classificado como Património Mundial da Humanidade pela UNESCO. Seria também o dia me que pela segunda vez venceria um medo ancestral, o de andar de mota.
A primeira vez tinha sido no Senegal, quando fiquei numa situação em que ou aceitava uma boleia à pendura ou teria que caminhar uns 15 km sob calor escaldante numa estrada sem sombras… nessa ocasião foi quase que inevitável, mas agora foi voluntário. Estava combinado com um homem local o transporte até ao parque de estacionamento da fortaleza e o regresso. 20 USD.
Mas antes tomei o pequeno-almoço, saboroso, combinado na véspera e feito de ovos mexidos, pão, sumo natural, banana e café.
Às 8:30 lá estava o Papi Tout, o condutor. E vamos. Atravessamos a aldeia e depois iniciamos a subida. Tinha chegado a pensar em simplesmente caminhar, mas ainda bem que não o fiz… os cerca de 8 km são sempre a subir, sempre, seria extenuante, ainda para mais considerando o grau de humidade e o calor, mesmo pela manhã.
O percurso é fascinante, com uma bonita paisagem natural e, no início, muitas casas locais. Tudo limpo, agradável de se ver, humilde, claro, mas um gosto para a vista. Se soubesse o que sei hoje teria subido de mota e descido a pé.
Chegamos ao parque de estacionamento, aproximam-se logo os esperados guias e afins, repito que não preciso de nada. Nem de guia em língua alguma, nem de transporte para cima, para a fortaleza. Preparo-me para começar a subir. Do parque até à fortaleza são ainda uns 3 km. Mas estes são meus.
Para minha surpresa e desagrado o Papi Tout vem comigo. Ali há qualquer coisa. Certamente que não lhe apetecia uma caminhada matinal. Não tenho a certeza do que se passou, mas tenho algumas suspeitas, que explicarei mais para a frente.
Seja como for, é um homem educado, não me sinto ameaçado nem incomodado pela sua presença específica, apenas gostaria de estar sozinho e apreciar o momento sem companhia.
Ainda se encontram algumas casas, especialmente no primeiro troço. Depois, somos nós e a natureza. A fortaleza revela-se, lá no topo, imponente. A meio faço uma paragem para descansar, respirar fundo e observar a paisagem que nos rodeia. São montanhas a perder de vista e sem sinais de presença humana. A altitude e a humidade mata-me. Isso e os quilinhos a mais.
Está ali um senhor, fala com o Papi Tout e começa a caminhar connosco. Hummm. Interessante. Também não me parece uma ameaça. Ainda.
Chegamos ao topo. Fascinado, tiro algumas fotografias. Combino com o Papi Tout encontrar-me com ele dali a duas horas, aqui à entrada do forte. Ele fica surpreendido mas não tem como negar. Nem pensar que se vai colar a mim durante toda a visita.
Dizem-me que agora há que pagar o bilhete. Estamos a chegar ao cerne da questão. Digo-lhes que já paguei 20 USD quando visitei o palácio, mostro-lhes o recibo. Ficaram desanimados. Bem, agora sou só eu e o outro senhor.
Reparo que o portão da fortaleza se encontra fechado. E pronto, então era este o esquema. Agora para me deixar entrar é preciso uma gratificação. Que a pessoa que tem a chave está a trabalhar nos campos e pode demorar a chegar. Eu espero. Ah mas pode levar horas… ou nunca vir. Mas com uma gratificação…
Não. Não há gratificação para ninguém. Já basta o preço absurdo pelo bilhete “oficial”, que na realidade não é oficial. Este pessoal encontrou o tacho das suas vidas a vender estes bilhetes, cujo dinheiro lhes vai directamente para os bolsos, e que rico dinheiro. Teoricamente seria cobrado pela municipalidade, mas Milot não tem governo há três anos. Está à deriva e estes tipos preencheram o vazio. E depois, a outra quantia absurda para o serviço de transporte até aqui. Digo isso mesmo ao tipo, que já chega e não vou pagar nada.
Ele ri-se, eu rio-me com ele, dou-lhe uma palmada no ombro e vou à vida, fotografar as imediações e, terminado isto, sentar-me à espera que passem as duas horas para me encontrar com o outro.
Estou ali sentado e ouço uma voz vinda das profundezas da fortaleza: “It’s everything OK?”. Respondo que sim. Claramente o guardião já entrou. Mantenho-me sentado. Mais cinco minutos e surge outra proposta: se não me demorar mais do que 15 minutos ele deixa-me entrar. Sem gratificação. OK, vou aproveitar.
São 15 minutos intensos. O local é fascinante, tudo valeu a pena, tudo faz sentido. Um momento mágico, daqueles pontos altos que nos reserva esta vida de cruzar mundos. O homem está sentado, encostado, e descontraiu. Diz-me para ter calma, que posso ir ali e acolá, se demorar mais um pouco não há problema. O que eu não quero é que ele me feche aqui dentro, o que pode facilmente fazer a qualquer momento.
Lá em baixo, uns pequenos pontinhos brancos no horizonte, quase invisíveis à distância, está Cap Haitiene. Em redor, o silêncio, só entrecortado pelo piar das aves de rapina que pairam em busca de um esperado almoço. Ao fundo, o azul do mar, e tudo em redor a montanha revestida a verde.
Corro de um bastião para o outro, penso que este lugar me faz lembrar o Crack de Chevaliers, na Síria, que também visitei despido de outros turistas.
Está então na altura de cumprir a minha parte no acordo. Saio. Fico confuso. Apresto-me para esperar pelo Papi Tout mas o homem diz-me que ele não virá, está à minha espera lá em baixo no parque de estacionamento. Penso por um instante que vou poder descer tranquilamente e a sós mas logo ele toma o lugar do outro e caminha comigo montanha abaixo.
Para baixo é mais simples mas igualmente encantador. Caminho com um sorriso. Estou feliz. Quando há meio ano pensei em vir ao Haiti nunca pensei que se tornasse mesmo realidade e menos ainda que conseguisse aqui chegar. Mas aconteceu e até ver sem nenhum custo exorbitante.
Agora é descer, deitar uma última mirada aquela paisagem fascinante, voltar a passar por entre casas e encontrar o meu condutor que conversa com outros homens no lugar onde tínhamos deixado a mota.
Seguimos logo, uma viagem sem novidade, o meu medo já amaciado, sigo descontraído. Passa por nós uma mota conduzida por um pai que leva instaladas em seu redor oito meninas em uniforme escolar. Sim, oito pequenas princesinhas, contei-as sem margem de erro, numa só mota.
Passamos junto às ruínas do palácio que visitei na véspera, atravessamos a aldeia, fazemos uma volta inesperada ao encontrar uma rua bloqueada por uma qualquer obra. Chegamos ao hotel. Pago-lhe os 20 USD.
Agora vou relaxar um pouco, digerir todas as emoções vividas neste dia que ainda está a começar. A manhã vai a meio, tenho a tarde para visitar Cap Haitiene.
Tomo um duche, bebo um refresco de melancia bem gelado. Preparo a mochilinha para o resto do dia e saio para a rua. Revigorado e feliz.
Encontrar um Tap-Tap para Cap Haitienne é sempre simples. Passam na rua principal com a regularidade de um metro, só há que lhes fazer sinal, em qualquer ponto, e saltar para a caixa traseira. O percurso custa 25 HTG.
Vou com os locais e mais uma vez não chamo especial atenção. Não sinto cravados em mim olhos surpreendidos. Sigo com uma naturalidade que não esperaria.
À entrada da cidade há muito trânsito, é um caos de todo o tipo de viaturas e muito barulho. A poluição é total… os escapes, as buzinas, os motores e o lixo, muito lixo, por todo o lado. Não tenho dúvidas: este é o local mais sujo que já vi em toda a vida. E não sei se um dia encontrarei um ponto que o bata.
Paramos. É aqui. Agora há que andar, num ambiente opressivo. Gente, confusão, barulho, humidade, calor. Não é agradável. Mas também não é perigoso. Começo a ficar decepcionado. Mas depois descubro as ruas mais interiores. Ladeadas de edíficios históricos. Já está a melhorar.
Vou caminhar por ali quase sem rumo. Tinha tirado alguns apontamentos, queria visitar um hotel histórico onde o rei que construiu o palácio agora em ruínas tinha trabalhado antes de subir na vida. Parece ser um complexo fechado, não tenho sorte. Encontro a praça principal, a igreja. Há ali um posto de turismo que no dia seguinte visitarei.
Os prédios são vistosos, antigos, pintados em cores brilhantes. Muito comércio, serviços. Escolas de línguas, escritórios de documentação, tasquinhas, mercearias, botequins de electrónica, serviços de internet, armazéns grandes e pequenos.
As pessoas vão passando por mim. Quase todas em roupa muito informal. Calções e uns chanatos. Mas também há homens bem ataviados, engravatados, jovens e não tão jovens. É uma cidade fervilhante.
Passo junto ao presídio. Aqui é melhor não tirar fotos. Depois numa praça com muitas instalações de polícia. Aqui também não.
E passo uma hora nisto, a ver. Até dar por concluída a visita e me encaminhar para o ponto onde espero encontrar o transporte de regresso. Não está onde o meu mapa diz que deveria estar. Continuo a andar. Afinal, é mesmo em frente à gare routiere, a estação de “autocarros” principal. Aproveitei para estudar as partidas de transporte para a fronteira, mas não consegui apurar nada.
Já o Tap-Tap para Milot foi simples, perguntei a um outro que me apontou para a frente… é já a seguir. OK, a bordo e vamos. Mais um agradável percurso, especialmente depois do Carrefour La Mort, quando se instala um ambiente bucólico, campestre, pacífico, com pouco trânsito e grande beleza natural.
Chego a Milot e já me sinto ali em casa. Agora é andar 100 metros, chegar ao hotel, beber algo frio, descansar, relaxar. Também hoje jantarei aqui. Mais frango frito, mas desta vez com arroz. Como na véspera está delicioso.
Foi um dia em grande. Agora é preparar os próximos dias, pesquisar, tomar notas. Um serão descansado antes de outra noite bem dormida.